A possibilidade de cabimento do Habeas Corpus nas Punições1 disciplinares militares
Rebecca Aguiar Eufrosino da Silva de Carvalho*
Introdução
Longe da taxatividade proposta pelo art. 5º, inc. LXVIII c.c. art. 142 § 2° da Constituição2 (clique aqui), o que se pretende é a demonstração das hipóteses de cabimento do habeas corpus em punições disciplinares militares.
Desenvolvimento:
Conceito de Habeas Corpus:
Trata-se de ação de natureza constitucional, destinada a coibir qualquer ilegalidade ou abuso de poder contra a liberdade de locomoção.
A ação de Habeas Corpus não se confunde com recurso, mas de verdadeiro instrumento utilizado para assegurar direitos fundamentais, cuja manifestação se dá através de ação autônoma, podendo, ser proposto contra decisão que já transitou em julgado.
Sinaliza Denilson Pacheco Feitoza3 que o habeas corpus é uma ação de conhecimento de caráter mandamental e que mesmo conhecido de ofício (sem qualquer provocação das partes) não deixa de ser ação.
Observa Denílson que o habeas corpus tem caráter Mandamental, pois não se relega a satisfação do direito a uma fase de execução. Procedente o pedido de habeas corpus, o juiz expede uma ordem para que o provimento seja imediatamente cumprido (item C).
Classificação quanto ao tipo de provimento:
As ações de conhecimento podem visar a um provimento:
A) Meramente Declaratório: reconhecimento da extinção da punibilidade (art. 648, inc. VII, CPP - clique aqui);
B) Constitutivo: anulação da sentença ou do processo após o transito em julgado da sentença (art. 648, inc. VI, CPP);
C) Mandamental: a ordem dada pelo juiz para que a autoridade coatora cesse imediatamente a constrição, sob pena de responder por desobediência.
D) Condenatório: a condenação nas custas a autoridade que, por má-fé ou evidente abuso de poder, determinou a coação (art. 653, CPP).
Para Nucci inexiste habeas corpus condenatório, pois o art. 5º, inc. LXXVII, da Constituição Federal, prevê a gratuidade do remédio constitucional.
Classificação quanto à espécie:
O habeas corpus ainda pode ser dividido em duas espécies:
A) Liberatório ou Repressivo: destina-se a restituir à liberdade a alguém que se encontra efetivamente preso ou detido; Ou seja, visa a cessação da ilegalidade já praticada.
B) Preventivo: destina-se a evitar que a ameaça de prisão ou detenção se efetive, expedindo-se salvo conduto. Ou seja, visa assegurar que a ilegalidade ameaçada não chegue a se consumar.
Significado do vocábulo latino:
O termo habeas corpus significa, nas palavras de Nucci4, "toma o corpo", ou, genericamente, ter, tomar, trazer o corpo, significando um meio de se obter o comparecimento físico de alguém perante uma Corte.
Hoje em dia não é mais necessário o comparecimento físico, mas tão somente a apresentação do direito perante a Corte.
Faz-se a apresentação do direito de alguém que esteja sofrendo a ilegalidade ou abuso de poder por uma autoridade. O juiz analisará a legalidade do ato ameaçador ou constringente à liberdade de ir e vir do indivíduo, podendo o magistrado manter ou revogar a medida que ensejou a impetração.
Dispositivos constitucionais de cabimento e restrição ao habeas corpus:
Encontra-se previsto no art.5°, inc. LXVIII, da Constituição Federal, verbis:
"conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;"
Ainda, no art. 142 § 2° da Constituição dispõe:
"Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares."
O art. 647 do Código de Processo Penal reproduz as disposições do art. 5º, inc. LXVIII e do art. 142 § 2º da Constituição Federal.
Observe que o cabimento do habeas corpus está inserido dentre as cláusulas pétreas da Constituição Federal e a ressalva quanto ao cabimento da ação em relação às punições disciplinares está no art. 142 § 2º da Constituição.
Discussão doutrinária: da impropriedade do art. 142 em face do art. 5º, inc. LXVIII, da Constituição Federal.
É necessário ressaltar que há na doutrina quem defenda que existe enorme impropriedade em considerar-se como legítima a restrição quanto ao cabimento do habeas corpus nas punições disciplinares.
O cabimento do habeas corpus "contra ilegalidade e abuso de poder" está geograficamente situado no art. 5º da Constituição Federal, ou seja, entre as cláusulas pétreas.
