A Tese da Supralegalidade dos Tratados de Direitos Humanos
Valerio de Oliveira Mazzuoli*
Em 3 de dezembro de 2008, o Ministro Celso de Mello, no RE 466.343-SP (clique aqui), onde se questionava a impossibilidade da prisão civil pela aplicação do Pacto de San José, modificou radicalmente sua opinião anterior (tal como expressa no despacho monocrático do HC 77.631-5/SC, publicado no DJU 158-E, de 19.8.1998, Seção I, p. 35), para aceitar esta tese acima exposta, segundo a qual os tratados de direitos humanos têm índole e nível de normas constitucionais no Brasil2. Mas a maioria dos Ministros não acompanhou tal posição (que adotamos como correta), para acompanhar o Voto-vista do Ministro Gilmar Mendes, que alocou tais tratados de direitos humanos no nível supralegal - abaixo da Constituição (clique aqui), mas acima de toda a legislação infraconstitucional.
Assim, no julgamento - histórico - do dia 3 de dezembro de 2008 prevaleceu no STF o voto do Ministro Gilmar Mendes, por cinco votos a quatro, ficando afastado - pelo menos por enquanto - o posicionamento do Ministro Celso de Mello, que reconhecia valor constitucional a tais tratados. Como se percebe (e, sob esse aspecto, só temos o que comemorar), o STF não mais adota a equiparação dos tratados de direitos humanos às leis ordinárias. Porém, ainda que os tratados de direitos humanos tenham minimamente nível supralegal no Brasil, a nova dúvida que deve assaltar o jurista - notadamente o internacionalista - diz respeito ao acerto desta tese.
Segundo sempre entendemos, qualquer tratado de direitos humanos ratificado pelo Brasil - independentemente do quorum de aprovação - tem índole e nível de normas constitucionais. Sobre esse assunto já escrevemos a seguinte lição, que merece ser aqui transcrita:
"Tecnicamente, os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil já têm status de norma constitucional, em virtude do disposto no § 2º do art. 5º da Constituição (…), pois na medida em que a Constituição não exclui os direitos humanos provenientes de tratados, é porque ela própria os inclui no seu catálogo de direitos protegidos, ampliando o seu 'bloco de constitucionalidade' e atribuindo-lhes hierarquia de norma constitucional, como já assentamos anteriormente. Portanto, já se exclui, desde logo, o entendimento de que os tratados de direitos humanos não aprovados pela maioria qualificada do § 3º do art. 5º equivaleriam hierarquicamente à lei ordinária federal, uma vez que os mesmos teriam sido aprovados apenas por maioria simples (nos termos do art. 49, inc. I, da Constituição) e não pelo quorum que lhes impõe o referido parágrafo. (…) O que se deve entender é que o quorum que o § 3º do art. 5º estabelece serve tão-somente para atribuir eficácia formal a esses tratados no nosso ordenamento jurídico interno, e não para atribuir-lhes a índole e o nível materialmente constitucionais que eles já têm em virtude do § 2º do art. 5º da Constituição"3.
Contudo, como já dissemos, a nossa tese sobre o nível - materialmente - constitucional dos tratados de direitos humanos não aprovados pela maioria qualificada do art. 5º, § 3º, não foi adotada - ainda - pela maioria dos membros da nossa Suprema Corte. Mas a tese que defendemos - aceita no antológico voto do Ministro Celso de Mello - é a que melhor se coaduna com a sistemática internacional de proteção dos direitos humanos, sendo por isso largamente aceita pela melhor doutrina (v.g., Cançado Trindade, Luiz Flávio Gomes, Flávia Piovesan, etc).
A tese da supralegalidade dos tratados de direitos humanos não aprovados por maioria qualificada (defendida, v.g., pelo Ministro Gilmar Mendes, no RE. 466.343-SP) peca por desigualar tais instrumentos em detrimento daqueles internalizados pela dita maioria, criando uma "duplicidade de regimes jurídicos" imprópria para o atual sistema - interno e internacional - de proteção de direitos, uma vez que estabelece "categorias" de tratados que têm o mesmo fundamento ético. E este fundamento ético lhes é atribuído não pelo direito interno ou por qualquer poder do âmbito interno (v.g., o Poder Legislativo), mas pela própria ordem internacional de onde tais tratados provêm. Ao criar as "categorias" dos tratados de nível constitucional e supralegal - caso sejam ou não aprovados pela dita maioria qualificada - a tese da supralegalidade acabou por regular assuntos iguais de maneira totalmente diferente (ou seja, desigualou os "iguais"). Daí ser equivocado alocar certos tratados de direitos humanos abaixo da Constituição e outros (também de direitos humanos) no mesmo nível dela, sob pena de se subverter toda a lógica convencional de proteção de tais direitos, a exemplo daquela situação onde um instrumento acessório teria equivalência de uma emenda constitucional, enquanto que o principal estaria em nível hierárquico inferior.
Espera-se que o STF reveja sua posição e passe a adotar, como fez o Ministro Celso de Mello, a tese do nível constitucional dos tratados de direitos humanos, independentemente do quorum de aprovação congressual. Será este o momento em que o Brasil ficará lado a lado com os países que mais valor atribuem às normas internacionais de proteção e daqueles que sofrem menos condenações (por violações de direitos humanos) por tribunais internacionais.
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1 Para detalhes, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Curso de direito internacional público, 3ª ed., rev., atual. e ampl., São Paulo: RT, 2009, pp. 768-776.
2 O Min. Celso de Mello também já havia se manifestado (aliás, pela primeira vez em seu novo posicionamento) sobre o acerto da tese do nível constitucional dos tratados de direitos humanos, em 12.3.2008, no julgamento do HC 87.585-8/TO.
3 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público, cit., p. 764. São inúmeros os outros argumentos em favor da índole e do nível constitucionais dos tratados de direitos humanos no nosso ordenamento jurídico interno, que preferimos não tratar aqui, por já terem sido detalhadamente estudados em vários outros dos nossos trabalhos sobre o tema. Cf., especialmente sobre o assunto, MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direitos humanos, Constituição e os tratados internacionais: estudo analítico da situação e aplicação do tratado na ordem jurídica brasileira. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, pp. 233-252; Prisão civil por dívida e o Pacto de San José da Costa Rica: especial enfoque para os contratos de alienação fiduciária em garantia. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 109-176; e ainda, Tratados Internacionais: com comentários à Convenção de Viena de 1969. 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, pp. 357-395.
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*Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFMT. Professor da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes
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