Trava de 30% (trinta por cento) na compensação de prejuízos fiscais e bases negativas para fins de IRPJ e de CSL – Irretroatividade e Anterioridade Nonagesimal
Rogério Pires da Silva*
Introdução
2 - Como se sabe, a limitação imposta pelo ordenamento diz respeito ao cálculo daqueles tributos que, segundo o disposto na Lei 8.981/95 (arts. 42 e 58 - clique aqui) e na Lei 9.065/95 (arts. 15 e 16 - clique aqui), devem incidir sobre o lucro apurado pelas pessoas jurídicas em cada ano (ajustado com as adições e exclusões previstas na legislação de regência), sendo que os prejuízos fiscais (no caso do IRPJ) e as bases negativas (no caso da CSL) de anos anteriores só podem reduzir o lucro assim apurado em até 30% (trinta por cento), podendo o contribuinte compensar as respectivas sobras na apuração daqueles tributos em quaisquer dos anos subseqüentes.
3 - Discute-se a constitucionalidade daquela limitação porque, a rigor, se os livros contábeis do contribuinte apontam prejuízos de anos anteriores em montante suficientemente elevado, teoricamente os lucros a serem tributados na pessoa jurídica não serão distribuídos aos sócios enquanto não for esgotada contabilmente aquela compensação, não havendo razão para que a pessoa jurídica pague os referidos tributos sobre uma parte significativa dos lucros tributáveis (70%) – ainda que se assegure a compensação das sobras de prejuízos fiscais no futuro.
4 - Já se antevê que a discussão envolve desde uma possível ofensa ao princípio da capacidade contributiva (Constituição, art. 145, § 1º) até a própria descaracterização das figuras impositivas autorizadas na Constituição, e quiçá a Corte examinará uma teórica imposição disfarçada de empréstimo compulsório sem observância dos requisitos para tanto exigidos (Constituição, art. 148).
5 - A despeito da relevância das questões constitucionais já colocadas sob apreciação da Suprema Corte – e mesmo que nenhuma daquelas inconstitucionalidades venha a ser declarada formalmente – entendo que o Supremo Tribunal Federal deve, no mínimo, examinar com a devida cautela a manifesta retroatividade com que vêm sendo aplicadas as Leis 8.981/95 e 9.065/95, no que diz respeito aos prejuízos apurados antes de sua vigência, bem como o desrespeito ao princípio da anterioridade nonagesimal (Constituição, art. 195, § 6º) no que se refere à aplicação da trava para fins da CSL.
A existência de lucro é apenas a condição necessária para a cobrança do IRPJ e da CSL – o direito à compensação de prejuízos nasce já com a apuração do prejuízo, embora seu exercício esteja condicionado à existência do lucro em período subseqüente (contra o qual será compensado o prejuízo)
6 - Por certo a exigência do IRPJ e da CSL depende da existência de lucro. Todavia, por mais razoável (e óbvia) que seja tal premissa, daí não se pode concluir que o próprio direito à compensação de prejuízos nasce apenas com o surgimento do lucro.
7 - Em outras palavras, o surgimento do lucro faz nascer tão-somente o dever, para o contribuinte, de pagar o IRPJ e a CSL (e o respectivo direito, do fisco, no que tange à sua cobrança). O lucro é, assim, o elemento nuclear da hipótese de incidência do IRPJ e da CSL, tanto que, em auferindo prejuízo num determinado exercício, por exemplo, o contribuinte fica desobrigado de pagar o IRPJ e a CSL naquele período.
8 - Daí não se pode concluir, entretanto, que o contribuinte que aufere prejuízo perde o direito à sua compensação contra lucros futuros, só porque não obteve lucro naquele mesmo período. O máximo que se pode dizer é que o contribuinte, nessa condição, não tem a obrigação de pagar o IRPJ e a CSL naquele exercício, mas mantém o direito (que já existe, perfeito e acabado) ao aproveitamento futuro do prejuízo então apurado.
9 - Como é evidente, o direito àquela compensação já existe, ainda que seu exercício esteja condicionado à existência de lucro no futuro. Enquanto não houver lucro nos exercícios futuros, como já se afirmou, não há como ser exercido o direito à compensação, embora aquele direito já exista desde a apuração do prejuízo.
10 - O direito ao aproveitamento da base negativa nasce, assim, no momento em que o prejuízo é apurado, e por isso mesmo é regido pela lei que vigora naquele instante. Ainda que tal direito seja exercido em anos posteriores, não poderá ser colhido por legislação subseqüente que estabeleça limitações ao seu exercício.