As cláusulas pétreas são consideradas como dispositivos constitucionais norteadores do estado democrático de direito que não podem ser modificados, alterados ou extintos pelo Poder Constituinte derivado. Demonstrando, por oportuno, a grande importância que tem no texto constitucional e no ordenamento jurídico.
Estão, por exemplo, entre as cláusulas pétreas todos os princípios constitucionais processuais penais ao qual sua possível violação é causa de nulidade absoluta do processo.
A restrição quanto ao cabimento do habeas corpus nas punições disciplinares encontra-se prevista no art. 142 da Constituição Federal limitando, deste modo, uma proteção de um direito fundamental (liberdade de locomoção).
A restrição quanto ao não cabimento de habeas corpus contra punições disciplinares está situado no art. 142 § 4° da Constituição, ou seja, no capítulo destinado às Forças Armadas.
Como sabemos os direitos e garantias fundamentais dispostos no art. 5º da Constituição Federal tem hierarquia diferenciada e garantia da eternidade5 em relação aos demais direitos que constam da carta constitucional. Os dispositivos do art. 5º da Constituição são hierarquicamente superiores a todos os demais artigos da Constituição.
Deste modo, não poderiam os demais artigos constitucionais impor restrições ao exercício dos direitos fundamentais do art. 5º da Constituição.
O art. 5º está hierarquicamente superior ao art. 142, no entanto, o art. 142 impõe restrições ao exercício do art. 5°, inc. LXVIII, da Constituição Federal. Essa é a posição de Nucci e Antônio Magalhães Gomes Filho6.
Se o art. 5º, inc. LXVIII da Constituição tivesse sido redigido com ressalva do cabimento de habeas corpus às punições disciplinares não haveria inconsistência e tampouco impropriedade legislativa.
Competência para apreciação do habeas corpus em punições disciplinares militares:
A Justiça Federal é competente para o conhecimento de habeas corpus em que sejam pacientes os militares das Forças Armadas. Neste sentido:
"RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. INFRAÇÃO DISCIPLINAR. PUNIÇÃO IMPOSTA A MEMBRO DAS FORÇAS ARMADAS. CONSTRIÇÃO DA LIBERDADE. HABEAS CORPUS CONTRA O ATO. JULGAMENTO PELA JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO. IMPOSSIBILIDADE. INCOMPETÊNCIA. MATÉRIA AFETA À JURISDIÇÃO DA JUSTIÇA FEDERAL COMUM. INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 109, VII, e 124, § 2º. I - À Justiça Militar da União compete, apenas, processar e julgar os crimes militares definidos em lei, não se incluindo em sua jurisdição as ações contra punições relativas a infrações (art. 124, § 2º, da CF). II - A legalidade da imposição de punição constritiva da liberdade, em procedimento administrativo castrense, pode ser discutida por meio de habeas corpus. Precedentes. III - Não estando o ato sujeito a jurisdição militar, sobressai a competência da Justiça Federal para o julgamento de ação que busca desconstituí-lo (art. 109, VII, CF). IV - Reprimenda, todavia, já cumprida na integralidade. V - HC prejudicado." (STF; RHC 88543 / SP - SÃO PAULO; Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI; Julgamento: 03/04/2007; Primeira Turma)
Para os militares da Polícia Militar e para os militares dos Bombeiros é competente para o conhecimento de tais ações a Justiça Estadual.
Restrições Constitucionais quanto ao cabimento do habeas corpus e períodos de exceção:
As restrições quanto ao cabimento do habeas corpus estão especificadas nos art. 136 (estado de defesa), 137 (estado de sítio) e 142 § 2° (punições disciplinares militares) da Constituição Federal.
Muito embora os arts. 136 e 137 que se referem ao estado de defesa (art. 136, CF) e ao estado de sítio (art. 137, CF), não façam a restrição expressa quanto ao cabimento do habeas corpus é de se notar que durante a vigência dos referidos períodos de exceção muitos direitos e garantias individuais são suspensos.
Durante os períodos de exceção muitos direitos são suspensos sendo que ordens podem ser emanadas e diversas medidas podem ser impostas pelas autoridades podendo resultar, por oportuno, em constrições à liberdade. Essas constrições à liberdade durante a época excepcional são consideradas como medidas legítimas e terminam por afastar a utilização do habeas corpus.
