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O PL nº 1.893/07 e a possível aplicação de contramedidas sobre Direitos de Propriedade Intelectual

O Brasil tem apresentado destacada atuação no âmbito da Organização Mundial do Comercio (“OMC”), seja nas negociações multilaterais comerciais, seja na tentativa, via contenciosos perante o seu Órgão de Solução de Controvérsias (“OSC”), de buscar eliminar ou minimizar os efeitos de barreiras comerciais ou práticas incompatíveis com o Acordo da OMC, cujos efeitos diminuem a competitividade do produto nacional no comércio internacional.

24/11/2008


O Projeto de Lei nº 1.893/2007 e a possível aplicação de contramedidas sobre Direitos de Propriedade Intelectual por descumprimento de decisões proferidas no âmbito do Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

André Zonaro Giacchetta*

Renê Guilherme S. Medrado**

Márcio Junqueira Leite**

(i) A Possibilidade de Aplicação de Contramedidas no Âmbito de Contenciosos perante a OMC

1. O Brasil tem apresentado destacada atuação no âmbito da Organização Mundial do Comercio ("OMC"), seja nas negociações multilaterais comerciais, seja na tentativa, via contenciosos perante o seu Órgão de Solução de Controvérsias ("OSC"), de buscar eliminar ou minimizar os efeitos de barreiras comerciais ou práticas incompatíveis com o Acordo da OMC, cujos efeitos diminuem a competitividade do produto nacional no comércio internacional.

2. Nesse diapasão, a adoção de uma estratégia contenciosa perante o OSC somente faz sentido se tais demandas puderem modificar o comportamento do Estado demandado. Tal modificação poderá se dar por meio de acordos diplomáticos (expressos ou tácitos) ou pelo cumprimento (voluntário ou forçado) das decisões proferidas pelo OSC. Nesse sentido, o OSC é formado por representantes dos Membros da OMC que, por consenso, aprovam (ou não1) os relatórios produzidos pelos painéis constituídos para analisar as controvérsias estabelecidas entre Membros da OMC (os relatórios podem ser revistos do ponto de vista legal em grau de recurso pelo Órgão de Apelação da OMC).

3. Surge um problema, então, quando um determinado Membro da OMC não quer (ou não consegue) implementar uma decisão do OSC. O Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos para a Solução de Controvérsias da OMC ("ESC"), que regula os procedimentos para solução de controvérsias entre os países membros da OMC, estipula uma série de providências que poderão ser requeridas perante o OSC pelo país membro demandante contra o demandado, incluindo a aplicação de contramedidas contra tal país (a chamada "retaliação").

4. Nesse contexto se insere o pedido de retaliação por parte do Brasil perante o OSC da OMC contra os Estados Unidos da América, em razão do fato de os EUA não terem implementado as recomendações do OSC no âmbito do já bastante conhecido contencioso que discutiu a compatibilidade de determinados programas de subsídios à produção doméstica e à exportação de algodão norte-americano. O contencioso tramita – em suas diversas fases processuais – desde 2002 perante o OSC.

5. O Brasil já obteve decisão do OSC confirmando a falta de implementação da recomendação de que os programas devem ser adequados/descontinuados. O Brasil planeja, agora, obter um laudo especificando o montante sobre o qual poderá aplicar contramedidas, as quais poderão recair sobre produtos agrícolas, produtos industriais, ou até mesmo sobre serviços e direitos de propriedade intelectual, conforme autoriza o OSC. A possibilidade de aplicação de contramedidas em caso de descumprimento de recomendações/decisões do OSC encontra-se regulamentada no artigo 22 do OSC.

6. Como regra geral, o país que requerer a suspensão de concessões ou de obrigações deverá inicialmente aplicá-la no mesmo setor envolvido na disputa. Caso o país demandante demonstre que tal medida não seria "praticável ou eficaz", poderá então requerer a suspensão de obrigações previstas em outro acordo da OMC, ou seja, a chamada retaliação cruzada (artigo 22.3.'b', ESC).

7. Isso significa que caso o país demandante evidencie que a retaliação no setor onde ocorreu a violação (acordo GATT 1994 ou o Acordo sobre Agricultura, por exemplo) não seria praticável ou eficaz, ou, ainda, que a retaliação em outros setores abrangidos pelo mesmo acordo (GATT 1994) não traria os resultados pretendidos ou infligiria dano ao próprio mercado doméstico (e.g., aumento da alíquota do imposto de importação de bens importantes para a econômica nacional), poderá tal país solicitar a retaliação em outros setores cobertos pelos demais acordos da OMC, como, por exemplo, o Acordo GATS (serviços) ou Acordo TRIPS2 (direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio).

