A imunidade tributária e sua relevância para a comunicação no país
Lourival J. Santos*
Como foi dito, é preciso destacar que essa imunidade tem como escopo principal propiciar a maior difusão de idéias e informações e contribuir, objetivamente, para o incremento da cultura do povo, na medida em que retira da competência daqueles entes públicos o poder de tributar o papel destinado às publicações editoriais impressas e as próprias publicações, propiciando, assim, com a redução de custos pela não taxação, que um número maior de cidadãos brasileiros possam ter acesso à leitura e às informações.
Como já tivemos a oportunidade de nos manifestar em trabalho sobre o tema, publicado, originalmente, na revista semestral do Instituto dos Advogados de São Paulo/IASP:
"O benefício trazido pela franquia tributária à mídia impressa, refletido no barateamento do preço das publicações específicas e, por consequência, na maior possibilidade de acesso a elas por público mais numeroso, é mantido no texto constitucional de 88 e representa fator de inegável engrandecimento político por projetar o Brasil, neste mister, como um país preocupado em beneficiar, amparar e estimular a disseminação da cultura e das idéias, pela eliminação do ônus fiscal." 1
O grande e saudoso jurista Aliomar Baleeiro, ex-Presidente da Suprema Corte do País e que também exerceu mandato de Deputado Federal pela Bahia, sobre as significâncias jurídicas e políticas da imunidade tributária, escreveu que: "o legislador constitucional optou pelos valores espirituais que, ao mesmo tempo, coincidiam com a necessidade de preservar-se a liberdade de crítica e de debate partidário através da imprensa." Disse, também, que: "o imposto pode ser meio eficiente de suprimir ou embaraçar a liberdade da manifestação do pensamento (...) e de direitos que não são apenas individuais, mas indispensáveis à pureza do regime democrático."2
Como é sabido, o acesso à leitura no Brasil é, infelizmente, precário, poucos o tem, assim como é real que são raros os grupos de comunicação de mídia impressa com capacidade financeira para expandir ou mesmo manter ativas as suas atividades, em razão dos altos custos financeiros e do reduzido público alvo, com condições e interesse na aquisição de publicações, além da forte concorrência sofrida de outros ramos da comunicação, com programações e conteúdos variados, não raro importados, e dirigidos a todos os gostos.
O projeto de Emenda Constitucional nº 265/2008
O Projeto em referência e objeto deste trabalho, que é de autoria do Deputado Federal Henrique Afonso (PT/Acre) e para o qual S.Exa., o ilustre Deputado Nelson Tadeu Filippelli (PMDB/DF) foi nomeado Relator, propõe alteração ao artigo 150 da Constituição Federal, acrescentando ao mesmo um § 8º com a seguinte redação: "A vedação do inciso VI, letra "d" não se aplica às publicações de caráter pornográfico", ou seja, objetivando eliminar a imunidade tributária de publicações consideradas pornográficas.
Como justificação o PEC pretende retirar a imunidade tributária relativa a impostos, que beneficia as publicações revestidas de caráter pornográfico, que não resulte ganhos educacionais ou culturais a seus leitores.
Considerações jurídicas sobre o caso limitação constitucional ao poder reformista em face de preceitos fundamentais
Primeiramente, é sabido que o poder constituinte originário é ilimitado e incondicionado, uma vez não estar sujeito a qualquer forma prefixada para realizar sua obra de constitucionalização ou para manifestar sua vontade. Estamos aqui falando especificamente do poder constituinte, também chamado de poder genuíno, de elaborar uma constituição sem encontrar limites no direito anterior e sem dever de obediência a nenhuma regra jurídica preexistente.
Uma vez realizada a obra de constitucionalização e tendo o poder constituinte manifestado sua vontade dentro do texto constitucional aprovado e promulgado, os parâmetros que nortearam a elaboração da Carta, tornam-se obrigatoriamente os mesmos parâmetros ou princípios que deverão ser rigorosamente acatados em qualquer eventual proposta de emenda ou de reforma dessa Constituição.
