Migalhas de Peso

A politização do caso Cesare Battisti

O pedido italiano — por enquanto negado pelo Brasil —, de extradição do ex-terrorista italiano Cesare Battisti é mais um capítulo que comprova a necessidade de uma unificação de regras sobre o convívio internacional, inclusive na área penal.

3/2/2009


A politização do caso Cesare Battisti

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues*

O pedido italiano — por enquanto negado pelo Brasil —, de extradição do ex-terrorista italiano Cesare Battisti é mais um capítulo que comprova a necessidade de uma unificação de regras sobre o convívio internacional, inclusive na área penal.

O assunto tem relação com a inevitabilidade, ou não, de um governo global, cuja pertinência deixo agora de lado porque sei o quanto o tema provoca bolhas emocionais virulentas, aumentando a pressão arterial dos zelosos vigilantes da soberania sem limites, adeptos do "Aqui, neste país, mando eu! Pouco importa o que acontece lá fora!".

Ocorre que o outro país, o de "lá fora", pensa da mesma forma, mas em sentido diametralmente oposto. O resultado é uma divergência, estribada não no esforço honesto da razão, mas na preferência ideológica do partido que está no poder, divergência que pode paralisar relações diplomáticas e comerciais que valem muito mais que o problema pessoal de um único indivíduo.

Deixando as tentadoras generalizações de lado, vejamos o que ocorre com Cesare Battisti. Trata-se de um cidadão inteligente e ousado que dedicou-se, durante alguns anos, a atividades terroristas de esquerda, participando de assaltos e homicídios. Processado na Itália, foi condenado à prisão perpétua, por quatro homicídios. Em vez de se defender no foro próprio — como seria o normal —, preferiu fugir para a França e outros lugares, sendo condenado à revelia.

Note-se que nenhum Estado, compreensivelmente, aceita que pessoas acusadas de crime simplesmente fujam, com isso livrando-se das consequências de seus atos. Essa fuga só se justifica em países de governo extremamente violento e primitivo, em que a justiça é uma óbvia farsa. Alguns países da África, sob regime ditatorial — Idi Amin Dada, por exemplo, em Uganda, ou Saddam Hussein, no Iraque —, não dispunham de Justiça confiável, sendo aceitável a justificativa do réu de não comparecer a julgamento. Seus juízes, apavorados, decidiriam conforme ordenava o ditador.

Não é o caso, porém, da Itália, um dos países mais adiantados do planeta em matéria de Direito e Justiça. Dir-se-á, até, que talvez exagere — a justiça italiana tem fama de demorada — na proteção dos direitos dos réus, tantos são os remédios jurídicos oferecidos a quem figura na posição de acusado. O fato de não querer enfrentar o julgamento no seu país não estabelece nenhuma presunção de inocência a favor de Cesare Battisti. Pelo contrário.

Se Cesare Battisti tivesse se apresentado a julgamento, na Itália, teria tido inúmeros criminalistas, altamente competentes, oferecendo-se para defendê-lo, até mesmo de graça, considerando a repercussão do caso. Organizações de esquerda não poupariam recursos financeiros para vê-lo inocentado. Sua defesa seria também uma forma indireta de defesa do socialismo, uma ideia bastante generosa, na sua essência. Mas ele preferiu escapar. Talvez porque consciente de que suas motivações não teriam aprovação, nem de seus julgadores nem da opinião pública italiana majoritária. Depois de alguns anos em outros países acabou refugiando-se no Brasil, onde acabou sendo preso.

Devido a sua condição de autor de livros policiais — não o li mas deve ter talento — conquistou a simpatia de intelectuais, um fenômeno muito comum. Quem gosta dos livros de alguém acaba gostando também do autor. É quase inevitável. Principalmente se não mantém com ele frequentes contatos — escritores também têm inúmeros defeitos e manias. No caso de Battisti, ele, além de autor de sucesso é também "de esquerda", o que duplicou o número de seus admiradores. Daí a grande onda de apoio, na mídia, à concessão de refúgio político ao ex-terrorista.

