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A criminalização das relações de trabalho

Os parlamentares de Brasília têm uma verdadeira paixão pela área trabalhista. Há mais de dois mil projetos de lei tramitando no Congresso Nacional. A esmagadora maioria visa apenas gerar direitos sem a menor preocupação com os deveres, com as despesas e com a competitividade. Basta observar que na Constituição Federal, a palavra “direito” aparece 76 vezes enquanto que a palavra “dever” aparece apenas quatro vezes.

2/3/2009


A criminalização das relações de trabalho

José Pastore*

Os parlamentares de Brasília têm uma verdadeira paixão pela área trabalhista. Há mais de dois mil projetos de lei tramitando no Congresso Nacional. A esmagadora maioria visa apenas gerar direitos sem a menor preocupação com os deveres, com as despesas e com a competitividade. Basta observar que na Constituição Federal (clique aqui), a palavra "direito" aparece 76 vezes enquanto que a palavra "dever" aparece apenas quatro vezes. As palavras "produtividade" e "eficiência" aparecem duas e uma vez, respectivamente. O que fazer com um país que tem 76 direitos, quatro deveres, duas produtividades e uma eficiência?

Dentre os projetos em tramitação, chama a atenção o PLS 36 (Projeto de Lei do Senado Federal - clique aqui) apresentado pelo Senador Antonio Carlos Valadares (PSB/SE) em 17 de fevereiro de 2009. O projeto visa tornar criminosa toda conduta da empresa que, direta ou indiretamente, venha a ferir a liberdade sindical. Mais especificamente, o PLS 36 estabelece o seguinte:

Art. 1º Acrescente-se o art. 199A ao Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal (clique aqui), com a seguinte redação:

[Constitui] atentado contra a Liberdade Sindical

Art. 199A. Impedir alguém, mediante fraude, violência ou grave ameaça, de exercer os direitos inerentes à condição de sindicalizado:

Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

§1º. Na mesma pena incorre quem:

I – exige, quando da contratação, atestado ou preenchimento de questionário sobre filiação ou passado sindical;

II – dispensa; suspende; aplica injustas medidas disciplinares; altera local, jornada de trabalho ou tarefas do trabalhador por sua participação lícita na atividade sindical, inclusive em greve;

§2º. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é dirigente sindical ou suplente, membro de comissão ou, simplesmente, porta-voz do grupo. (NR)"

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

A ideia de penalizar criminalmente as condutas no campo trabalhista é contra-indicada por várias razões. Dentre elas destacam-se as seguintes:

Fonte de mais conflitos

Do ponto de vista prático, a pretendida criminalização criará muita insegurança jurídica. Como comprovar que uma empresa impediu um empregado de exercer os direitos sindicais? Como definir, por exemplo, que uma medida disciplinar é injusta? Como se caracteriza uma conduta é anti-sindical?

Os dispositivos incluídos no PLS 36 são tão vagos que podem ser usados ao bel prazer dos dirigentes dos sindicatos laborais. Uma vez alegada a prática anti-sindical, o caso pode se desdobrar em greve ou em uma ação trabalhista – instigando, assim, o numero de conflitos.

Chegando aos tribunais, quais serão os indicadores para tipificar uma conduta anti-sindical? Se o caso é julgado na Justiça Comum, estarão os juízes bem informados sobre as especificidades do mundo do trabalho?

Nos países onde se valoriza a negociação coletiva, as condutas anti-sindicais são as que contrariam o principio da boa fé. Como é difícil definir boa fé, as regras procuram tipificar as condutas de má-fé. E isso é feito por meio de definições muito claras que atingem não só as empresas, mas também os sindicatos laborais e os próprios empregados.

Responsabilidades bilaterais

Neste ponto chega-se ao segundo aspecto, ou seja, da responsabilidade unilateral estabelecida pelo PLS 36. O lado laboral está livre de se comportar adequadamente e livre, portanto, de punições criminais. Para as empresas, todas as sanções criminais; para os empregados e dirigentes dos sindicatos laborais, nada.

O próprio Fórum Nacional do Trabalho, onde havia um forte peso das lideranças das centrais sindicais, definiu conduta anti-sindical como "qualquer forma de interferência por parte dos empregadores nas organizações sindicais de trabalhadores, bem como qualquer forma de interferência por parte dos trabalhadores nas organizações sindicais de empregadores". Portanto, as responsabilidades são dos dois lados.

O PLS 36 se refere apenas às condutas das empresas. Uma regra equilibrada teria de levar em conta uma longa lista de quesitos a serem seguidos por empregados, dirigentes sindicais e empregados. Como exemplo, apresento as seguintes sugestões:

1. Os empregadores não podem forçar nenhum trabalhador a se sindicalizar ou deixar de sindicalizar.

2. Os sindicatos laborais não podem forçar nenhum trabalhador a se sindicalizar ou deixar de sindicalizar.

3. Os empregadores não podem oferecer ou passar dinheiro para os sindicatos de empregados sob qualquer pretexto.

4. Os empregadores não podem despedir um empregado pelo fato de se associar a um sindicato ou participar de greve realizada dentro da lei e das limitações legais.

5. Os empregadores não podem deixar de promover um empregado pelo fato dele ter participado de uma greve realizada dentro da lei e das limitações legais.

6. Os empregadores não podem conceder privilégios a empregados que não participaram de greve e pelos simples fato de não terem participado.