Aplicação do mesmo critério jurídico já adotado pelo superior Tribunal de Justiça em outras oportunidades – impossibilidade de modificação, pela lei, do regime jurídico dos prejuízos apurados antes de sua publicação – o caso do art. 44, § único, da Lei n.º 8.383/91
11 - O que aqui se defende em matéria de irretroatividade é, em suma, critério jurídico que já foi aplicado pelo próprio Poder Judiciário, e numa circunstância em que a lei subseqüente era inclusive mais favorável aos contribuintes.
12 - De fato, até 1991 não havia previsão legal que autorizasse os contribuintes a compensar bases negativas de CSL de períodos anteriores.
13 - A Lei n.º 8.383/91 (clique aqui) trouxe, então, o salutar dispositivo do art. 44, cujo parágrafo único veio permitir a compensação de bases negativas de CSL contra o lucro apurado pelas empresas.
14 - Os contribuintes pleitearam, em Juízo, o direito de compensar prejuízos apurados em períodos anteriores àquela norma (com fundamento justamente no princípio de que o lucro suscetível de tributação deve ser diminuído, no âmbito da empresa, dos prejuízos acumulados, de forma a não se onerar o capital).
15 - O Superior Tribunal de Justiça houve por bem decidir pela impossibilidade de compensação de bases negativas anteriores à Lei n.º 8.383/91, exatamente sob o fundamento de que a lei não pode retroagir nesta matéria. Vale dizer, aquela Corte entendeu que a lei posterior não pode alterar o regime jurídico aplicável aos prejuízos apurados em anos anteriores ao da sua publicação. Vide, nesse sentido, os Recursos Especiais n.ºs 170.222/SP, j. 17.8.1998, e 142.364/RS, j. 3.3.1998, ambos relatados pelo Min. Garcia Vieira.
16 - De fato, do voto do Min. Relator nos autos do Recurso Especial n.º 170.222/SP se extrai que "a Lei n.º 8.383/91 não pode ser aplicada retroativamente para alcançar períodos anteriores à sua vigência". Os prejuízos apurados antes daquela norma remanesceram por isso mesmo sujeitos à disciplina jurídica que vigorava no período em que foram apurados, ou seja, prevaleceu a impossibilidade de sua compensação.
17 - Da mesma forma, e ainda que desta vez o critério imponha a derrota dos interesses fazendários, os prejuízos verificados antes das Leis n.ºs 8.981/95 e 9.065/95 devem remanescer submetidos ao regramento jurídico que vigorava no período em que foram apurados – vale dizer, deve prevalecer a permissão para sua compensação integral em até quatro períodos subseqüentes (art. 44, § único, da Lei n.º 8.383/91).
18 - Não há razão para que aquele critério jurídico (irretroatividade da norma) prevaleça apenas quando é conveniente aos interesses fazendários, devendo ser aplicado também quando se mostra mais benéfico aos interesses dos contribuintes. Não é por outro motivo que a Constituição garante, solene e repetidamente, que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada" (art. 5º, XXXVI), e que é vedado aos entes públicos cobrar tributos "em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado" (art. 150, III, "a").
19 - A bem da verdade, portanto, trata-se de garantia constitucional que antes de tudo foi criada no interesse dos contribuintes, e não para proteger a arrecadação fazendária.
20 - Assim, as restrições à compensação de prejuízos e bases negativas, impostas que foram pelo art. 58 da Lei n.º 8.981/95 e repisadas pelo art. 16 da Lei n.º 9.065/95, quando muito são aplicáveis aos prejuízos apurados a partir da publicação daquelas normas (ressalvada ainda, como é evidente, a anterioridade nonagesimal no que se refere à CSL, como se verá adiante). Em função do princípio da irretroatividade das leis, aqueles diplomas jamais podem alcançar os prejuízos apurados em períodos anteriores à sua vigência.
21 - Em resumo, os prejuízos apurados até 1991 estavam sujeitos a um determinado regime jurídico (impossibilidade de compensação com lucros futuros), e tal regime só se modificou com a Lei n.º 8.383/91 (art. 44, par. único), aplicável, segundo nossos Tribunais, apenas para os prejuízos apurados a partir de 1992, em razão da impossibilidade de a lei nova alterar o regime jurídico de prejuízos já apurados no passado. Da mesma forma, os prejuízos que se encontravam submetidos ao regime jurídico da Lei n.º 8.383/91 (possibilidade de compensação integral com lucros apurados nos quatro anos subseqüentes ao da apuração) não podem ser alcançados pelas regras novas, que limitam a compensação em 30% do lucro (art. 58 da Lei n.º 8.981/95 e art. 16 da Lei n.º 9.065/95). As regras novas, quando muito, são aplicáveis aos prejuízos apurados a partir da vigência da lei nova.
