O credor fiduciário e a recuperação judicial de empresas
Alexei Bonamin*
No Brasil, a falência e recuperação de empresas são reguladas pela Lei 11.101/2005 (clique aqui), cujo Projeto de Lei foi debatido amplamente pelo Congresso Nacional por mais de uma década com o objetivo de aprimorar e modernizar o nosso sistema falimentar. Dentre inúmeras inovações trazidas pela Lei 11.101/2005, destacam-se os mecanismos para aumentar a capacidade de um credor reaver o seu crédito em caso de inadimplência ou insolvência do devedor. Este fortalecimento da segurança jurídica contribui tanto para a redução do custo do crédito em momentos de estabilidade econômica, como para a superação do represamento do crédito nos dias atuais.
Historicamente, o Brasil apresenta baixos índices de recuperação de crédito no caso de inadimplência ou insolvência do devedor. Diversos fatores contribuíram para reduzir a capacidade de um credor reaver o seu crédito, dentre eles, a insegurança jurídica das garantias reais, notadamente, o penhor e a hipoteca, no âmbito de uma massa falida.
Contudo, nos últimos anos, algumas iniciativas normativas foram fundamentais para fortalecer a segurança jurídica das garantias reais de um credor, especificamente, as diversas espécies de propriedade fiduciária em garantia, ao afastar o concurso de outros credores sobre a coisa objeto da propriedade fiduciária em garantia.
Neste sentido:
(i) o artigo 7º do Decreto-Lei 911/1969 (clique aqui) estabelece que na falência do devedor alienante, fica assegurado ao credor ou proprietário fiduciário o direito de pedir a restituição do bem alienado fiduciariamente;
(ii) o artigo 20 da Lei 9.514/97 (clique aqui) estipula que na hipótese de falência do devedor cedente, se não tiver havido a tradição dos títulos representativos dos créditos cedidos fiduciariamente, ficará assegurada ao cessionário fiduciário a restituição;
(iii) o artigo 32 da Lei 9.514/97 determina que na hipótese de insolvência do fiduciante, fica assegurada ao credor fiduciário a restituição do imóvel alienado fiduciariamente;
(iv) o artigo 66-B, § 4º da Lei 4.728, que foi acrescido pelo artigo 55 da Lei 10.931/2004 (clique aqui), estabelece que, no tocante à cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou sobre títulos de crédito, aplica-se o disposto no acima referido artigo 20 da Lei 9.514/97;
(v) o artigo 41 da Lei 11.076/2004 (clique aqui) estipula que é facultada a cessão fiduciária em garantia de direitos creditórios do agronegócio, em favor dos adquirentes do Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio - CDCA, da Letra de Crédito do Agronegócio - LCA e do Certificado de Recebíveis do Agronegócio - CRA, nos termos do disposto no acima referido artigo 20 da Lei 9.514/97;
(vi) o artigo 49, § 3º, da Lei 11.101/2005 dispõe que, tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais; e
(vii) o artigo 119, inciso IX, da Lei 11.101/2005 estipula que os patrimônios de afetação, como por exemplo, a propriedade fiduciária em garantia, constituídos para cumprimento de destinação específica, obedecerão ao disposto na legislação respectiva, permanecendo seus bens, direitos e obrigações separados dos do falido até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento de sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer.
Destarte, fica evidente que os normativos mencionados acima conferiram robustez jurídica às diversas espécies de propriedade fiduciária em garantia:
(i) resguardando a coisa objeto da propriedade fiduciária em garantia dos efeitos da inadimplência ou insolvência do devedor, conforme o caso, e
(ii) contribuindo para a democratização e barateamento do crédito.
Todavia, no que tange a titularidade fiduciária em garantia de direitos creditórios, também conhecida como "trava bancária", tem-se argumentado, recentemente, que os direitos creditórios, objeto de titularidade fiduciária em garantia, deveriam se sujeitar aos efeitos da recuperação judicial. Este argumento baseia-se na premissa equivocada de que coisas incorpóreas, como por exemplo, direitos creditórios, não são bens móveis. Desta forma, de acordo com tal argumento, os direitos creditórios não se enquadrariam no disposto no artigo 49, § 3º, da Lei 11.101/2005, que "apenas" teria excepcionado bens móveis e imóveis. Como mencionado acima, este dispositivo legal reza que, tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais.