Do ato administrativo e a jurisdição militar:
Determina a Constituição da República Federativa do Brasil em seu art. 37 que:
"A administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)"
Pouco importa se sob jurisdição civil ou militar os atos administrativos para que tenham validade jurídica7 devem estar revestidos de elementos estruturais essenciais. São esses elementos: competência, finalidade, forma, motivo e objeto.
A falta de um dos requisitos do ato administrativo pode levar a invalidação do ato praticado questionando a sua ilegalidade e possibilitando a anulação do ato pelo Poder Judiciário.
Sabemos que ato jurídico é toda manifestação de vontade que tenha por finalidade adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos (Código Civil art. 81), dependendo, para sua validade, de agente capaz, objeto lícito e forma prescrita em lei.
Deste modo, temos que competência é a capacidade atribuída a alguém de praticar atos em nome da instituição a qual é subordinado.
Não é competente quem simplesmente o deseja, mas quem a norma assim o capacita e permite. A lei define a atribuição, fixa seus limites, conferindo, pois, a competência.
A Administração Pública é exercida através de seus prepostos que na Administração Civil é exercida pelos servidores públicos civis, e na Administração Pública Militar é exercida pelos militares.
Na década passada, a classificação dos servidores públicos obedecia a uma divisão imposta pela própria Constituição, qual seja, a dos servidores públicos civis e a dos servidores públicos militares. Sendo, ainda, os servidores públicos militares divididos em militares das Forças Armadas (art. 142,§3°, CF) e os Policiais Militares e Bombeiros Militares dos Estados e do Distrito Federal e Territórios (art.42 e parágrafos da CF).
A partir da Emenda Constitucional nº. 18, datada de 05 de fevereiro de 1988, o legislador constituinte derivado modificou a denominação de servidores públicos civis apenas para servidores públicos e renomeou os servidores públicos militares, em somente militares àqueles das Forças Armadas (art. 142, § 3°, CF) e, ainda, de militares dos estados, o contingente das Polícias Militares dos Estados e do Distrito Federal e Territórios e dos Corpos de Bombeiros Militares (art. 42, caput, CF).
Sendo assim, o Soldado, o Tenente, o Cabo, o Coronel, o Almirante, o Brigadeiro, o General etc. são militares das Forças Armadas e, por conseguinte, servidores públicos, em sentido lato.
O mesmo se aplica aos Policiais Militares e Bombeiros dos estados, ou seja, são servidores públicos em sentido lato.
O Comandante é o chefe da Organização Militar, servidor público em sentido lato, condutor de seus subordinados, sendo da sua integral responsabilidade as decisões que tomar, pelas ordens que emitir e pelos atos que praticar no exercício do seu Comando e na administração que implementar.
O ato administrativo, em sua forma, emanado por autoridade competente, poderá ser escrito, ou oral ou por símbolos, em especial nas hipóteses emergenciais ou de urgência. A forma escrita é, porém, a usual.
Outro requisito é o motivo ensejador do ato administrativo, ou seja, a sua causa. São as circunstâncias de fato e o fundamento jurídico (o fato e a base legal).
A indicação do motivo é obrigatória em atos vinculados e dispensável nos discricionários (por exemplo, na exoneração de ministros de Estado). A motivação, porém, constitui regra obrigatória, dispensada em casos excepcionais.
Aplica-se a chamada teoria dos motivos determinantes sempre que o ato, a despeito de ser discricionário, contiver motivos indicados, aos quais tornar-se-á vinculado. Assim, se apresentados motivos na feitura do ato discricionário, a esses motivos ele estará vinculado. A inexistência ou a incorreção verídica dos motivos levará a sua invalidação. O ato discricionário, quando motivado, fica vinculado ao motivo que lhe serviu de suporte, com o que, se verificado ser o mesmo falso ou inexistente, deixa de subsistir.
O objeto, também denominado por alguns autores de conteúdo, é a alteração no mundo jurídico que o ato administrativo se propõe a processar. Significa, como informa o próprio termo, o objeto imediato da vontade exteriorizada pelo ato, a proposta, enfim, do agente que manifestou a vontade com vistas a determinado alvo.
Pode o ato administrativo consistir na aquisição, no resguardo, na transferência, na modificação, na extinção ou na declaração de direitos, conforme o fim a que a vontade se preordenar, além de decorrer de expressa previsão legal.
