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A interpretação do conceito de domicílio eleitoral

A Constituição de 1988, ao definir a regra primordial em matéria eleitoral, dispôs, em seu artigo 14, parágrafo 3º, inciso IV, que :

25/10/2004

A interpretação do conceito de domicílio eleitoral


Leonardo Matrone*

A Constituição de 1988, ao definir a regra primordial em matéria eleitoral, dispôs, em seu artigo 14, parágrafo 3º, inciso IV, que :

“§3º. São condições de elegibilidade, na forma da lei:

(...)

IV – o domicílio eleitoral na circunscrição;”

Assim, dentre as condições de elegibilidade, a Constituição Federal impôs o requisito do domicílio eleitoral, assunto que, dada a sua relevância, merece profunda reflexão.

O artigo 42, parágrafo único, do Código Eleitoral, dispõe que “Para efeito de inscrição, é domicílio eleitoral o lugar de residência ou moradia do requerente, e, verificado ter o alistando mais de uma, considerar-se-á domicílio qualquer delas.”

Em decorrência da concepção legal do domicílio eleitoral, notadamente da parte final do artigo 42, verifica-se a possibilidade de transferência do domicílio de um local para outro, caso o eleitor tenha residência em mais de uma região.

O artigo 55, inciso III, do Código Eleitoral, dispõe que é requisito, para a transferência do domicílio eleitoral, a “residência mínima de 3 (três) meses no novo domicílio, atestada pela autoridade policial ou provada por outros meios convincentes.”

Primeiramente, há que se distinguir o domicílio eleitoral do domicílio civil. O domicílio eleitoral encontra-se disciplinado na Constituição Federal e no Código Eleitoral, enquanto que o domicílio civil é regido pelo Código Civil, que, em seu artigo 70, estabelece: “O domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo.”

Tem-se, em exame superficial, que o domicílio civil consiste numa conjugação do elemento material, representado pela residência (habitação), com o elemento psicológico, o animus definitivo, pretensão do sujeito de concentrar nesse local o centro de sua atividade jurídica ou negocial.

E podem ser vários esses domicílios. Daí porque o artigo 71, do Código Civil, prescreve que, tendo a pessoa natural mais de uma residência, considerar-se-á domicílio qualquer delas.

A idéia de domicílio civil tem considerável alcance; inúmeras conseqüências relevantes a ele estão diretamente entrelaçadas, v.g., a competência jurisdicional no processo civil.

Por sua vez, de acordo com o entendimento do TSE, o domicílio civil não é abrangido pelo conceito de domicílio eleitoral.

O problema é que, ao exigir que o eleitor resida por, pelo menos, três meses no “novo domicílio”, o Código Eleitoral fixa, como requisito do domicílio eleitoral, o domicílio civil. É que, se interpretado de forma teleológica tal dispositivo, chega-se à conclusão de que, para que o eleitor possa constituir seu domicílio eleitoral em determinada circunscrição, deve ele dispor do elemento psicológico do domicílio civil, que é o ânimo definitivo.

E esse elemento psicológico parece não poder divorciar-se do elemento material, que é a residência, escolhida pelo eleitor como núcleo para exercer suas atividades profissionais e jurídicas. Da interpretação ex lege, portanto, conclui-se que o domicílio eleitoral é fundamente informado pelo domicílio civil.

A doutrina e a jurisprudência, atualmente, têm considerado duas formas de interpretação do instituto: para uns, ele é limitado, equiparando-se ao domicílio civil; para outros, a interpretação deve ser mais ampla e eqüânime, a viabilizar o pleno exercício do direito de votar e ser votado.

A primeira corrente, mais conservadora, impõe maiores restrições, com o nítido intuito de coibir os abusos, evitar que pessoas influam em eleições que não lhes dizem respeito, considerada a ausência de interesse político. E esse foi exatamente o objetivo do legislador.

Nesse sentido, destaca-se o entendimento do ilustre Prof. Pinto Ferreira1, que diz: “Entendo que muito bem andou o Código Eleitoral obrigando o cidadão a alistar-se no lugar onde tem o seu domicílio civil. Sendo o eleitorado um só para as eleições federais, estaduais e municipais, se for permitido a cidadãos domiciliados em um município alistar-se como eleitores em município diverso, ou ainda situado em região diferente, quando se tratar da escolha de representantes estaduais e municipais, esses eleitores vão influir em eleições que não lhes tocam de perto, que lhes podem ser até indiferentes.”

