Drummond, processo, advocacia e judicatura
Eluiz Antônio Ribeiro Mendes e Bispo*
"A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só conseguia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia os seus fogos. Era dividida em duas metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era perfeitamente bela. E era preciso optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia."
(ANDRADE, Carlos Drummond. A Verdade Dividida. In. Contos Plausíveis: José Olympio, 1985)?
Saber corresponder a subjetividade cognitiva do intelecto aos fatos ou eventos da realidade objetiva é, sem dúvida, uma das receitas da boa convivência humana1. Mas não deixa de ser também um grande desafio, posto que essa convivência compele-nos diariamente a revisitar o catálogo dos nossos valores éticos e morais. A essa correspondência, harmonia ou adequação entre o mundo interior e exterior é que se dá o nome de verdade.
Em Processo, toda pretensão deduzida em juízo tem por fundamento um fato, asseverou autorizado processualista.2 E tanto o autor quanto o réu, ao resisti-la, afirmam fatos que podem ou não corresponder à verdade. O juiz, personificação do juízo3, precisa convencer-se da existência ou inexistência dos fatos, porque a sua decisão, necessariamente motivada4, deverá corresponder à verdade, apresentar parecença com uma das duas verdades que lhe são postas pelos contendores. Tarefa fácil? Acredito que não, já que é necessário joeirar a metade mais perfeitamente bela daquela mais caprichosa, ilusória e míope.
Este poema apareceu inicialmente no livro Corpo, de 1984, um ano antes da publicação de Contos Plausíveis, do qual foi extraída esta versão. Entre as duas edições há ligeiras mudanças. Vale à pena observar essas alterações porque elas sempre revelam um pouco dos métodos de composição do poeta. Em Corpo, o título era "Verdade". Talvez o autor tenha achado esse título um tanto pretensioso e atenuou essa possibilidade, mudando-o para "A Verdade Dividida". No terceiro verso da terceira estrofe, o que era "seus fogos", passou a ser "os seus fogos". Na mesma estrofe, o que antes era "metades" transformou-se em "duas metades". Na última estrofe, em lugar de "perfeitamente bela", estava "totalmente bela". O trecho "E carecia optar" evoluiu para "E era preciso optar". A frase final permaneceu a mesma, mas a palavra "conforme" pertencia, antes, ao penúltimo verso.
Fazer justiça é, pois, descobrir a verdade. E descobrir a verdade não é somente optar pela metade mais perfeitamente bela, ataviada pelos melhores argumentos. É, sobretudo, declará-la, impô-la, efetivá-la no mundo dos fatos. No processo, o juiz não trabalha sozinho nesse mister, mas, de igual modo, o advogado, quem, por força da Carta Magna5 (clique aqui), representa uma viga mestra da justiça. É, assim, o advogado, o primeiro juiz da causa, porque contribui ao convencimento do julgador quando da postulação de decisão favorável ao seu constituinte, embelezando a verdade do seu cliente com a tecnicidade necessária a torná-la mais perfeitamente bela.
Com efeito, o advogado, do latim advocatus, que significa "chamado para junto, para junto da parte por ele representada, é o porta-voz das convicções, o patrono daquela metade que se quer ver mais bela. E, se num Tribunal, entra trazendo na sua pasta, em vez de boas e honradas razões, manigâncias secretas, solicitações ocultas e esperanças na parcialidade dos juízes, por todas as paredes, um espelho devolver-lhe-á, multiplicadas e deformadas, as suas intrigas.6 Por isso que, independentemente da metade em favor da qual lhe compete postular, o advogado deverá atuar com lhaneza, esmero lealdade e ética, subordinando seu ofício à elevada função pública que exerce7, sob pena de subverter e comprometer toda a cadeia de atos e ritos direcionados à lídima busca da própria verdade.
O juiz, a seu turno, tem um poder tão grande, dentro dos limites constitucionais e legais, que deve cuidar sempre e sempre de não incidir em abuso8, pois, tal qual o mago da fábula, possui o condão de dar às sombras as aparências eternas da verdade, visto que decisão e verdade devem, afinal, coincidir-se. Ora, seria perfeitamente possível, se a decisão não é inteiramente verdadeira, reduzir a verdade à sua medida, com a escolha da metade menos perfeitamente bela, ilusória, míope. E mais, se passada em julgado, essa mesma sentença9 destacar-se-ía dos motivos que a ditaram tal como a borboleta que sai do casulo e, então, a realidade objetiva seria definitivamente harmonizada pela subjetividade cognitiva do intelecto vencedor da causa, seja ele verdadeiro ou não. E é por isso que a verdade a ser descoberta no processo também é conhecida como real.