Para ser válido o ato deve possuir objeto lícito e moralmente aceito. A licitude é, pois, o requisito fundamental de validade do objeto, exigível, como é natural, também para o ato jurídico.
Por derradeiro, a que se verificar a finalidade do ato administrativo. A lei ou a norma regulamentar fixa a finalidade, que sempre irá retratar o interesse público. Por assim dizer, a finalidade sempre será pública. Jamais o agente optará ou elegerá a finalidade do ato; ela sempre será estabelecida, ainda que implicitamente, na norma de direito. Seu desvio leva à invalidação do ato e caracteriza o desvio de finalidade.
Restrição do art. 142 § 2º em face do art. 5º, inc. LXVIII da Constituição Federal:
O art. 5º, inc. LXVIII c.c. art. 142 § 2° da Constituição que é reproduzido pelo art. 647, caput, do Código de Processo Penal brasileiro.
Tais artigos restringem a utilização do habeas corpus, desde que o objeto de tais ilegalidades ou abusos de poder não sejam punições disciplinares, verbis:
"sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar."
O leitor desatento, numa primeira avaliação, teria a certeza de não haver a possibilidade de impetração de habeas corpus contra punições disciplinares. Todavia o art. 142 § 2º da Constituição federal não afasta o controle judicial da legalidade do ato administrativo. Sendo assim, a análise quanto ao cabimento de habeas corpus em punições disciplinares não poderá deve ser tão superficial.
Possibilidade de cabimento do habeas corpus X restrições ao direito de ir e vir:
São pressupostos ao cabimento do habeas corpus em punições disciplinares a existência de:
a) Restrição ao direito de ir e vir (atual ou eminente); E
b) Ato administrativo viciado8.
São modalidades de punições disciplinares9:
• A Repreensão (verbal e por escrito; particular e em público);
• Detenção até 30 dias;
• Advertência;
• Impedimento Disciplinar;
• Dispensa das funções de atividade;
• Serviço extraordinário;
• Prisão (fazendo serviço até 30 dias; sem fazer serviço até 15 dias; em separado até 10 dias)
• Licenciamento a bem da disciplina;
• Exclusão a bem da disciplina.
• Desligamento do curso10.
No entanto, apenas configuram restrição ao direito de ir e vir as punições disciplinares que seguem:
• Detenção até 30 dias;
• Prisão (fazendo serviço até 30 dias; sem fazer serviço até 15 dias; em separado até 10 dias)
1. Cabimento de habeas corpus em punição disciplinar que não envolve o direito de ir e vir:
A punição disciplinar militar que não envolve a liberdade de ir e vir jamais comportará a impetração de habeas corpus. Havendo interesse em recorrer das punições aplicadas deverá o militar esgotar a instância administrativa e se, ainda assim, perdurar a insatisfação cabe socorrer-se do poder judiciário.
Neste sentido são os julgados:
CRIMINAL. HC. SANÇÃO DISCIPLINAR MILITAR. PRISÃO. CUMPRIMENTO. INEXISTÊNCIA DE OFENSA OU AMEAÇA À LIBERDADE DE IR E VIR. ORDEM NÃO CONHECIDA.
I. Em relação à punição disciplinar militar, só se admite a análise da legalidade do ato, via habeas corpus, quando encontrar-se ameaçada a liberdade de locomoção do cidadão.
II. Cumprimento da sanção disciplinar imposta ao paciente.
III. Inexistindo ofensa ou ameaça ao direito de ir e vir do paciente, não se justifica a utilização do writ.
IV. Ordem não conhecida. (STJ; RHC 14906 / DF; Ministro GILSON DIPP; QUINTA TURMA; data do julgamento: 01/04/2004)(grifei)
"HABEAS CORPUS. MILITAR. SANÇÃO DISCIPLINAR (PRISÃO). PACIENTE REFORMADO. COAÇÃO ATUAL E IMINENTE INEXISTENTE. AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR. WRIT NÃO CONHECIDO.
(...)
2. A ação de Habeas Corpus só pode ser instaurada quando se constatar coação ilegal atual e iminente à liberdade de ir e vir, o que não ocorre no caso concreto, pois, segundo ressai do acórdão proferido pela autoridade ora apontada como coatora, o paciente foi reformado.
3. Destarte, não sendo atual ou iminente; ao contrário, sequer se divisando a possibilidade de cumprimento da referida punição, falece interesse na presente impetração.