(ii) O Projeto de Lei nº. 1.893/2007 e a Regulamentação das Contramedidas no Direito Brasileiro

8. Nesse diapasão, no dia 6.8.2008, a Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei nº. 1.893/2007 ("Projeto" - clique aqui), de autoria do Deputado Paulo Teixeira (PT-SP), que dispõe sobre "medidas de suspensão e diluição temporárias ou extinção da proteção de direitos de propriedade intelectual no Brasil em caso de descumprimento de obrigações multilaterais por Estado estrangeiro no âmbito da Organização Mundial do Comércio."

9. Na definição do Projeto, os direitos de propriedade intelectual são aqueles relativos à proteção jurídica das obras de autoria, direitos de artistas e intérpretes, produtores de fonogramas e organismos de radiodifusão; marcas; indicações geográficas; patentes e modelos de utilidade; desenhos industriais; programas de computador; informações confidenciais; cultivares; topografias de circuitos integrados e demais direitos de propriedade intelectual estabelecidos pela legislação brasileira vigente.

10. As medidas a serem impostas, por decreto do Presidente da República, de forma alternada ou cumulativa são:

"I - rejeição temporária de pedidos de registro de direitos de propriedade intelectual, quando tais direitos dependerem de ato registral da autoridade administrativa competente no território nacional;

II - interrupção temporária do procedimento de análise de pedidos de registro de direitos de propriedade intelectual que já tenham sido depositados perante a autoridade administrativa competente brasileira;

III - bloqueio temporário de remessas de 'royalties' ao exterior e pagamento de assistência técnica, resultantes da exploração dos direitos de propriedade intelectual baseados em contratos vigentes concluídos entre os titulares referidos no 'caput' do artigo 3º e pessoas naturais ou jurídicas sediadas no território brasileiro;

IV - licenciamento compulsório de direitos de propriedade intelectual;

V – incremento na retribuição devida aos órgãos públicos que realizam registros de direitos de propriedade intelectual ou registros relacionados à exploração econômica do objeto proteção da propriedade intelectual, de forma discriminatória desfavorável aos titulares mencionados no artigo 3º, supra;

VI – não concessão de registro para explorar economicamente o objeto da proteção da propriedade intelectual;

VII – estabelecimento de domínio público temporário dos direitos de propriedade intelectual.

VIII – extinção temporária de direitos de propriedade intelectual."

11. Conforme prevê o Projeto, tais contramedidas poderão ser adotadas contra pessoas naturais nacionais ou domiciliadas em determinado Estado, ou pessoas jurídicas domiciliadas ou com estabelecimento efetivo em determinado Estado, quando este tenha deixado de implementar decisões e recomendações do OSC da OMC em detrimento do Brasil.

12. É preciso esclarecer, de início, que as contramedidas previstas no Projeto não podem ser decretadas de forma indiscriminada, devendo ser precedidas de todo o trâmite de um contencioso perante o OSC da OMC. Ademais, as contramedidas serão limitadas à duração do descumprimento das obrigações multilaterais por parte do país demandado (no âmbito de contencioso na OMC) e ao valor dos prejuízos por aquele causados aos legítimos interesses comerciais brasileiros3, sendo vedada qualquer cobrança retroativa ou futura, bem como a exploração de direitos de propriedade intelectual sem autorização do titular em período anterior ou posterior a imposição da contramedida. Nesse tocante, cumpre salientar ser requisito indispensável a expressa autorização do OSC para que o Brasil adote contramedidas suspendendo concessões ou outras obrigações multilaterais.

13. Como justificativa, o autor do Projeto indica que a aplicação de contramedidas suspendendo concessões de direitos de propriedade intelectual pressionaria significativamente os Estados que deixam de cumprir as decisões do OSC da OMC, na medida em que operacionalizaria, no âmbito do direito brasileiro, determinados instrumentos legais já constantes do OSC.