Drummond, como se vê, retratou bem o dilema social da verdade bipartida, o qual assenta como luva às lides10 forenses. Se os litigantes apaixonam-se perdidamente cada um por sua causa, por sua metade, o advogado, em contrapartida, deve apaixonar-se racionalmente pela causa do cliente e submetê-la ao filtro da razão e depois transpô-la aos autos do processo por meio dos seus petitórios. O juiz, que lá está equidistante e serenamente, competirá juntar os pedaços da realidade social trazida à baila e colacionada ao mundo dos autos, e com eles formar uma imagem da verdade, que jamais será completa, como bem quis o poeta de ferro, porquanto sempre dividida. A escolha final entre a metade mais bela e a outra metade míope, é demasiadamente espinhosa, um dilema, por serem os autos verdadeiros repositórios dos maiores problemas, mazelas e estigmas sociais e humanos.
Drummond se foi há mais de vinte anos sem nos explicar por que as metades da verdade são tão diferentes uma da outra, já que metade é, ou pelo menos se imagina ser, porção igual à outra, obtida pela divisão de um todo. Teria ele então versejado pela metade?
Certamente não. A ninguém é dado dizer-se dono da verdade. Foi por isso que somente meia pessoa poderia atingi-la ao atravessar a porta. Não há verdade absoluta.
As metades da verdade são diferentemente belas como o são as próprias pessoas, umas em relação às outras. Sobre um mesmo fato, há várias versões, porquanto cada uma escolheu a metade que melhor lhe encantara, cada qual formando assim o seu perfil.
E falando em porta, a da verdade permanecerá aberta, acessível a todos, conquanto destruída. Saber conformar a nossa subjetividade cognitiva à realidade objetiva e transformá-los em uma metade perfeitamente bela é, antes de tudo, submeter nossa conduta, a nossa vida como um todo, à apreciação do tribunal da própria consciência, cujas decisões, aliás, são sempre inapeláveis.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Carlos Drummond. A Verdade Dividida. In. Contos Plausíveis: José Olympio, 1985.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12. Ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
CALAMANDREI, Piero. Eles, os Juízes, vistos por Nós, os Advogados. 6. Ed. Lisboa: Clássica, 1981.
CARNELUTTI, Francesco. Instituições do processo civil. Vol. I. Tradução de Adrián Sotero
De Witt Batista. Campinas : Servanda, 1999.
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Thompson IOB, 2005.
SANCHES, Sidney. O Juiz, os Valores dominantes. O desempenho da Função Jurisdicional em face dos anseios sociais por Justiça. In. NALINI, José Renato (Coord.). Curso de Deontologia da Magistratura. São Paulo: Saraiva, 2002.
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. 24. Ed. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 2.
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1 Relembrando o Professor Goffredo Telles Junior, para quem o Direito é a disciplina da convivência humana.
2 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. 24. Ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 339, v. 2.
3 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Thompson IOB, 2005, p. 219.
4 Por força do art. 93, IX da Constituição Federal de 1988, todas as decisões judiciais haverão de ser fundamentadas, sob pena de nulidade.
5 Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.
A propósito, e com a devida vênia dos que entendem que o termo "Carta" aplicar -se-ía melhor aos textos constitucionais outorgados, uno-me ao coro dos que, como Paulo Bonavides, usam o termo como sinônimo de Constituição, seja ela outorgada ou promulgada.
6 CALAMANDREI, Piero. Eles, os Juízes, vistos por Nós, os Advogados. 6. Ed. Lisboa: Clássica, 1981, p. 22.
7 Nesse sentido, art. 2º. e seguintes do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil.
8 SANCHES, Sidney. O Juiz, os Valores dominantes. O desempenho da Função Jurisdicional em face dos anseios sociais por Justiça . In. NALINI, José Renato (Coord.). Curso de Deontologia da Magistratura. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 28.
9 Leia-se dispositivo. Ver artigos 467 e seguintes do Código de Processo Civil.
10 Lide está empregada na acepção mais larga do termo, como sinônimo de contendas judic iais ou causas. Registre-se, por oportuno, que na definição carneluttiana clássica, é tida como um "conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida". É, pois, a meu ver, um fenômeno extraprocessual, do mundo dos fatos e que, ao deslocar-se para o bojo do processo, recebe uma nova veste chamada demanda.
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*Advogado. Professor de Direito Constitucional na Universidade Estadual de Montes Claros/Unimontes
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