As razões do equívoco fazendário: o direito à compensação de prejuízos se rege pela lei que vigora na apuração do prejuízo, e não pela lei que vigora no momento da sua compensação
22 - Aí parece residir a manifesta contradição nos argumentos fazendários, eis que o fisco vem defendendo a possibilidade de retroatividade da lei nova aos prejuízos apurados no passado, mas quando lhe interessou não hesitou em defender, no caso da Lei n.º 8.383/91, que a lei nova não poderia alcançar prejuízos apurados no passado.
23 - O equívoco salta aos olhos, eis que fundado em uma petição de princípio: a argumentação fazendária parte do pressuposto de que o direito à compensação do prejuízo só nasce no futuro, quando se apura o lucro contra o qual o prejuízo será compensado. Mas é certo que, como se viu, o direito à compensação do prejuízo nasce já quando o prejuízo é apurado, e se rege pela lei então vigente, ainda que aquele direito só venha a ser exercido nos anos subseqüentes.
24 - Fosse o caso de prevalecer o entendimento equivocado defendido pelo fisco, é evidente, os contribuintes que tivessem apurado prejuízo antes da Lei n.º 8.383/91 poderiam então fazer retroagir seus efeitos, com o propósito de efetuar a compensação daqueles prejuízos, bastando que para tanto tivessem apurado lucro, após a edição do novo diploma, para poder fazer o abatimento. Se a mera existência de lucro fosse a única condição para a realização daquela compensação, como defende o fisco, então a Lei n.º 8.383/91 poderia retroagir tranqüilamente em relação aos prejuízos apurados antes de sua vigência.
25 - E o entendimento fazendário sempre foi contrário ao que ora é defendido pelo fisco, bastando citar os arts. 502 e ss. do Regulamento do Imposto de Renda baixado com o Decreto n.º 1.041/94 (clique aqui), e reproduzidos nos arts. 509 e ss. do vigente Decreto n.º 3.000/99 (clique aqui). Naqueles comandos o Poder Executivo fixou interpretação clara no sentido de que os prejuízos fiscais (para fins de imposto de renda) são regidos pela lei em vigor no momento da apuração do prejuízo (nascimento do direito à compensação), e não no momento da compensação propriamente dita (exercício do direito).
26 - A restrição imposta pelas Leis n.º 8.981/95 e 9.065/95 (compensação até o limite de 30% do lucro apurado em cada período) configura uma dramática modificação daquele regime jurídico. O direito à compensação era amplo e, com aquelas normas, passou a ser limitado a 30% do lucro, razão pela qual elas só podem se aplicar aos prejuízos apurados após sua vigência.
Aspectos adicionais: além de não poder retroagir (princípio da irretroatividade), a lei que modifica a contribuição social só vigora após noventa dias de sua publicação (postulado da anterioridade nonagesimal)
27 - Por certo a modificação imposta pelas normas aqui questionadas implicou verdadeiro aumento da carga tributária, eis que, quando os contribuintes acreditavam que poderiam compensar integralmente as bases negativas do passado (e com base nessa crença formularam o planejamento de suas atividades econômicas), foram de fato surpreendidos com a obrigação de um desembolso que não estava originalmente previsto, correspondente a 70% do IRPJ e da CSL devida sobre o lucro dos exercícios futuros (insuscetível de compensação com prejuízos do passado).
28 - A majoração foi até reconhecida no voto do Min. Ilmar Galvão, ao relatar o aresto do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário n.º 232.084-9, onde se lê que a limitação à compensação de prejuízos "majorou a contribuição social incidente sobre o lucro das empresas".
29 - Ora, a Constituição não autoriza a União a cobrar contribuição social sobre o capital das empresas, mas apenas sobre o lucro. E não se autoriza contribuição incidente em parte sobre o lucro (30%) e em parte sobre o capital (70%, parcela em relação à qual a compensação de prejuízos não é permitida). Por essa razão se diz que a medida importou em verdadeiro empréstimo compulsório, criado ao arrepio do art. 148 da Constituição.
30 - Mas, ainda que não se tratasse de aumento da carga tributária, e partindo-se do pressuposto de que a medida normativa é juridicamente válida, mesmo assim é preciso reconhecer que a Constituição estabelece regras precisas para a vigência de normas que modificam as contribuições sociais, independente de majoração da carga tributária.
