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A inseminação artificial heteróloga e a união estável

O atual Código Civil, em disposição pioneira (art. 1.593), de conteúdo extremamente aberto, define como parentesco civil a relação que decorre de “outra origem” que não a consangüinidade (geradora esta do parentesco natural).

17/11/2004


A inseminação artificial heteróloga e a união estável


Luiz Felipe Brasil Santos*

O atual Código Civil, em disposição pioneira (art. 1.593), de conteúdo extremamente aberto, define como parentesco civil a relação que decorre de “outra origem” que não a consangüinidade (geradora esta do parentesco natural).

Interessante observar que na redação original do Projeto do Código constava como parentesco civil apenas aquele resultante da adoção, ignorando por completo a situação daqueles filhos havidos por inseminação artificial heteróloga (art. 1.597, V), que, a permanecer aquele texto, não teriam relação de parentesco possivelmente nem sequer com o marido da mãe (e com os parentes deste), o que configuraria evidente absurdo. Na etapa final de tramitação do Projeto, já na Comissão de Redação é que, resultante de proposta encaminhada pelo IBDFAM, foi modificada a parte final do dispositivo, sendo trocada a palavra “adoção” pela expressão “outra origem”. Na justificativa então apresentada para a alteração consignou-se que:

A proposta de retificação do texto do dispositivo substituindo “adoção” por “outra origem” leva em conta a necessidade de não se excluírem outras fontes das relações de parentesco como, por exemplo, aquelas relativas à utilização de técnicas de reprodução assistida com a utilização de material genético de terceiro. Por força do dispositivo no art. 227, § 6º, da Constituição Federal, bem como do reconhecimento da presunção de paternidade relativamente ao marido que consente que sua esposa seja inseminada artificialmente com sêmen de terceiro (o doador), logicamente que a criança que venha a nascer, fruto de uma das técnicas de reprodução assistida, terá vínculos de parentesco não apenas com os pais, mas também com os parentes em linha reta e em linha colateral deles.

Ademais, a expressão proposta enseja o reconhecimento jurídico da paternidade socioafetiva, fonte das mais saudáveis relações familiares.

Portanto, a referência apenas à adoção é restritiva e exclui outras fontes do parentesco civil, motivo pelo qual deve ser retificada a redação do dispositivo.

Ao constar que o parentesco civil pode decorrer de “outra origem” que não a consangüinidade, o art. 1.593 contempla a situação dos filhos não-biológicos que se podem classificar em: a) filhos adotivos; b) filhos socioafetivos (que desfrutam da posse de estado de filho); c) filhos havidos por inseminação artificial heteróloga.

Enquanto a filiação consangüínea (onde estão incluídos os filhos havidos por inseminação artificial homóloga) tem como origem e fundamento a concepção (intencional ou fortuita), a filiação civil resulta da vontade, inspirada pelo afeto.

Nessa linha é o Enunciado nº 104 do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, aprovado por ocasião da I Jornada de Direito Civil, realizada no ano de 2002 :

"No âmbito das técnicas de reprodução assistida envolvendo o emprego de material fecundante de terceiros, o pressuposto fático da relação sexual é substituído pela vontade (ou, eventualmente, pelo risco da situação jurídica matrimonial) juridicamente qualificada, gerando presunção absoluta ou relativa de paternidade no que tange ao marido da mãe da criança concebida, dependendo de manifestação expressa (ou implícita) de vontade no curso do casamento"

Ou seja: em havendo a prévia autorização do marido, de que fala o inc. V do art. 1.597, a presunção de paternidade se torna absoluta, inadmitindo contestação posterior, por parte do marido da mãe. No entanto, se não houver a concordância prévia e antecipada, incidirá a presunção pater is est, desde que concebida a criança na constância do casamento (art. 1.597, incs. I e II), porém em caráter relativo, admitindo, assim, a contestação da paternidade por parte do presumido genitor.

Entretanto, não existe previsão quanto à situação dos companheiros. E isso pela singela razão de que na relação de companheirismo sabidamente não vige a presunção pater is est, pois, diferentemente do casamento (de predominante natureza contratual), a união estável é fato. Assim, em ocorrendo fecundação heteróloga na constância da união estável, não há que se falar em presunção sequer relativa de paternidade. Logo, o reconhecimento da paternidade somente poderá decorrer de um ato voluntário por parte do companheiro da mãe, no assento de nascimento, ou posteriormente. Se isso não ocorrer, não haverá modo de obter o reconhecimento forçado, pois vínculo genético evidentemente não haverá.

Esse é um dos aspectos mais problemáticos dentre tantos que estão em jogo na procriação artificial, especialmente em sua modalidade heteróloga, pois poderá daí resultar uma criança sem direito ao pai, tendo em vista o anonimato que, em geral, entende-se deva ser assegurado ao doador, não obstante inexista regulamentação legal da matéria.
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* Desembargador do TJ/RS e presidente do IBDFAM-RS - Instituto Brasileiro de Direito de Família







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