4. Writ não conhecido, em consonância com o parecer ministerial." (STJ; HC 80852 / RS; Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO; QUINTA TURMA; data do julgamento: 27/03/2008)(grifei)
Exemplificando:
O militar da Aeronáutica que se apresentou em serviço com cabelos compridos, cometendo a transgressão disciplinar do art. 10, nº. 56, do Decreto nº. 76.322, de 22 de setembro de 1975 RDAer, qual seja, "ser descuidado na apresentação pessoal e no asseio do corpo", foi licenciado a bem da disciplina11.
O licenciamento não constitui restrição ao direito de ir e vir do militar.
Tal militar tendo interesse em recorrer da punição aplicada deverá esgotar a instância administrativa e se, ainda assim, perdurar a insatisfação cabe socorrer-se do poder judiciário. Neste caso, militar da Aeronáutica, a competência será da Justiça Federal.
2. Cabimento de habeas corpus em punição disciplinar que envolva o direito de ir e vir:
Via de regra, a impossibilidade de cabimento de habeas corpus se justifica pela aplicação dos princípios da hierarquia e da disciplina, pilares das instituições militares, evitando que as punições aplicadas pelos militares hierarquicamente superiores possam ser objeto de impugnação e discussão pelos subordinados.
Ocorre que o não cabimento do habeas corpus não deve ser absoluto. Temos aqui duas possibilidades:
a) Cabimento de habeas corpus em prisão disciplinar que obedeceu aos requisitos de validade dos atos administrativos:
Se a prisão disciplinar obedeceu aos requisitos de legalidade, competência, previsão legal, observância das formalidades legais e aos prazos de fixação das medidas restritivas de liberdade, por obvio, para prestigiar e consagrar os princípios da hierarquia e da disciplina, não caberá impetração de habeas corpus.
Nesta hipótese temos constrição de liberdade de ir e vir (detenção ou prisão) conjugado com ato administrativo perfeito e livre de vícios.
Não caberá habeas corpus quando se estiver questionando a conveniência e a oportunidade da medida constritiva de liberdade, ou seja, o mérito da punição disciplinar.
Neste sentido é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
"RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MATÉRIA CRIMINAL. PUNIÇÃO DISCIPLINAR MILITAR. Não há que se falar em violação ao art. 142, § 2º, da CF, se a concessão de habeas corpus, impetrado contra punição disciplinar militar, volta-se tão-somente para os pressupostos de sua legalidade, excluindo a apreciação de questões referentes ao mérito. Concessão de ordem que se pautou pela apreciação dos aspectos fáticos da medida punitiva militar, invadindo seu mérito. A punição disciplinar militar atendeu aos pressupostos de legalidade, quais sejam, a hierarquia, o poder disciplinar, o ato ligado à função e a pena susceptível de ser aplicada disciplinarmente, tornando, portanto, incabível a apreciação do habeas corpus. Recurso conhecido e provido." (STF; RE 338840/RS; Rel. Min. ELLEN GRACIE; data do julgamento: 19/08/2003; Segunda Turma) (grifei)
Também se harmonizam as decisões do Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL PENAL. MILITAR. HABEAS-CORPUS. PRISÃO DISCIPLINAR.
ART.142, §2º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
- Consoante o disposto no art. 142, §2º, da Constituição Federal, incabível o uso do habeas-corpus em relação a punições disciplinares militares.
- A restrição é limitada ao exame do mérito do ato administrativo, sendo viável, portanto, a utilização do remédio tutelar constitucional da liberdade de locomoção, relativamente aos víciosde legalidade, entre os quais, a competência do agente, o direito de defesa e as razões em que se apoiou a autoridade para exercer a discricionariedade.
- Na hipótese em que se ataca o mérito das razões que ensejaram a imposição da penalidade, o tema situa-se fora do alcance do habeas-corpus.
- Recurso ordinário desprovido. (STJ; RHC 9658 / RJ; Ministro VICENTE LEAL; SEXTA TURMA; data do julgamento: 11/04/2000) (grifei)
- HABEAS-CORPUS. MILITAR. PENA DISCIPLINAR. ART. 142, PAR. 2., DA LEI MAGNA.
- INCABIVEL, NOS TERMOS DO ART. 142, PAR. 2., DA CARTA DA REPUBLICA, HABEAS-CORPUS EM RELAÇÃO A PUNIÇÕES DISCIPLINARES MILITARES.