14. O Projeto prevê exatamente essa situação, objetivando a suspensão, diluição temporária ou extinção de direitos de propriedade intelectual previstos no TRIPS como forma de retaliação de Membros vencidos em eventuais contenciosos no âmbito da referida organização internacional e que deixaram de implementar as referidas decisões do OSC relacionadas a setores da economia abrangidos por outros acordos multilaterais.

15. O Brasil tenta, assim, seguir a estratégia do Equador, que teve autorizada pelo OSC a possibilidade de utilização do mecanismo de retaliação cruzada, mediante a imposição de barreiras aos direitos de propriedade intelectual de titulares da União Européia em virtude da manutenção de medidas no âmbito do comércio de bananas naquele mercado comum as quais foram consideradas incompatíveis com o GATT 1994 e o GATS (Processo WT/DS27/ARB/ECU, de 24.3.2000).

(iii) Análise das Contramedidas Constantes do Projeto

16. Independentemente das dificuldades de implementação e do risco de questionamento judicial que as contramedidas previstas no Projeto possam vir a enfrentar, parece-nos que algumas dessas medidas são de questionável aplicabilidade, possuindo, inclusive, efeitos adversos ao País.

17. De início, cabe ressaltar a pouca efetividade de medidas como a rejeição temporária de pedidos de registro de direitos de propriedade intelectual ou a interrupção temporária do procedimento de análise de pedidos de registro de direitos de propriedade intelectual.

18. Isso porque nem todos os direitos de propriedade intelectual dependem de registro, o qual é dispensável no caso dos direitos autorais. Nos casos onde o registro é necessário, tanto os estrangeiros como os nacionais estão habituados com a excessiva morosidade do Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI, órgão responsável pelo registro de marcas, patentes e desenhos industriais.

19. Além disso, enquanto não reconhecido pelo INPI, os depositantes possuem mera expectativa de direito e, dessa forma, optam muitas vezes por não promover grandes investimentos até efetiva concessão do direito. Assim, são grandes as chances de essas medidas não gerarem os efeitos práticos desejados, pois não afetarão de forma significativa os direitos dos oponentes comerciais.

20. Pelas mesmas razões, poderá ser inócua a não concessão de registro para explorar economicamente o objeto da proteção da propriedade intelectual. Cabe aqui ressaltar a ausência de técnica na redação dessa medida, prevista no artigo 5º, inciso, VI, do Projeto. Isso porque o registro de direitos de propriedade intelectual, quando necessário, tem por fim garantir ao seu titular um direito de exclusividade, ou seja, impedir terceiros de explorarem economicamente aquele bem. A sua ausência não impede a exploração econômica do seu objeto pelo titular do direito, como faz crer tal dispositivo.

21. É o que se dá, por exemplo, com as marcas, sinal distintivo que, caso não registrado, é de uso livre por qualquer um. Em regra, apenas após a concessão do registro, aquele signo torna-se exclusivo do seu titular.

22. Duas das contramedidas previstas no Projeto são, ainda, altamente questionáveis, ao estabelecerem o domínio público temporário dos direitos de propriedade intelectual ou a extinção temporária de direitos de propriedade intelectual4. Mais uma vez, parece ter faltado técnica ao legislador, pois os efeitos práticos do domínio público temporário ou da extinção temporária dos direitos são efetivamente os mesmos. Ou seja, caso estejam em domínio público ou sejam extintos temporariamente (se é que isso é possível), os direitos de propriedade intelectual perdem a sua principal característica, qual seja, a exclusividade.

23. Isso significa que, caso seja imposta uma dessas medidas, qualquer terceiro poderá explorar temporariamente os direitos de propriedade intelectual, cujo titular seja nacional ou sediado no país ao qual se oponha a decisão do OSC da OMC, sem qualquer remuneração. Seriam efeitos semelhantes à suspensão liminar de marca, patente ou desenho industrial, prevista na Lei da Propriedade Industrial (clique aqui).

24. Ocorre que tais medidas, além dos evidentes efeitos econômicos, encerraram uma inescapável questão moral, uma vez que, em regra, a violação de direitos de propriedade intelectual constitui crime. Assim, tal medida tornará livre a prática de ato tipificado como crime, caso imposta ainda que por um período de tempo limitado.

25. Tais medidas trariam, ainda, significativa insegurança jurídica, dificultando o combate desse ilícito, principalmente na esfera penal, já que poderia haver uma retroação dessa norma para práticas pretéritas. Enfim, o domínio público temporário ou da extinção temporária dos direitos, além de moralmente questionáveis, gerariam um tormento econômico-jurídico, sendo recomendável um amplo debate a seu respeito, ou mesmo a sua exclusão do Projeto.