Contrariamente, entende-se que o conceito de bem móvel é um conceito legal, definido pelo Código Civil em sua parte geral. Nos termos do artigo 83, inciso III, do Código Civil (clique aqui), consideram-se móveis os direitos pessoais de caráter patrimonial, de modo que não há dúvida de que, coisas incorpóreas de caráter patrimonial, tais como, direitos creditórios, são bens móveis para os efeitos legais. A este respeito, a melhor doutrina já sedimentou o entendimento de que, aos direitos creditórios, se aplica a disciplina jurídica das coisas móveis.
Ademais, tanto a propriedade fiduciária em garantia de coisas corpóreas, quanto a titularidade fiduciária em garantia de coisas incorpóreas:
(i) constítuem direito real de garantia,
(ii) possuem a mesma função, e
(iii) são espécies do gênero propriedade fiduciária.
Assim, não faz sentido diferenciar uma da outra, muito menos para efeitos de interpretação casuística do artigo 49, § 3º, da Lei 11.101/2005.
Além disso, o Parecer 534/2004 da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal, ao se manifestar sobre a Emenda 107 do Projeto de Lei da Câmara 71/2003 (Projeto de Lei 4.376/1993, na origem), posiciona-se categoricamente no sentido de que:
(i) em momento algum, o então artigo 48, § 3º (atual artigo 49, § 3º, da Lei 11.101/2005) quis diminuir a garantia da alienação fiduciária de direitos creditórios utilizada com freqüência pelas instituições financeiras para concessão de crédito, e
(ii) o então artigo 48, § 3º (atual artigo 49, § 3º, da Lei 11.101/2005) deixa claro que não há prejuízo à garantia da alienação fiduciária de direitos creditórios, o que contribui para expansão do crédito e a redução de seu custo no Brasil.
Em outras palavras, a intenção do legislador e, por conseguinte, o espírito da Lei, foi de excluir o crédito do credor fiduciário, titular fiduciário em garantia de direitos creditórios, dos efeitos da recuperação judicial, nos termos do artigo 49, § 3º, da Lei 11.101/2005.
Da mesma forma, a melhor doutrina e a jurisprudência majoritária, a saber, decisões em Agravo de Instrumento 541.816-4/4-00 e Agravo de Instrumento 548.032-4/7-00, ambas do Tribunal de Justiça de São Paulo, bem como, decisão em Agravo de Instrumento 472.495-6 do TJ/PR, já se manifestaram no sentido de que o artigo 49, § 3º, da Lei 11.101/2005, exclui o crédito do credor fiduciário, titular fiduciário em garantia de direitos creditórios, dos efeitos da recuperação judicial.
Em suma, o crédito do credor fiduciário, seja ele proprietário fiduciário em garantia de coisas corpóreas, ou titular fiduciário em garantia de coisas incorpóreas de caráter patrimonial, como direitos creditórios, não se submete aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do artigo 49, § 3º, da Lei 11.101/2005.
Argumentar que direitos creditórios, objeto de titularidade fiduciária em garantia, não são bens móveis, e que por isso deveriam se sujeitar aos efeitos da recuperação judicial, significa desconsiderar:
(i) o artigo 83, inciso III, do Código Civil,
(ii) a melhor doutrina,
(iii) a jurisprudência majoritária,
(iv) o fato de que tanto a propriedade fiduciária em garantia de coisas corpóreas, quanto a titularidade fiduciária em garantia de coisas incorpóreas, são espécies do gênero propriedade fiduciária, e
(v) a intenção do legislador e, por conseguinte, o espírito da Lei 11.101/2005.
E mais, significa adicionar um fator desestabilizador nos dias atuais de crise econômica internacional, não contribuindo para a superação do represamento do crédito.
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*Advogado da área de mercado de capitais e bancária do escritório Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr. e Quiroga Advogados
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