O CNJ e o controle de constitucionalidade de leis
Antônio Veloso Peleja Júnior*
Elaborou uma radiografia da atuação do Poder Judiciário, mediante a qual detectou deficiências e pontos que merecem ser equacionados e otimizados para o aprimoramento da instituição. Estabeleceu metas para a solução dos problemas identificados, as quais estão sendo perseguidas e alcançadas. Realiza campanhas, como as de registro civil, incentivo à adoção, movimentos de conciliação, e Casas de Justiça e Cidadania. Enfim, o órgão tem primado pelo efetivo acesso à justiça, nos moldes preconizado por Mauro Cappelletti, em sua expressão metafórica ondas de acesso à justiça. Com isso, auxilia na melhoria da percepção do Judiciário pela sociedade, o que é essencial em uma democracia com estrutura de poder tripartite.
Contudo, em sua atuação prática, o CNJ vem adentrando seara que lhe é estranha, qual seja, o manejo do controle de constitucionalidade das leis. Isso porque é órgão do Poder Judiciário certamente, mas de natureza administrativa e não-jurisdicional.
Em tema de controle de constitucionalidade, o Brasil adota o sistema preventivo -jurisdicional (ajuizamento de mandado de segurança em caso de vício de iniciativa, ferimento de cláusula pétrea ou processo legislativo) e político (veto presidencial, análise do veto, comissões parlamentares, via análise prévia) e o repressivo - jurisdicional (difuso e abstrato) e político (arts. 49, V, 52, X e 62, § 5º, CRB/88).
A Constituição Federal delineia os sistemas de controle de constitucionalidade, que são minudenciados por leis infraconstitucionais. Nada obstante, analisando-se a atuação do Conselho Nacional de Justiça, depreende-se o exercício explícito do controle de constitucionalidade de normas. No campo concreto, exemplifica-se com o Procedimento de Controle Administrativo n° 2007.10.00.001564-8, sobre o pedido de extinção de cargos de juízes auxiliares de segunda entrância do TJ/MT, criados pela Lei Estadual nº 8.006/03.
Ora, decisão datada de 27 de fevereiro de 2008, exarada no referido procedimento, determinou a exclusão dos arts. 7º e 8º e seus parágrafos, da Resolução nº 8/03 do TJ/MT, com a recomendação de fiel observância da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, quando da convocação de juízes de direito substitutos para atuarem na Corte.
Houve pedido de esclarecimentos. Na decisão proferida no dia 13 de maio de 2008, ficou claro o controle de constitucionalidade da Lei estadual, consoante o seguinte excerto extraído do voto do Conselheiro-Relator, verbis:
(...). O pedido de esclarecimentos, neste caso, tem por claro e útil propósito prevenir qualquer infidelidade no cumprimento da decisão do CNJ, efetivamente omissa quanto ao destino dos juízes substitutos de segundo grau do TJ/MT. Toda a polêmica que dividiu o Plenário ao meio concentrou-se na validade ou não de lei estadual previsora dos respectivos cargos. Vitoriosa a tese de invalidade do diploma legal por inconstitucionalidade formal (disciplinamento de matéria reservada a lei complementar de caráter nacional), soa-me inarredável definir o que fazer com os magistrados em situação considerada irregular. Portanto, voto pela concessão de efeito modificativo ao pedido (...). Superado o óbice dos limites de atuação neste PE, inclino-me por decidir pela manutenção dos atuais ocupantes em seus cargos, que não devem ser providos à medida em que vagarem.
Na parte dispositiva da decisão administrativa resta claro como a luz do sol que a Lei estadual não foi observada, bem como a criação de novas atribuições aos ocupantes do cargo de juiz de direito substituto de segundo grau, em nítido exercício do “Poder Normativo Primário” e, quiçá, de um ativismo judicial – criação judicial do direito –, tema assaz polêmico na seara da Suprema Corte.
Isso porque referida decisão determinou o não-cumprimento da norma estadual face à declaração "transversa" de inconstitucionalidade, em clara violação à cláusula de reserva de plenário do art. 97 da Constituição Federal (full bench), e também por "recomendar" ao TJ que encaminhe anteprojeto de lei com o fito de extingüi-la, em menoscabo ao princípio de autogoverno do Judiciário e da independência dos Poderes. O primeiro por "recomendar" à Corte de Justiça que providencie a "retirada" da norma do mundo jurídico. O segundo pela inobservância de que compete ao Poder Legislativo Estadual editar normas. Vejamos:
(...). Ante o exposto, voto pelo conhecimento do pedido de esclarecimentos e, no mérito, dou-lhe provimento parcial para: a) esclarecer que os juízes de direito substitutos do TJ/MT poderão ser convocados para atuarem (sic) em mutirões e outras missões próprias dos juízes da Capital ou ser removidos a pedido para quaisquer órgãos da última entrância; b) recomendar ao TJ/MT que encaminhe à Assembléia Legislativa estadual proposta de projeto de lei extinguindo os cargos de juiz de direito substituto de segundo grau.
Infere-se daí a possibilidade de um órgão com competência administrativa e financeira invalidar e, por via indireta, declarar a inconstitucionalidade de dispositivo de lei, de cunho abstrato, exercendo o controle concreto de constitucionalidade.
Com efeito, ao consignar o entendimento de que a lei estadual disciplinadora da matéria submetida à apreciação não foi observada, a decisão do Conselho Nacional de Justiça feriu o pacto federativo, porquanto um órgão de natureza administrativo-disciplinar, sem qualquer atribuição jurídico-constitucional, muito menos de construção judicial do direito, acabou por extirpar do mundo jurídico normas regularmente válidas, já que aprovadas pelo Legislativo estadual.
A via adequada para apreciação do tema seria o Supremo Tribunal Federal, que é o guardião da Constituição por expressa previsão do constituinte originário.
Todavia, escorado no art. 103-B, § 4o, II, da Constituição de 1988, o CNJ retirou do mundo jurídico norma estadual, no exercício de atribuição que não lhe foi destinada, abalando os alicerces em que se funda a República Federativa do Brasil.
Finalizando, calha transcrever a advertência feita pelo Ministro Sepúlveda Pertence nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 98/MT , o que acabou se concretizando via Emenda Constitucional nº 45/04:
Na mesma linha de raciocínio, há um último ponto a sublinhar: em todos os países que têm instituído os conselhos de formação heterogênea para o governo do Judiciário – com a única exceção, que passou a adotar o princípio da unidade jurisdicional (Const. de 1978, art. 117, 5), à magistratura judicial – por motivos históricos similares aos já recordados – jamais se entregou nem o controle da legalidade da administração, nem muito menos o de constitucionalidade das leis. (...). No sistema brasileiro, todo órgão judiciário é juiz da legalidade da administração e da constitucionalidade das leis.
É um dado a mais para evidenciar o trauma que representaria ao modelo positivo brasileiro de independência do Judiciário, que tem um dos seus pilares no autogoverno, a introdução em Estado-membro de um órgão de administração e disciplina em cuja heterogênea formação se abrissem flancos à intromissão dos outros Poderes. (Grifos nossos.)
Seria essa uma tendência para o futuro do direito pátrio?...
_________________
1 ADI nº98 MT. Relator ministro Sepúlveda Pertence, julgamento em 7.8.97. DI 31.10.97, PP. 55539
_________________
*Juiz de Direito na Comarca de Rondonópolis/MT e Professor de Direito no Cesur/Anhanguera Educacional
_____________