De outro lado, como também é notório, o Texto Constitucional consagra, no título destinado aos Direitos e Garantias Fundamentais, Individuais e Coletivos, especificamente no artigo 5º, incisos de I a LXXVII, as denominadas cláusulas pétreas, que representam os conceitos fundamentais norteadores dos direitos da pessoa dentro do Estado Democrático de Direito, como é designada a República Federativa do Brasil, segundo o artigo inaugural da Carta.
Também é certo que os direitos e garantias individuais, pela relevância que lhes conferiu a Assembléia Nacional Constituinte, como sendo valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social, conforme a dicção do preâmbulo do Diploma Constitucional, deverão ser rigorosamente observados e preservados, sem a possibilidade de serem modificados ou abolidos por qualquer deliberação.
Leia-se, a propósito, o que estabelece o § 4º, do artigo 60 da Constituição Federal, dentro do Capítulo destinado ao Processo Legislativo e às Emendas Constitucionais, que assim diz:
"Art. 60 – A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
.............................................................................................................
§ 4º- Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
IV- os direitos e garantias individuais"
Pela simples leitura do texto em epígrafe conclui-se que qualquer proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais será inconstitucional e, portanto, inaceitável.
Dentre os direitos e garantias individuais previstos no já citado artigo 5º do Texto Constitucional estão capitulados, como princípios básicos e fundamentais conquistados pela sociedade democrática brasileira, a livre manifestação do pensamento (inciso IV); a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (inciso IX) e o que assegura a todos acesso à informação.
Claro está, portanto, que a censura foi varrida do sistema jurídico pátrio, ao mesmo tempo em que a transmissão do pensamento é livre e jamais poderá ser cerceada sob qualquer hipótese.
Pois é exatamente o que propõe a Emenda nº 265/08, ora criticada. O referido projeto, em trâmite regular no Congresso Nacional, a pretexto de tributar publicações que forem consideradas - por critérios não definidos e que remetem obviamente ao campo do sentimento individual – edições avaliadas subjetivamente como sendo pornográficas. Isto agride os princípios fundamentais que asseguram a liberdade de expressão e o acesso à informação, sem censura ou licença, na medida em que pretende retirar o benefício tributário e, com isso, talvez o próprio poder de sobrevivência, de livros, jornais, periódicos, que forem condenados com a pecha de divulgações pornográficas, por quem for incumbido de exercer o poder de censor e de definir o que seja pornográfico para os padrões deste país.
Dentro do modelo político democrático assumido pelo Brasil, por força do qual se proibiu a censura ou qualquer tipo de obstáculo à liberdade de transmissão do pensamento e da comunicação intelectual, artística, científica e de comunicação, por qualquer sistema e sem restrição, pretender condicionar o exercício dessa liberdade ao pagamento de imposto é estabelecer restrição inconstitucional à liberdade de expressão.
Engana-se quem pensa em sentido contrário, para justificar injustificáveis critérios moralistas ou preconceituosos ora buscados por intermédio deste projeto.
Na medida em que se permite a tributação de publicações consideradas pornográficas, restringe-se ou mesmo tolhe-se a liberdade de manifestação do pensamento, ou de expressão da atividade intelectual ou artística (direito pétreo assegurado a todas as pessoas), simplesmente porque a alguém (talvez o Fisco) será conferido o poder autocrático de definir o que seja pornográfico, obsceno ou impróprio para o povo, bem como o de castigar o "faltoso" com exação fiscal.
Será, além de tudo, a preterição dos critérios, rígidos, restritivos e rigorosos, fundamentais à definição jurídica da própria obrigação tributária, pois a determinação do fato gerador estará sujeita aos critérios subjetivos e personalíssimos do intérprete, o que é juridicamente absurdo.
Como escreveu o suadoso e notável Almilcar Falcão:
"Para o nascimento da obrigação tributária necessário é que surja, concretamente, o fato ou pressuposto que o legislador indica como sendo capaz de servir de fundamento da relação jurídica tributária".
Mesmo porque, sem a definição em lei não há fato gerador e, por conseguinte, não há como se prentender concreta qualquer obrigação de natureza fiscal.2.1
Além desse fato, sabe-se também, que pela lei especial de direito autoral (Lei 9.610/98 - clique aqui) os jornais, revistas e os periódicos de um modo geral são classificados dentro das chamadas obras coletivas, que são aquelas constituídas pela participação de diferentes autores, cujas contribuições se fundem numa criação autônoma. A lei autoral assegura proteção às participações individuais nas tais obras coletivas, como sendo obras intelectuais autônomas.
