Terceirização de serviços intelectuais e tributação
Renato L. de Toledo Lima*
"A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios..."
A disciplina constitucional, pois, trata apenas de questões referentes à capacitação técnica ou financeira da sociedade, e jamais de impedimento à sua instituição. Ives Gandra da Silva Martins leciona sobre esse dispositivo da Carta Política:
"Assim, uma sociedade de advogados deve ter advogados habilitados junto à OAB e não pode ser integrada por outro tipo de profissional; uma instituição financeira não pode carecer de recursos (...) Fora hipóteses semelhantes, a Carta Maior proíbe que a lei infraconstitucional impeça o nascimento de uma empresa de qualquer natureza, com objeto lícito." (in Exercício de cidadania. São Paulo: Lex, 2007, pp. 118-9)
Como no Brasil é permitida a organização de pessoas físicas em sociedades sem a necessidade de autorização do Poder Público, a não ser quanto à capacitação profissional, têm-se como valores basilares da ordem econômica nacional a livre iniciativa e a liberdade de associação. Os princípios constitucionais que orientam a atividade econômica reforçam-se na legislação ordinária por meio do art. 129 da Lei nº. 11.196/05 (clique aqui):
Art. 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (clique aqui) - Código Civil.
Breve digressão faz-se necessária. A previsão do art. 150, I, da Constituição Brasileira, é de que para regramento em matéria tributária vige o princípio da legalidade fechada1.
A legalidade fechada (ou tipicidade cerrada) é a necessidade de precisa comunhão entre o fato ocorrido e a expressa determinação legal, identificando aquele fato como o juridicamente hábil a produzir o nascimento de uma obrigação tributária. Geraldo Ataliba esclarece:
A h.i. [hipótese de incidência] tributária é a hipótese da lei tributária. É a descrição genérica e abstrata de um fato. É a conceituação (conceito legal) de um fato: mero desenho contido num ato legislativo.
Com esteio nessa concepção, qualquer desconsideração da personalidade jurídica da empresa contratada pela e carecerá, sempre, da resoluta obediência a critérios legalmente definidos. Até o presente momento, o que existe como permissivo a tal procedimento é o eventual abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, conforme o próprio art. 129 da Lei n. 11.196/05 excetua ao salvaguardar a aplicação do art. 50 do Código Civil.
A desconsideração da personalidade jurídica – Der Durchgriff, no direito alemão – tem de ser imputada em norma, com plena descrição na lei. No escólio de Arndt Raupach, a desconsideração teria vez apenas "quando há uma norma legal expressa, que permite o Durchgriff em determinadas situações fáticas" (in Der Durchgriff im Steuerrecht. Munique, 1968, p. 194 – trad. Henry Tilbery).
Diante desse quadro, releva-se a prevalência da personalidade jurídica da sociedade contratada, à míngua da descrição de condutas passíveis da desconsideração, salvo as do art. 50 do CC. Todavia, o surgimento da Lei Complementar nº. 104/01 (clique aqui), que trouxe um parágrafo ao art. 116 do Código Tributário Nacional (clique aqui), recomenda exame mais cauteloso.
A Lei Complementar nº. 104/01 alterou o art. 116 do CTN, criando, no parágrafo único, a norma antielisiva geral, assim disposta:
Art. 116 – (...)
Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.
O que há de nítido nesse texto legal é apenas a incerteza do significado e alcance desse dispositivo. A doutrina assentou também que sua eficácia fica condicionada à legislação ordinária de cada ente federativo.
O art. 129 da Lei nº. 11.196/05 atende, quanto à União, o que estipula o diploma nacional (CTN, no parágrafo único do art. 116). Conquanto feito negativamente, o que fica evidente é a impossibilidade de se levar a efeito a desconsideração da personalidade jurídica de sociedade prestadora de serviços intelectuais, "em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados", a menos que haja, repita-se, desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial (art. 50 do CC).
É de se perquirir, por derradeiro, se a caracterização de vínculo trabalhista poderia operar na seara tributária.
De início, a dicção daquele art. 129 é cristalina quando fala da intangibilidade fiscal e previdenciária ainda que haja quaisquer obrigações estabelecidas, em caráter personalíssimo inclusive, a pessoas físicas componentes da pessoa jurídica contratada. Isso, de per se já repele qualquer incidência.
O argumento de que o Direito do Trabalho, o qual é voltado a proteger o trabalhador, poderia penetrar de maneira semelhante no âmbito do Direito Tributário não sobrevive a uma reflexão acurada. Este, o Direito Tributário, é vocacionado à defesa do contribuinte, como demonstram os princípios tributários e o estatuto do contribuinte encartado no Texto Supremo, a partir do art. 150. Notadamente, várias normas seguem esse princípio protetivo do contribuinte em face da tributação pelo Poder Público, como, por exemplo, as veiculadas nos artigos 106, 108, 110 e 112 do CTN.
O Tribunal Superior do Trabalho segue tal raciocínio, pelo que vem desconsiderando apenas aquelas sociedades cuja formação é imposta ao trabalhador2.
Cumpre, outrossim, averiguar do princípio da igualdade, com o fito de analisar o tratamento desigual entre trabalhadores que prestam serviços intelectuais e os demais.
Obviamente os predicados pessoais de quem presta serviços intelectuais fazem com que seja relevante a pessoa que prestará – e em assim o modo pelo qual será prestado – o serviço contratado junto a uma sociedade prestadora. Para os demais serviços, a pessoa que os presta pouco importa às tomadoras. Daí a razão do tratamento diferenciado esposado no art. 129 da Lei nº. 11.196/05.
Seria absolutamente incongruente admitir direitos trabalhistas subjacentes para as pessoas físicas que prestam serviços intelectuais por meio de sociedades. É que a economia tributária experimentada pela pessoa jurídica é expressiva em face do custo tributário da pessoa física.
Note-se que ao prestador de serviços não-intelectuais seriam deferidos direitos trabalhistas, mas sobre seus vencimentos incidiriam as pesadas alíquotas do Imposto de Renda de Pessoas Físicas - IRPF; enquanto o prestador de serviços intelectuais, na hipótese considerada, além de acessar o protecionismo trabalhista, faria jus à economia tributária do IRPJ em vez do IRPF. O disparate não se justifica, implicando verdadeira e odiosa ofensa ao princípio da igualdade.
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1 Nesse sentido, XAVIER, Alberto. Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978.
2 Ação rescisória n. 531319/99, TST, relator Ministro Ives Gandra Martins Filho.
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*Advogado sócio do escritório Fernando Corrêa da Silva e Advogados Associados
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