A ação de recuperação judicial na falência
José Anchieta da Silva*
Prescreve o art. 48 da lei, que poderá requerer recuperação judicial o devedor empresário que, dentre outros requisitos, não for falido ou, tendo sido, estejam declaradas extintas as suas obrigações e responsabilidades decorrentes da falência. Esta norma não pode ser de aplicação absoluta, sob pena de conspirar contra os princípios que nortearam a construção da nova disciplina concursal. É que sendo o falido viável, isto é, solvente, poderão os seus credores decidir sobre os destinos do negócio e não apenas pela sua liquidação, vendendo-o a grosso ou a retalho. Uma das grandes inovações vindas com a lei nova está na desprocesualização ou na desjudicialização do processo, neologismos que se explicam na valorização da deliberação dos credores em assembléia e a homologação judicial posterior de um 'Plano' de recuperação aprovado.
A extinção da ação de concordata suspensiva deixou sem ação os falidos de falência viável condenando-os, portanto, a verem sucateados os seus ativos. Um dos exemplos clássicos – mas certamente não será o único – diz respeito àquele que estiver sob o regime da continuidade de negócios. (art. 74 da lei velha e art. 99 da lei nova). De maneira objetiva é forçoso reconhecer que, não mais existindo as ações de concordatas, resta – não há outra – a ação de recuperação judicial.
Na sustentação desta tese há argumentos favoráveis no próprio texto legal novo, facultando acesso à ação de recuperação aos falidos que possuam sentença judicial transitada em julgado. A ação de recuperação corresponde, exatamente, a forma de solver as obrigações, com o placet de seus credores e com a homologação do 'Plano' pelo magistrado. Outro artigo da lei nova que está a amparar o entendimento aqui sustentado é exatamente o art. 192, § 3º, na parte em que está a admitir a migração dos processos de concordata para a recuperação judicial.
Um argumento mais deve ser somado às razões pelas quais estamos a sustentar a pertinência da ação de recuperação para os falidos viáveis de modo incidental. É que a ação de recuperação pode (e até deve) ser utilizada como defesa à ação de falência proposta, fazendo-o, o empresário, no prazo da defesa (art. 95).
É preciso demonstrar que não se está construindo conclusão contrária às normas da lei nova. Efetivamente, delas se está a extrair o seu verdadeiro conteúdo, de modo a tornar a sua aplicação prática, funcional e atendente aos princípios que nortearam toda a construção do direito concursal novo, que não quer inviabilizar soluções para empresários cujas atividades sejam viáveis, diante de interesses que transcendem os próprios limites da pessoa – sujeito de direito –envolvida.
Em seu Curso de Hermenêutica Jurídica, o professor Dilvanir José da Costa, após percorrer a doutrina da teoria pura do direito de Hans Kelsen, e a doutrina do direito como o fato social de Savigny, sustenta, a partir das escolas científicas dos métodos histórico, teleológico e sociológico, que as leis não contêm todo o Direito. Arrematando com a frase que ficou célebre de Raimond Saleilles no prefácio da obra de François Geny (1899): o intérprete deve ir além da lei, mas através da lei – 'au-delà de la loi, mais par La loi'.
Outro jurista mineiro, Humberto Theodoro Júnior, em magnífico ensaio sobre a 'Interpretação e Aplicação das Normas Jurídicas' escreveu: Direito é norma; norma é linguagem; linguagem é símbolo; símbolos não são precisos e unívocos; exigem interpretação antes de serem traduzidos e aplicados aos fatos concretos sobre os quais a norma tem de ser aplicada. Os textos jurídicos devem ser lidos, compreendidos e aplicados juridicamente. Das leis é preciso extrair o seu conteúdo diante da vivência e aplicação prática de seus comandos.
É preciso ter presente o fato de que a deliberação sobre a pertinência ou não da recuperação judicial a partir de um 'Plano' pertence aos credores. Negar a recuperação de falência viável, corresponderia à negativa do direito de se empreender a ação própria de recuperação judicial, incidentalmente sobre a falência em andamento, com a concordância dos credores, naqueles casos em que a economia da falida ainda pulsa, daí decorrendo os efeitos positivos: empregos, manutenção de clientela, recolhimento de tributos, funcionamento da azienda enfim. Decretar-lhes simplesmente a morte corresponderia a um requien, féretro ou enterro, onde os próprios credores estariam a lamentar a sorte de não se lhes conceder a oportunidade de receber os seus créditos. Seria o caso da desfunção de lei.
A recuperação judicial, que não foi cogitada para os casos de falência, foi todavia cogitada como remédio único para salvar atividades empresariais solventes. É o que interessa.
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* Presidente do IAMG - Instituto dos Advogados de Minas Gerais
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