A segunda corrente, entretanto, entende que: “Na atualidade o Domicílio Eleitoral não se confunde com o Domicílio Civil, pois a circunstância de o eleitor residir em determinado município não constitui obstáculo a que se candidate em outra localidade onde é inscrito e com a qual mantém vínculos negociais, proprietários e empresariais, atividades políticas, familiares e afetivas. ”2

Tal entendimento, que vem sendo firmado pelo TSE, é mais liberal, na medida em que se admite que o fato de o eleitor residir em determinado município, por exemplo, não constitui óbice ao alistamento em outro local, tendo em vista que o domicílio civil não é requisito do domicílio eleitoral.

Esse raciocínio parte da premissa de que não se pode impor restrições ao direito constitucional de votar e ser votado. No mais das vezes, decorre da solução por eqüidade, ao invés da solução de direito estrito.

No Recurso Especial Eleitoral n.º 13.270, de relatoria do Min. Ilmar Galvão, o deputado Dejair Camata impugnou a decisão proferida pelo TRE do Espírito Santo, que havia indeferido a transferência de seu domicílio eleitoral, sob o fundamento de que não havia sido comprovada a residência mínima de três meses na nova circunscrição, conforme determina o artigo 55, inciso III, do Código Eleitoral.

O TSE, por decisão majoritária, em sentido contrário ao parecer exarado pela Procuradoria Geral Eleitoral, reformou a decisão do TRE, admitindo que, da interpretação do artigo 55, inciso III, do Código Eleitoral, conclui-se que não é exigida a existência de domicílio civil na nova circunscrição, dado que a lei fala apenas em residência, elemento material.

Eis os trechos do acórdão:

“(...) Todavia, cabe assinalar que o egrégio Tribunal Regional Eleitoral, ao interpretar o art. 55, III, do Código Eleitoral, acabou por assentar que para a transferência insuficiente seria a mera residência ou moradia, sendo necessário o domicílio civil, ou seja, o animus manendi.

Ao assim fazer, dissentiu da jurisprudência deste Tribunal Superior, que admite a transferência nas mesmas circunstâncias da inscrição.

Dessa forma, voto pelo conhecimento e parcial provimento do presente recurso, para que, afastada a exigência do animus manendi, seja o processo remetido ao eg. Tribunal Regional para nova apreciação do processo como entender de direito.” (g.n.)


Ao assim decidir, o TSE entendeu não figurar o domicílio civil como requisito do domicílio eleitoral, dado que a lei refere-se apenas à residência, elemento material.

E isso porque “O TSE, na interpretação dos arts. 42 e 55 do CE, tem liberalizado a caracterização do domicílio para fim eleitoral e possibilitado a transferência - ainda quando o eleitor não mantenha residência civil na circunscrição - à vista de diferentes vínculos com o município (histórico e precedentes).”3

No entanto, como já exposto, se interpretado de forma teleológica o artigo 55, inciso III, do Código Eleitoral, tem-se, claramente, que o legislador referiu-se ao animus manendi, ao estipular o período mínimo de três meses de residência na nova circunscrição.

Se se cuidasse apenas de residência, e não de domicílio, como entende o TSE, o Código Eleitoral não fixaria o prazo mínimo de três meses; seria necessária, apenas, a prova de residência na nova circunscrição.

A idéia de que a lei infraconstitucional, ao impor tais requisitos subjetivos ao eleitor, impede o pleno exercício do direito ao sufrágio, parece equivocada. O direito ao sufrágio, referido no artigo 14, caput, da Constituição Federal, não pode ser visto de forma genérica, a fulminar todos os outros dispositivos infraconstitucionais regulamentadores do mesmo tema.

Deve-se ater às regras de hermenêutica constitucional, das quais pode-se extrair que, pelo princípio da harmonização, é aconselhável coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, de modo a evitar o sacrifício total de um deles.

Celso Ribeiro Bastos4 afirma que “Através do princípio da harmonização se busca conformar as diversas normas ou valores em conflito no texto constitucional, de forma que se evite a necessidade da exclusão (sacrifício) total de um ou alguns deles. Se por acaso viesse a prevalecer a desarmonia, no fundo, estaria ocorrendo a não aplicação de uma norma, o que evidentemente é de ser evitado a todo custo. Deve-se preferir sempre que prevaleçam todas as normas, com a efetividade particular de cada uma das regras em face das demais e dos princípios constitucionais.”

De acordo com a jurisprudência da Suprema Corte Eleitoral, o domicílio civil não é requisito do domicílio eleitoral. A exegese da lei, entretanto, indica que o domicílio civil é, sim, requisito do domicílio eleitoral.