- A RESTRIÇÃO, TODAVIA, CIRCUNSCREVE-SE AO EXAME DE MERITO. OS ASPECTOS EXTRINSECOS DO ATO QUE APLICOU A PUNIÇÃO DISCIPLINAR PODEM, CONTUDO, SER OBJETO DE APRECIAÇÃO PELA VIA DO MANDAMUS.
- PEDIDO INDEFERIDO. (STJ; HC 5397 / DF; Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA; TERCEIRA SEÇÃO; data do julgamento: 28/05/1997) (grifei)
Também, neste sentido, é a Súmula nº. 694 do Supremo Tribunal Federal, verbis:
"NÃO CABE 'HABEAS CORPUS' CONTRA A IMPOSIÇÃO DA PENA DE EXCLUSÃO DE MILITAR OU DE PERDA DE PATENTE OU DE FUNÇÃO PÚBLICA."
Exemplificando:
O soldado da Marinha que permutou serviço sem autorização do superior, cometendo a transgressão disciplinar do art. 7, nº. 17, do Decreto nº. 88.545, de 26 de julho de 1983, foi punido com a pena de prisão de 2 dias. Estão presentes todos os requisitos de validade do ato administrativo.
A prisão constitui restrição ao direito de ir e vir do militar e estão presentes todos os requisitos de validade do ato administrativo.
Tal militar tendo interesse em recorrer da punição aplicada deverá esgotar a instância administrativa, não comportando, por oportuno, a impetração de habeas corpus.
b) Cabimento de habeas corpus em prisão disciplinar que não obedeceu aos requisitos de validade dos atos administrativos:
Se a prisão disciplinar não obedeceu aos requisitos de validade dos atos administrativos, quais sejam, legalidade, competência, previsão legal, observância das formalidades legais e aos prazos de fixação das medidas restritivas de liberdade, e impôs constrição a liberdade do militar,nestas hipóteses, caberá sim a impetração do habeas corpus.
Neste sentido se firma a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
"AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ESTADO DE RONDÔNIA. POLICIAIS MILITARES. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. LICENCIAMENTO EX OFFICIO. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. A jurisprudência da corte tem se firmado no sentido de que a ausência de processo administrativo ou a inobservância aos princípios do contraditório e da ampla defesa torna nulo o ato de demissão de servidor público, seja ele civil ou militar, estável ou não. Agravo regimental a que se nega provimento."(RE-AgR 196554/RO; Rel. Min. EROS GRAU; Julgamento em: 26/04/2005; Primeira Turma) (grifei)
No mesmo sentido é a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
"MILITAR DA RESERVA. ATIVIDADE PRIVADA. PUNIÇÃO DISCIPLINAR.
- HABEAS CORPUS. CABIVEL O "WRIT", NO AMBITO DAS INDAGAÇÕES FORMAIS DOS PREDICADOS LEGAIS DO ATO DISCIPLINAR, RESTA DEFERI-LO, EM FACE DAS VERIFICADAS CARENCIAS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E DA HIERARQUIA SOBRE ATOS DA VIDA CIVIL DO MILITAR-EMPRESARIO." (STJ; HC 2015 / DF; Ministro JOSÉ DANTAS; TERCEIRA SEÇÃO; data do julgamento: 06/10/1994)
"CRIMINAL. RHC. PUNIÇÃO DISCIPLINAR MILITAR. LIBERDADE DE IR E VIR. INDÍCIOS DE CRIME MILITAR. INSTAURAÇÃO DE SINDICÂNCIA. OFENSA AO DEVIDO PROCESSO LEGAL. INQUÉRITO POLICIAL MILITAR. VIA ADEQUADA. RECURSO PROVIDO. A jurisprudência desta Corte orienta-se no sentido de que, em se tratando de punição disciplinar por transgressão militar, só se pode admitir a análise da legalidade do ato, via habeas corpus, quando se encontrar em jogo a liberdade de ir e vir do cidadão, que é a hipótese dos autos. Verificada a presença de indícios de infração penal, a instauração de sindicância configura ofensa ao devido processo legal e, em conseqüência, está eivada de vício, pois a via adequada para tal apuração é o inquérito policial militar. Sobressai ilegalidade flagrante no procedimento atacado, no tocante à deficiência da defesa do paciente por ofensa ao devido processo legal. Deve ser cassado o acórdão recorrido para restabelecer a decisão do Julgador de 1º grau concessiva de habeas corpus ao recorrente. Recurso provido, nos termos do voto do Relator.(STJ; RHC 17422 / RN; Ministro GILSON DIPP; QUINTA TURMA; data do julgamento: 26/09/2006)
Nesta hipótese temos constrição a liberdade de ir e vir conjugada com a violação aos pressupostos de validade do ato jurídico.