7. Os empregadores não podem recusar a contratação de empregados pelo fato de pertencerem a um sindicato ou terem participado de alguma greve realizada dentro da lei e das limitações legais.

8. Os empregadores não podem despedir ou perseguir um empregado que venha a prestar depoimentos como testemunha em processo aberto contra a empresa na Justiça.

9. Os empregadores não podem deixar de reintegrar um empregado quando esta decisão for aprovada por sentença judicial.

10. Os sindicatos laborais ou os empregados não podem impedir que as empresas apresentem aos seus empregados argumentos sobre as vantagens e desvantagens da sindicalização dos mesmos.

11. Os sindicatos laborais e de empregadores não podem usar violência ou ameaçar física e moralmente os trabalhadores que não seguirem a sua orientação.

12. Os sindicatos laborais têm o direito de estabelecer regras para o seu funcionamento, mas não para o funcionamento das empresas, especialmente, quando isso afeta o direito de propriedade e as condições de competitividade.

13. Os sindicatos laborais não podem usar a boa fé dos trabalhadores ou induzi-los a entrar em ações ilegais ou contrárias ao espírito de contrato em vigor.

14. Os sindicatos laborais não podem aprovar regra estatutária que impeça a desfiliação de seus membros.

15. Os sindicatos laborais não podem ameaçar os trabalhadores com denuncias que levem à perda do emprego devido à discordância de opiniões.

16. Os sindicatos laborais não podem entrar em negociação com uma empresa (ou empresas) enquanto não forem escolhidos pelos empregados como seus representantes na negociação.

17. Os sindicatos laborais não podem aplicar multas ou expulsar de seus quadros os empregados que não aderirem a uma greve ou não respeitarem um piquete.

18. Os sindicatos laborais e de empregadores não podem deixar de defender um associado pelo fato deste ter discordado do sindicato.

19. Os sindicatos laborais não podem exigir encontro com os empresários e rejeitar encontros (e negociação) com seus representantes administradores ou advogados nomeados com procuração.

20. Os sindicatos laborais não podem exigir dos empregadores que aceitem condições de trabalho a serem estabelecidas por negociadores que não fazem parte da respectiva unidade de negociação (empresa-sindicato).

21. Os sindicatos laborais não podem perseguir ou agredir física ou moralmente os chefes pelo fato destes terem de cumprir com suas obrigações de supervisores e representantes da empresa.

22. Os sindicatos laborais e de empregadores não podem praticar condutas de ma fé antes, durante e depois da negociação.

23. A conduta de boa fé deve ser respeitada não apenas em relação à empresa, mas também em relação aos empregados representados.

24. Os sindicatos laborais não podem exigir que uma empresa negocie separadamente quando esta negociou preliminarmente um modelo de negociação em conjunto com outras empresas (unidade de negociação).

25. Os sindicatos laborais não podem rejeitar a mediação, conciliação, arbitragem e Justiça do Trabalho quando tais mecanismos estiverem previstos em lei ou em contratos coletivos para dirimir impasses.

26. Os sindicatos laborais não podem realizar ou participar de greves de solidariedade ou de boicotes que visam atingir terceiras empresas.

27. Os sindicatos laborais não podem induzir os trabalhadores de empresas contratadas (terceirizadas) a entrar em greve pelo simples fato de trabalharem no mesmo local.

28. Os sindicatos laborais e os empregados não podem denegrir a imagem e a reputação da empresa ou de seus produtos (chantagem) para conseguir vantagens no processo de negociação.

A natureza da punição

Todas essas condutas são exemplos de desvios de comportamento que podem ser denunciadas como condutas de má fé ou como práticas anti-sindicais. A questão é determinar o método de punir essas práticas.

As sanções para esse tipo de comportamento fazem parte do campo trabalhista e não do campo criminal. Na grande maioria dos países avançados, onde se valoriza a boa fé, sempre que empregadores, empregados ou seus representantes incidem em práticas anti-sindicais comprovadas, a legislação trabalhista prevê expressamente a necessidade de reverter o comportamento lesivo, amigavelmente ou por sentença judicial.

O que se busca, portanto, é manter um ambiente amigável e de cooperação entre empregados e empregadores. Eventuais desavenças são resolvidas no âmbito do contrato coletivo, da conciliação, mediação, arbitragem ou sentença judicial.

A colocação da punição no âmbito do Código Penal introduz um elemento estranho e de grande apreensão nas relações do trabalho. Os empregadores estarão sempre receosos de que determinada conduta venha a ser tipificada como crime. O mesmo acontecerá com os trabalhadores se o PLS vier a tratar o assunto de maneira equilibrada, tornando crime toda conduta que fira a liberdade dos empregadores.

Enfim, o tratamento dos desvios de conduta pela via da criminalização serve apenas para tornar a relação entre empregados e empregadoras mais tensa – o contrário do que se busca na sociedade moderna onde a cooperação precisa substituir a confrontação para que as empresas cresçam e mantenham os empregos dos trabalhadores.

Por tudo isso, o PLS deveria simplesmente ser retirado de pauta ou substituído por outra peça legislativa, de natureza trabalhista, e que contemple responsabilidades bilaterais conforme o sugerido acima.

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*Professor titular da Faculdade de Economia e Administração e da Fundação Instituto de Administração, ambas da Universidade de São Paulo. É pesquisador da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas e consultor em relações do trabalho e recursos humanos





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