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Homofobia e a união socioafetiva

Machado de Assis, cujo centenário de morte é comemorado este ano, recomendou ao seu personagem Brás Cubas, advogado, que nutria interesse pela política, que se casasse o mais rápido possível, pois o celibato não é recomendado para amparar pretensões políticas. É importante constituir família, ter filhos e ostentar tal status na comunidade.

30/10/2008


Homofobia e a união socioafetiva

Eudes Quintino de Oliveira Júnior*

Machado de Assis, cujo centenário de morte é comemorado este ano, recomendou ao seu personagem Brás Cubas, advogado, que nutria interesse pela política, que se casasse o mais rápido possível, pois o celibato não é recomendado para amparar pretensões políticas. É importante constituir família, ter filhos e ostentar tal status na comunidade.

Marta Suplicy, que na realidade deveria assinar Favre, em razão de seu casamento com o jornalista e publicitário Luiz Favre, retoma o discurso machadiano e com alfinetadas de um realismo psicológico idêntico, indaga ao eleitor se procurou saber se o candidato Gilberto Kassab é casado ou se tem filhos. O desafio ultrapassou as raias da curiosidade e arranhou a sensível linha divisória do homossexualismo, sendo encarado como propaganda homofóbica, entendida esta como uma rejeição, ojeriza e aversão a homossexual e à homossexualidade, um questionamento preconceituoso, desagregador, desrespeitador do princípio da diversidade da liberdade do cidadão.

Sem qualquer intenção de fazer aqui questionamento político partidário, a não ser a breve análise da repercussão social provocada pela malfadada propaganda, foram abertas as comportas que levam à discriminação da opção sexual e familiar do indivíduo. A vida íntima do cidadão, seja ele candidato ou eleitor, deve ser preservada e respeitada. A idéia política, o projeto e a competência merecem o debate transparente, mas a invasão da privacidade se apresenta como uma forma de agressão desmedida, uma exposição pública daquilo que não se apresenta como relevante para a sociedade.

O tema torna-se interessante porque tramita pelo Senado Federal um projeto de lei que criminaliza a homofobia, tendo sido já aprovado na Câmara dos Deputados. Prevê a aplicação de uma pena de dois a cinco anos de reclusão para quem discriminar homossexual. Se vingar, alterará a Lei 7716/89 (clique aqui), que trata da discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional. O legislador apertou o torniquete e abraçou o artigo 7.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, que confere a igualdade entre as pessoas perante a lei e a conseqüente tutela contra qualquer discriminação. Também, com arrimo nos artigos 3.º e 5.º da Constituição Federal (clique aqui), onde estão descritos os objetivos fundamentais da República Federativa, apegou-se à promoção do bem de todos, sem preconceitos de raça, sexo, cor idade e quaisquer outras formas de discriminação, assim como a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

A orientação sexual e a identidade de gênero carregam a esperança do reconhecimento legal, levando-se em consideração que ninguém pode ser discriminado por uma escolha fundada no exercício do direito de diversidade para o ajuste de sua dignidade humana. A Constituição Federal não ungiu cidadãos de primeira e segunda classes. O princípio da isonomia é abrangente e não restritivo. Quanto maior a carga de direito alcançada, maior será a motivação para ampliá-la e jamais restringi-la, desde que traga benefícios para o convívio social harmônico.

A evolução dos costumes e a aceitação de uma nova mentalidade heterossexista possibilitam a realização de uma sociedade plural, com o respeito devido ao cidadão, independentemente de sua escolha sexual, levando-se em consideração o permissivo legal da isonomia e respeito. É certo que a meta de todo homem é viver com felicidade, não somente em busca dela, mas fazê-la se concretizar, preenchendo as necessidades de cada um. A felicidade, na realidade, nada mais é do que um projeto individual, mas que necessita do espaço público para se desenvolver. E, nessa "res publica", onde se encontram culturas diferentes, irá fazer a identificação do individual com o coletivo, com o fundo harmônico do "bene vivere" e do "neminem laedere", implantados por Justiniano nas "Institutas". Ninguém, conforme acentuava o pensamento iluminista, irá se associar para ser infeliz.