Pergunta-se: e se dentro de um jornal, revista ou mesmo de um livro de contos, apenas uma das contribuições for considerada pornográfica; será o veículo de comunicação parcialmente tributado?; e se, ao contrário, for totalmente tributado o veículo, qual a justificativa jurídica para a taxação das criações autônomas consideradas não pornográficas?
Isto, com todo o respeito, resvala para a teratologia e deverá ser evitado.
Da impossibilidade da aplicação de critérios subjetivos na elaboração e interpretação de textos legais
Considerando-se pornográfica uma publicação, estar-se-á considerando-a atentatória à moral e aos bons costumes ou, no mínimo, uma obra que trata de coisas ou assuntos obscenos ou licenciosos, capazes de explorar ou motivar o lado sexual do indivíduo.
Isto, entretanto, não retira da obra a natureza de criação intelectual, artística ou de comunicação de idéias e pensamentos, protegidos pela Constituição como manifestações livres de qualquer censura ou licença.
Ainda que seja redundante, vale lembrar que a PEC pretende condicionar ao pagamento de imposto o exercício de tais liberdades, desde que alguém defina como pornográfico o conteúdo divulgado.
Novamente perguntamos: baseado em que critério a publicação do nu, nos dias de hoje, poderá ser definida como pornográfica?; o que dizer dos textos abordando assuntos tidos como eróticos, obscenos ou licenciosos?; quem definirá tais parâmetros de valores?; na definição do que seja pornográfico será considerado o senso médio ético do povo em geral ou a simples posição isolada, sujeita a eventuais sentimentos preconceituosos ou moralistas?
Para tais perguntas, não haverá resposta consentânea com o espírito do legislador constituinte, tanto quando este estabeleceu cláusulas imutáveis no Texto sobre a comunicação, como quando estabeleceu a imunidade tributária dos livros, jornais, periódicos e do papel destinado à sua impressão, objetivando ampliar a disseminação da cultura e da informação no país.
Se interpretarmos sistematicamente a Constituição, perceberemos que determinadas definições constitucionais, mesmo não estando incluídas diretamente nas matérias imutáveis (cláusulas pétreas), também o são, por decorrência da plenitude lógica e das premissas verdadeiras que nortearam a elaboração do texto constitucional. Este é o caso da proibição de tributar, estatuída no artigo 150, inciso VI, letra "d", da Constituição Federal, que visou um bem maior representado pela difusão da cultura e da informação, figurando tal princípio como limitador do poder reformador.
Não se pode esquecer, também, se aprovada a PEC em questão, do risco de que a autoridade arrecadadora, na sanha de tudo fiscalizar e tributar poderá alargar ao seu bel prazer as suas definições e arvorar-se em detentora de um poder ilimitado, eminentemente inconstitucional, de definir regras de costumes para a sociedade.
Sobre a evolução das regras sociais
Como dissemos linhas atrás, o conceito de pornografia nas sociedades modernas, já não é o mesmo que aquele em voga até a metade do século 20. O grande jurista Carlos Maximiliano, há mais de cem anos, já aconselhava que na interpretação "incumbe ao hermeneuta seguir o curso da consciência moral, que se modifica dia a dia, no seio do mesmo povo."3
Só para ilustrar esta asserção, Jânio Quadros proibiu o biquíni na praia quando presidente, assim com a Revista Realidade foi aprendida na década de 60 por veicular matéria da mais alta e nobre seriedade, sobre um trabalho de parto, apresentando com fotos e explicações didáticas e científicas, o que foi interpretado como sendo texto contrário à moral e aos bons costumes pelos censores do governo militar.
O processo, contudo foi revertido, com a liberação da publicação, graças ao descortino do grande jurista aqui já citado, Aliomar Baleeiro, então Ministro da Suprema Corte, onde o processo foi julgado em grau de recurso Extraordinário, o qual, em voto emblemático e atual, mostrou que o julgador jamais poderia se deixar conduzir por critérios subjetivos e divorciados da realidade e alheios à evolução sócio cultural do País.