26. Restariam, assim, como contramedidas efetivas e, em princípio, desprovidas de reflexos adversos imediatos:

(i) o incremento na retribuição devida aos órgãos públicos que realizam registros de direitos de propriedade intelectual;

(ii) o bloqueio temporário da remessa de "royalties" e pagamento de assistência técnica, resultantes da exploração dos direitos de propriedade intelectual; e

(iii) o licenciamento compulsório de direitos, que, ao menos em relação às patentes, têm regras definidas nos artigos 68 e seguintes da Lei da Propriedade Industrial, autorizando a exploração apenas a determinadas pessoas, mediante justa remuneração.

27. Vale lembrar que, nos termos do Projeto, as contramedidas somente poderão ser adotadas contra pessoas naturais nacionais, domiciliadas, ou com estabelecimento efetivo no Estado condenado, não afetando as subsidiárias brasileiras ou estrangeiras dessas sociedades, já que, enquanto entidades nacionais (ou relacionadas a outros países membros da OMC, não objeto das contramedidas) não podem sofrer restrições em seus direitos.

28. Não se deve olvidar, finalmente, que a eficácia das contramedidas previstas no Projeto depende da existência de fornecedores alternativos que aceitem investir certo capital na exploração daqueles bens intelectuais temporariamente afetados. Entretanto, a natureza provisória das medidas (duração do descumprimento das obrigações multilaterais) diminui a probabilidade de investidores assumirem tais tipos de risco, sem um respaldo estatal.

29. Vale novamente ressaltar que a retaliação cruzada deverá ser expressamente aprovada pelo OSC, após ampla discussão acerca da não-efetividade da aplicação da contramedida no setor envolvido na disputa. Por apenas internalizar no direito brasileiro determinadas faculdades de um país demandante vencedor de um contencioso perante a OSC da OMC, não se pode interpretar o mencionado Projeto de Lei, por si só, como uma tentativa de expropriação ou afronta a direitos de propriedade intelectual.

(iv) Conclusão

30. Por meio do Projeto, o Brasil procura demonstrar aos seus parceiros na OMC, em especial aos Estados Unidos da América (demandado no Caso do Algodão), a sua disposição concreta de se valer dos mecanismos de contramedidas previstos no Acordo da OMC, para buscar a implementação, mesmo que forçada, das recomendações favoráveis obtidas no âmbito de contenciosos conduzidos perante a OMC.

31. Sem dúvida, a possibilidade de adoção de contramedidas de suspensão e diluição temporárias ou extinção de direitos de propriedade intelectual no território brasileiro é medida a não ser negligenciada ou ignorada pelos demais sócios do Brasil na OMC. A despeito disso, é preciso que o governo brasileiro avalie com cautela as medidas propostas, seus reflexos jurídicos, econômicos e potenciais efeitos adversos, para que, ao final, surtam efeitos limitados e pontuais, concentrados tão-somente na modificação do comportamento do país demandado em questão.

32. Por sua vez, as empresas que tenham interesses eventualmente afetados pela potencial aplicação de contramedidas sobre direitos de propriedade intelectual poderão fazer chegar às autoridades competentes as razões pelas quais entendem que tais contramedidas seriam ineficazes, caso aplicadas em sua atividade.

____________________

1 Desde a instituição do Acordo da OMC, com resultado da Rodada Uruguai, nunca houve um relatório de painel ou do Órgão de Apelação da OMC rejeitado pelo OSC que, para tanto, deverá denegá-lo por unanimidade.

2 Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights - “TRIPS”), internalizado no direito brasileiro pelo Decreto nº 1.355, de 30.12.1994, Anexo.

3 Em conformidade com o disposto no Artigo 22 do ESC.

4 Melhor seria prever a suspensão de direitos, ao invés de extinção, sobretudo em vista do seu caráter temporário.

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*Sócio do escritório Pinheiro Neto Advogados

**Associados da Área Contenciosa, integrantes dos grupos de Propriedade Intelectual e Comércio Internacional do escritório Pinheiro Neto Advogados

* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.

© 2008. Direitos Autorais reservados a PINHEIRO NETO ADVOGADOS









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