A questão que se coloca, portanto, é a seguinte: ao recomendar que se tenha, como requisito ao domicílio eleitoral, o domicílio civil, o Código Eleitoral está impondo barreiras ao pleno exercício do sufrágio? Esse direito, abstratamente considerado, tem o poder de fulminar a norma infraconstitucional? Se analisadas as decisões do TSE, sim.

Assim, respeitado o douto entendimento do TSE, tem-se que é plenamente aplicável o artigo 55, inciso III, do Código Eleitoral. Vale dizer, para que o eleitor requeira a transferência de seu domicílio eleitoral, deve restar comprovado o domicílio civil – por três meses – nessa nova circunscrição, sob pena de a interpretação sobrepor-se à lei, tornando-a ineficaz.

O Supremo Tribunal Federal5 , em sábia decisão, de relatoria do eminente Min. Marco Aurélio, consignou que a atividade interpretativa não pode acarretar “ao desprezo do sentido vernacular das palavras, muito menos as do técnico, considerados institutos consagrados pelo Direito. Toda ciência pressupõe a adoção de escorreita linguagem, possuindo os institutos, as expressões e os vocábulos que a revelam conceito estabelecido com a passagem do tempo, quer por força de estudos acadêmicos, quer, no caso do direito, pela atuação dos Pretórios.”

O Min. Oscar Correia6 também expôs que “Não pode o Juiz, sob a alegação de que a aplicação do texto da lei à hipótese não se harmoniza com o seu sentimento de Justiça ou equidade, substituir-se ao legislador para formular ele próprio a regra de direito aplicável. Mitigue o Juiz o rigor da lei, aplique-a com equidade e equanimidade, mas não a substitua pelo seu critério.”

De qualquer forma, considerada a complexidade da discussão, recomendável que, em todos os casos, haja o vínculo político do eleitor com o município no qual ele pretende constituir seu domicílio. Esse vínculo, sim, pode ser mínimo. Mas deve existir.

É necessário ter-se a consciência de que a atividade política é a essência do conceito de democracia.

Quanto a esse aspecto, em que pese ao rigor recomendável, a jurisprudência também tem se revelado liberal. Não raras vezes, tem-se entendido que o vínculo político que autoriza a constituição de um domicílio eleitoral encontra-se aperfeiçoado com a existência de apenas um de seus elementos, por exemplo, o patrimonial.

O Min. Nelson Jobim, ao proferir voto no Recurso Especial Eleitoral n.º 16.397, assim se pronunciou:

“Esta Corte foi sábia no Recurso Especial n.º 13.777, em que assevera: ‘(...) ponderáveis vinculações de natureza econômica, política ou comunitária (...)’.

Aqui há disjunção: econômica, política ou comunitária.Não são as três: econômicas, e políticas, e comunitárias, e sim econômicas, ou políticas, ou comunitárias.”


No REspe n.º 18.124, outrossim, restou consignado que “A circunstância de o eleitor residir em determinado município não constitui obstáculo a que se candidate em outra localidade onde é inscrito e com a qual mantém vínculos (negócios, propriedades, atividades políticas).”

Entretanto, as vinculações econômicas e comunitárias, dentre outras, constituem elementos informadores do vínculo político. Não podem, isoladamente, representar um vínculo político.

Por exemplo, se o eleitor, residente na cidade “A”, tem uma casa de praia na cidade “B”, imóvel destinado ao lazer dos fins de semana, não há como considerar a cidade “B” como seu domicílio eleitoral. Isso porque, seu vínculo político é nítido com a cidade “A”. Assim, o mero vínculo patrimonial existente com a cidade “B” não é suficiente para que se constitua o domicílio eleitoral naquela circunscrição.

De fato, é imprescindível que haja o vínculo político do eleitor com seu domicílio eleitoral.

A amplíssima interpretação do conceito de domicílio eleitoral, pelo Poder Judiciário, se não impostos certos limites, acarretará na usurpação da competência legislativa, dado que não se pode abster de aplicar uma norma, com fundamento em sua interpretação.
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1Código Eleitoral Comentado, 4ª Ed., Saraiva, pág. 78.

2Tribunal Superior Eleitoral, acórdão n.º 18.124, Rel. Min. Fernando Neves, j. 16.11.00.

3Recurso Especial Eleitoral n.º 18.803, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 11.09.2001.

4Hermenêutica e interpretação constitucional, Celso Bastos Editor, 1997, pág. 106.

5Recurso Extraordinário n.º 166.772-9/RS

6Recurso Extraordinário n.º 93.701-3/MG
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*Advogado do escritório Barcellos Tucunduva Advogados





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