Leitores mais velhos lembram-se, certamente, do que ocorreu com Caryl Chessman, o americano "bandido da luz vermelha" que, preso em 1948, em Los Angeles, foi condenado a morrer na câmara de gás. Era acusado de roubos e estupros na periferia de Hollywood. No "corredor da morte" estudou Direito por conta própria e apresentou dezenas de recursos — protelando sua execução por doze anos. Nessa espera, escreveu vários "best sellers" muito interessantes — li alguns — conseguindo enorme apoio da opinião pública que, convencida — ou seduzida... — da inocência do autor, pressionou intensamente para que o escritor não fosse executado. Até mesmo o jurista Nelson Hungria, respeitadíssimo e brilhante ministro do STF esforçou-se pessoalmente — com cartas ao governador da Califórnia, artigos e conferências — para livrá-lo da execução. Esse esforço, no entanto, não foi suficiente para impedir — o americano tem o coração mais duro... — que morresse aspirando o gás letal, o que aconteceu em maio de 1960. No Brasil, essa pressão teria sido bem sucedida.

No caso de Cesare Battisti o que ele tem "a seu favor" — as aspas porque tento ser imparcial — é ser um escritor de sucesso, de esquerda (com motivação política nos homicídios), e ter abandonado o terrorismo há mais de vinte anos. Ele já "não seria a mesma pessoa", mesmo se tivesse participado dos homicídios.

Acessando, porém, na internet, o jornal francês "L’Express.fr", de 28.1.09, em busca de informações mais precisas, deparei-me com a entrevista de Armando Spavaro, procurador adjunto de Milão, Itália, que funcionou no caso e informou, com bastante convicção, que Battisti pessoalmente matou duas pessoas; participou, como co-autor presencial da morte de uma terceira, e decidiu, ainda que não presente, da morte da quarta vítima. Essas duas últimas vítimas foram mortas no mesmo dia, em locais separados, distantes um do outro — segundo o referido procurador —, como uma "lição" contra aqueles que se opunham ao PAC – Proletários Armados pelo Comunismo.

As duas últimas vítimas — dos quatro já referidos —, seriam um joalheiro de Milão, Pierluigi Torregiani, e um açougueiro de Veneza, Lino Sabbadin. Ambos teriam sido mortos porque reagiram quando assaltados pelos terroristas do PAC. Segundo o mencionado procurador, eles teriam que morrer no mesmo momento, no mesmo dia, como "uma lição do PAC para quem resistia aos proletários forçados a roubar para sobreviver". Como Battisti não poderia estar no mesmo momento, matando em duas cidades diferentes, teria estado presente a uma execução e ordenado a outra. Uma espécie de arrogante ubiquidade criminosa. Se verdadeiro o fato — e o réu deveria ter se apresentado para tentar provar a falsidade da acusação — é compreensível a revolta e empenho das autoridades italianas em querer a prisão do ex-terrorista.

Infelizmente, quando entra o fator ideológico no exame de qualquer questão, o resultado fica sempre desvirtuado. A preocupação com a justiça evapora-se, certamente consequência do calor com que o tema é examinado. Isso explica porque a esquerda, em peso, é favorável ao asilo político dado ao ex-terrorista de esquerda. Ela nem mesmo, parece, se interessa pelos "detalhes" do caso. Não quer nem se informar. Se se informasse, talvez fosse favorável a um novo julgamento, a uma tentativa de revisão do processo, se isso fosse tecnicamente viável. Não acredito que, com toda a repercussão internacional do caso, e vigilância da mídia, Battisti fosse torturado na Itália, caso a ela retornasse para novo julgamento ou cumprimento da sentença de prisão — talvez limitada ao prazo máximo permitido pela lei brasileira. O Brasil não admite a prisão perpétua.

O fato de a Itália estar sendo agora governada por Silvio Berlusconi, um homem abertamente de direita, não seria justificativa para a proteção incondicional dos interesses de Battisti. A justiça italiana, pela sua reputação, não seria submissa a esse político, a ponto de se transformar em mero "pau mandado" de Berlusconi. Um terrorista de extrema direita, Zorzi, foi condenado na Itália e está refugiado no Japão.

Se o STF conceder a extradição, solicitada pela Itália, o problema estará resolvido. Se não conceder, veremos envenenada uma relação internacional que até agora tem sido boa para ambos os países. O impasse, porém, paradoxalmente, terá algo de bom: forçar os juristas da área internacional — e os governos, de modo geral —, a encarar de frente a necessidade de uma norma geral que unifique os critérios substanciais relacionados com a extradição. O tempo de prescrição das penas, por exemplo. Soberania é bom, em tese, mas em excesso, mata. Ou envenena, como é o caso da relação Brasil-Itália.

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*Desembargador aposentado do TJ/SP e Associado Efetivo do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo






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