31 - De fato, diz o art. 195, § 6º, da Carta, que "as contribuições sociais de que trata este artigo só poderão ser exigidas após decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado (...)". Como se vê, a regra constitucional de eficácia acima reproduzida é clara, e a assim chamada "anterioridade nonagesimal" é aplicável independente de haver aumento da carga tributária, bastando que haja modificação no regime jurídico das contribuições sociais.
32 - Portanto, é imperioso reconhecer, no mínimo, que as Leis n.ºs 8.981/95 e 9.065/95 só são aplicáveis, para fins de CSL, aos prejuízos (ou bases negativas) apurados após transcorridos noventa dias de suas respectivas publicações, ou seja, não podem alcançar sequer os prejuízos apurados no próprio ano-base de 1995, que é insuscetível de seccionamento, para esses fins, em virtude da legislação tributária que vigorava na época (incidência em relação ao lucro anual – art. 37 da Lei n.º 8.981/95). O limite de 30% só poderia atingir, assim, na pior das hipóteses, a compensação dos prejuízos apurados a partir de 1996 – se afastada fosse a argumentação relativa à irretroatividade, acima referida.
33 - É relevante ainda mencionar que o assunto chegou a ser apreciado superficialmente na decisão do E. Supremo Tribunal Federal nos autos do Recurso Extraordinário n.º 232.084/SP, j. 4.4.2000, publ. DJU 16.6.2000, Rel. Min. Ilmar Galvão.
34 - Naquele aresto, de fato, a Suprema Corte decidiu que a limitação à compensação de prejuízos, no que tange ao imposto de renda, não constituiu uma medida inconstitucional; mas, no que se refere à limitação da compensação de bases negativas, para fins de CSL, aquela Corte entendeu que o postulado da anterioridade nonagesimal (CF, art. 195, § 6º) não foi observado.
35 - A ementa do Acórdão do E. Supremo Tribunal Federal naquele caso não deixa dúvidas, pois reputou constitucionais as medidas baixadas por aqueles diplomas legais apenas no que se refere ao imposto de renda, "o mesmo não se dando no tocante à contribuição social, sujeita que está à anterioridade nonagesimal prevista no art. 195, § 6º, da CF, que não foi observado."(ementa oficial).
36 - Do voto do Min. Ilmar Galvão se extrai a seguinte passagem em que, após defender a validade das normas atacadas, resumiu: "Se assim, entretanto, se deu quanto ao imposto de renda, o mesmo não é de dizer-se da contribuição social, cuja majoração estava sujeita ao princípio da anterioridade nonagesimal, segundo o qual a norma jurídica inovadora, para alcançar o balanço de 31.12.94, haveria de ter sido editada até o dia 31.10.94, o que, como visto, não se verificou."
37 - Naquela oportunidade, todavia, o E. Supremo Tribunal Federal não se pronunciou especificamente sobre o problema da impossibilidade legal de se seccionar o ano-base de 1995, visando aplicar a limitação de 30% apenas aos prejuízos apurados após os noventa dias da publicação da norma ali questionada.
38 - De fato, a MP n.º 812/94 (clique aqui), publicada em 31.12.1994, só poderia atingir fatos geradores após noventa dias de sua publicação, ou seja, somente após 31.3.1995. O E. Supremo Tribunal Federal limitou-se a considerar inviável a aplicação das novas regras ao exercício de 1994, mas nada referiu sobre a vigência das normas no ano de 1995.
39 - Ao que tudo indica a questão não foi examinada nem mesmo em sede de Embargos de Declaração naquele Recurso Extraordinário, pois a Suprema Corte entendeu que o problema não fora debatido nos autos, rejeitando assim aquele recurso (conforme ementa publicada no DJU de 9.3.2001).
40 - A matéria ainda não foi integralmente apreciada, portanto, pelo E. Supremo Tribunal Federal, e é de se esperar que aquela Corte se debruce agora sobre o tema com a necessária cautela, particularmente no que se refere às questões acima abordadas.
41 - Como se vê, admitindo-se - por amor à discussão somente – a possibilidade de seccionamento do resultado apurado em 1995 (mesmo em face do art. 37 da Lei n. 8.981/95), e não se vislumbrando ofensa ao postulado da irretroatividade, então se impõe que, pelo menos em respeito à anterioridade nonagesimal, o lucro apurado pelos contribuintes a partir de 1995 seja compensado integralmente com as bases negativas acumuladas até 31.3.1995 (sem aquele limite de 30% do lucro, portanto), e somente o prejuízo apurado após 1.4.1995 seria então compensado nos moldes das Leis n.ºs 8.981/95 (art. 58) e 9.605/95 (art. 16).
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*Advogado do escritório Boccuzzi Advogados Associados
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