Daí que, não só o escudo penal tutelará o homossexual contra a discriminação, mas também o caminhar do pensamento jurídico e, principalmente, jurisprudencial, agasalhará o relacionamento homoafetivo, que cresceu de forma acelerada nos últimos anos no Brasil. Inicialmente esta relação surgiu com um perfil acanhado, sem delinear suas pretensões, vivendo acastelada, sempre aguardando um momento propício para atingir a libertação, em busca não de uma revolução sexual, mas de um ajustamento pacífico de condutas até então recriminadas. Num repente, cresceu, ganhou corpo e atingiu uma comunicação de bom nível com a sociedade. Deixou de ser visto como uma infratora de costumes e passou a ter o abrigo legal e ocupar o espaço de respeito delineado na Constituição.

Tanto é que se estima em 17,9 milhões de pessoas que ocupam a parcela homossexual de nossa comunidade, compreendendo gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais É um número significativo, principalmente em uma sociedade tradicional, apegada a costumes fincados na moral conservadora. Diria Cícero, nas Catilinárias: "O tempora, o mores". Mas a transformação social ocorre tão rapidamente que quando nos damos conta, ela já sem implantou e carrega sua bandeira vitoriosa. Aliás, nós brasileiros temos uma facilidade admirável para assimilar mudanças e, principalmente, aceitá-las, sem ao menos contestá-las. Não se sabe se por falta de tempo para analisá-las, de fórum para contestá-las, ou por acomodação, seguindo a regra que é mais fácil aceitar do que impugnar. Prevalece aqui a penalidade imposta pelo legislador processual civil: presumem-se verdadeiros os fatos não contestados.

O Direito, no entanto, instrumento representativo para atender o anseio social, deve obrigatoriamente curvar-se diante de cada questão levada na patena onde foi deduzida a pretensão e dar a resposta adequada. A transformação social se inicia com a feitura de leis e se efetiva com o pronunciamento judicial, mesmo na ausência legislativa, quando o juiz poderá decidir de acordo com a eqüidade, analogia e princípios gerais do Direito.

Assim é que, nossos Tribunais, aqui e acolá foram colecionando decisões que ressaltavam os direitos dos casais homossexuais, conferindo, por exemplo, o direito ao parceiro de receber a pensão por morte do companheiro falecido; a inclusão do parceiro dependente no plano de saúde; em caso de separação da sociedade, o parceiro teria o direito de receber metade do patrimônio obtido pelo esforço comum e a adoção de criança, além de muitos outros.

Mas, nossa lei civil não permite taxativamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo e não considera também uma família a união estável entre homossexuais. A este respeito, tramita o projeto de lei que ganhou o número 1.151/95, que protege o direito entre pessoas que compartilhem uma vida em comum, tenham as vidas ligadas por laços afetivos, independentemente de sexo, que possam regularizar suas situações. Paralelamente ao projeto de lei, que vai garantir bons debates, o Superior Tribunal de Justiça, pela sua 4.ª Turma, por 3 X 2 votos, (Recurso Especial n.º 820.475 – RJ 2006/0034525-4) admitiu recentemente a possibilidade jurídica do pedido de união estável entre homossexuais, dando provimento ao recurso para que a Justiça fluminense retomasse a ação que foi extinta sem julgamento de mérito. A importância desta decisão reside no fato de ter o Tribunal baseado o julgamento nos institutos reguladores do Direito de Família e não no Direito Patrimonial, como era praxe até então.

O Direito torna-se aliado da evolução social, traduzindo as ocorrências humanas em um quadro de conceitos administráveis e aceitáveis, servindo de guia e referência racional e sistemática para qualquer cidadão. Eliminando-se as ondulações sociais, é possível ter um mar remansoso pela frente.

Voltando ao Machado, nas derradeiras negativas da vida de seu personagem Brás Cubas, explicou: "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria".

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*Advogado, Promotor de Justiça aposentado e Reitor da Unorp






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