Permitimo-nos citar passagens do julgamento, perfeitamente aplicáveis à temática objeto desta opinião legal e que são auto-explicativas:
"o conceito de obsceno, imoral, contrário aos bons costumes é condicionado ao local e à época. Inúmeras atitudes aceitas no passado são repudiadas hoje, do mesmo modo que aceitamos sem pestanejar procedimentos repugnantes às gerações anteriores;"
"os problemas de sexo, que são, em geral, o tabu dos censores, fazem objeto da investigação científica de várias universidades, inclusive do ponto de vista psicológico e psiquiátrico das obras literárias e artísticas que tomam por motivo;"
"seria mandado para um hospício de alienação o juiz que apreendesse, hoje, Madame Bovary ou denunciasse Flaubert, mas este, há um século, foi a julgamento;"
"os juízes dos tempos de nossos avós e pais, ao que eu saiba, não apreenderam nunca a Carne de Julio Ribeiro, hoje um clássico."4
Mister se faz assinalar que o agudo e brilhante voto do festejado Ministro Baleeiro também foi exarado há mais de meio século, em pleno regime militar e sob a vigência do violento e despótico AI 5, o que revela, ainda mais, o contra-senso e arcaísmo da proposta PEC objeto deste trabalho.
Sobre o conhecido romance A Carne, citado pelo jurista, vale lembrar que esta obra foi publicada pela primeira vez em 1888 e provocou enorme escândalo na ocasião, por abordar temas então evitados na própria literatura do País, como o amor desimpedido de Lenita, a personagem do romance, o divórcio de Manuel, também personagem do romance, sugerindo, ainda, um novo papel da mulher na sociedade.
Mas, apesar dos vários vetos que lhe foram impostos, então, por aqueles que se julgavam defensores da moral e dos bons costumes, essa obra atravessou os tempos, constituindo-se num verdadeiro clássico da literatura brasileira, muito citada e estudada desde os bancos escolares.
Seria este livro considerado sem valor educacional ou cultural para a filosofia da PEC ora sugerida?
Há também outras obras que, a despeito de terem sido muito discutidas quando publicadas pela primeira vez, tornaram-se clássicos da literatura mundial, a exemplo de "Madame Bovary”, editada em 1857, sob forte clima de enorme escândalo na sociedade, tendo sido seu autor, Flaubert, acusado da prática de ofensa moral à sociedade.
Outras poderão ser lembradas, como a de autoria do escritor inglês D. H. Lawrence, "O Amante de Lady Chatterley", que fora proibida na Inglaterra, País natal de seu autor, por 32 anos, por ter sido inculcada de imoral e pornográfica pela crítica inglesa. Publicada em outros países, datando a primeira publicação de 1928, alvo de muita polêmica e discussões é hoje, com justiça, considerada um grande clássico da literatura mundial.
Poderíamos, ainda, citar "Lucíola" e "Diva", do grande cearense José de Alencar, mas, fiquemos apenas nas três obras anteriormente citadas, por serem emblemáticas à questão ora em debate.
É por essa razão que o grande jurista e mestre da hermenêutica, Carlos Maximiliano, já aqui mencionado, há mais de um século escreveu que: "o legislador é um filho do seu tempo; fala a linguagem do seu século, e assim deve ser encarado e compreendido".5
Ante os motivos aqui expostos, é inarredável a conclusão de que a PEC ora examinada deverá ser rejeitada por todos os motivos apontados e, sobretudo, por ser manifestamente inconstitucional.
Esta é a nossa opinião sobre o caso.
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1 Lourival J. Santos, Idas e Vindas na Área Jurídica da Comunicação, Revista do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo, ano 10, Nº 20, Editora Revista dos Tribunais, p. 302 a 311.
2 Aliomar Baleeiro, Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, 7º edição, 2003, Editora Forense, p. 340.
2.1 Almilcar Falcão, Fato Gerador da Obrigação Tributária, 6º edição, Forense, pg.
3 Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 19º edição, 2003, Editora Forense, p. 133.
4 RTJ 47/ 787, 790 – 796, Julgamento de RE realizado em 1968.
5 Carlos Maximiliano, (op.cit.), p. 113.
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* Advogado do escritório Lourival J. Santos - Advogados
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