Lembrando, não se discute a oportunidade e a conveniência da punição disciplinar, ou seja, o mérito da punição, mas tão somente a violação aos pressupostos de validade do ato jurídico.
Tais hipóteses podem ser consideradas absurdas ou teratológicas, uma vez que o ato administrativo é emanado, ao menos, in tese, por servidor público (civil ou militar) preposto da administração e juridicamente vinculado aos ditames do art. 37 da Constituição da República que formalmente prescreve:
"A administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)"
No entanto, tais violações podem ocorrer. Vejamos:
1. A prisão disciplinar que não obedeceu aos requisitos de legalidade:
Exemplificando:
O soldado do Exército que fingiu estar acometido de doença para não participar de formatura, cometendo a transgressão disciplinar do nº. 18, do Decreto nº. 4.346/2002, foi punido com a pena de detenção de 2 dias. No entanto a prova da transgressão disciplinar foi obtida mediante escuta telefônica não autorizada por autoridade judiciária.
A prisão constitui restrição ao direito de ir e vir do militar e não está presente o requisito de validade do ato administrativo referente à legalidade na obtenção da prova.
Tal militar poderá impetrar habeas corpus, pois:
• Está na iminência de sofrer coação ao seu direito de ir e vir, e
• Para contestar a legalidade do ato administrativo viciado (prova produzida por meio ilícito) que resultou na punição imposta.
2. A prisão disciplinar que não obedeceu aos requisitos de competência, ou seja, quem determinou a punição não tem competência para punir (pessoa do mesmo nível hierárquico ou menor hierarquicamente).
Exemplificando:
O tenente da Aeronáutica que abriu as dependências do prédio do Comando sem autorização para tanto, cometendo a transgressão disciplinar do art. 7º, nº. 89, do Decreto nº. 76.322/1975, foi punido com a pena de prisão de 2 dias.
Tal punição foi determinada por Major que não exercia o Comando da Organização Militar.
Preceitua o art. 46 do Decreto nº. 76.322/1975:
"É vedado às autoridades abaixo do Comandante da organização Militar recolher à prisão qualquer militar, salvo nos casos de crime ou falta grave, justificando o seu ato."
Adentrar em recinto sem permissão não constitui falta grave para os efeitos do art. 12.
Tal militar poderá impetrar habeas corpus, pois:
• Está na iminência de sofrer coação ao seu direito de ir e vir, e
• Para contestar a competência do ato administrativo exarado pelo Major que determinou a prisão do tenente. O Major não exercia o Comando da Organização Militar e, portanto, não tinha competência para determinar a prisão.
3. A prisão disciplinar que não obedeceu aos requisitos de previsão legal ou ausência total de justa causa:
Exemplificando:
O Capitão de Marinha que estando doente deixa de participar de solenidade militar a qual estava escalado. Mesmo apresentando atestados médicos, o Comandante da Organização Militar, com objetivo claro de perseguição, imputa ao Capitão prática de transgressão disciplinar do art. 7° nº. 45, do Decreto nº. 88.545/1983, punindo o Capitão com a pena de prisão de 2 dias.
A prisão constitui restrição ao direito de ir e vir do militar e não está presente a justa causa para a punição disciplinar visto que o Capitão estava realmente doente.
Tal militar poderá impetrar habeas corpus, pois:
• Está na iminência de sofrer coação ao seu direito de ir e vir, e
• Para contestar a justa causa que resultou na punição imposta, visto que o militar não estava simulando doença.
4. A prisão disciplinar que não obedeceu aos requisitos de observância das formalidades legais:
Sem a observância do que dispõem os arts. 26 e seguintes do Decreto nº. 88.545/1983, 34 e seguintes do Decreto nº. 76.322/1975, e 34 e seguintes do Decreto nº. 4.346/2002(clique aqui).
Exemplificando:
O soldado do Exército que fingiu estar acometido de doença para não participar de formatura, cometendo a transgressão disciplinar do nº. 18, do Decreto nº. 4.346/2002 , foi punido com a pena de detenção de 2 dias. No entanto, a nota de culpa não consta descrição dos fatos que ensejaram a punição em total violação ao que prescreve o art. 34 § 1º inciso I do Decreto nº. 4.346/2002.
A prisão constitui restrição ao direito de ir e vir do militar e, a nota de punição do militar, não foi elaborada em conformidade com o que prescreve a lei.
Tal militar poderá impetrar habeas corpus, pois:
• Está na iminência de sofrer coação ao seu direito de ir e vir, e
• Para contestar o ato administrativo que não obedeceu aos requisitos formais onde a nota de punição do militar não foi elaborada em conformidade com o que prescreve a lei.
5. A prisão disciplinar que não obedeceu aos prazos de fixação das medidas restritivas de liberdade, ou seja, quando alguém estiver detido por mais tempo do que determina a lei:
Exemplificando:
O tenente da Aeronáutica que abriu as dependências do prédio do Comando sem autorização para tanto, cometendo a transgressão disciplinar do art. 7º, nº. 89, do Decreto nº. 76.322/1975, foi punido com a pena de prisão de 2 dias. No entanto, o militar já está a 10 dias preso.
Tal militar poderá impetrar habeas corpus, pois:
• Está na iminência de sofrer coação ao seu direito de ir e vir, e
• Para contestar a não observância aos prazos de fixação das medidas restritivas de liberdade.
Conclusão:
Deste modo, e por todas as razões acima exposta, não há que se falar na vedação do art. 142 § 2° ao art. 5º, inciso LXVIII da Constituição, quando estiver em discussão a liberdade de ir e vir do militar submetido a um ato administrativo de punição disciplinar que não se reveste de elementos estruturais essenciais de validade, quais sejam, competência, finalidade, forma, motivo e objeto.
Bibliografia:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 13ª edição revista, ampliada e atualizada. Lúmen Júris. Rio de Janeiro: 2005.
DE CARVALHO, Rebecca Aguiar Eufrosino da Silva. Da (i) legalidade do ato administrativo que não concede licenciamento para o militar da ativa que está sendo processado pela Justiça Militar da União. (clique aqui) Acesso em: 20/11/2008.
FEITOZA, Denílson. Direito Processual Penal. Teoria, Crítica e Práxis. 5ª edição, revista, ampliada e atualizada. Editora Impetus: Rio de Janeiro, 2008.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. Editora Revista dos Tribunais. 4ª edição revista, atualizada e ampliada, 2008.
PAULA FILHO, Afrânio Faustino de. Organização Administrativa Brasileira. Direito Militar. Universidade Castelo Branco – UCB - Fundação Trompowsky. Rio de Janeiro: 2008.
ROMEIRO, Jorge Alberto. Curso de Direito penal Militar (Parte geral). São Paulo: Editora Saraiva, 1994.
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1Conforme termo adotado pelo art. 142 § 2º da Constituição Federal.
2Reproduzido pelo art. 647, caput, do Código de Processo Penal brasileiro.
3FEITOZA, Denílson. Direito Processual Penal. Teoria, Crítica e Práxis. 5ª edição, revista, ampliada e atualizada. Editora Impetus: Rio de Janeiro, 2008. Pág. 995.
4NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. Editora Revista dos Tribunais. 4ª edição revista, atualizada e ampliada, 2008. Pág. 932.
5Art. 60 § 4° inc. IV, da CF, verbis: “A constituição poderá ser emendada mediante proposta: (...) § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) IV- os direitos e garantias individuais. (...)”
6NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. Editora Revista dos Tribunais. 4ª edição revista, atualizada e ampliada, 2008. Pág. 932.
7Paula Filho, Afrânio Faustino de. Organização Administrativa Brasileira. Direito Militar. Universidade Castelo Branco – UCB - Fundação Trompowsky. Rio de Janeiro: 2008. Pág. 98/101.
8Competência, finalidade, forma, motivo e objeto.
9Decreto nº. 76.322, de 22 de setembro de 1975 (Regulamento Disciplinar da Aeronáutica); Decreto nº. 4346 de 26 de agosto de 2002 (Regulamento Disciplinar do Exército); Decreto nº. 88.545 de 26 de julho de 1983 (Regulamento Disciplinar da Marinha);
10No caso de cadetes e alunos de escola de formação e preparação.
11Nos termos do art. 15, nº. 4.
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*Advogada
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