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A solução legal à falta de terras para os índios guarani em Mato Grosso do Sul

Em 1999 o relatório final da CPI da FUNAI, que funcionou na Câmara dos Deputados, exigiu do Ministério da Justiça a “imediata solução para os índios Guarani Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, que estão confinados em áreas insuficientes para a sua própria sobrevivência. E que a FUNAI promova os meios para dar-lhes a necessária assistência, no que for necessário para que não mais se registrem mortes por suicídio nestas comunidades.”

3/9/2008


A solução legal à falta de terras para os índios guarani em Mato Grosso do Sul

Newley A. S. Amarilla*

Em 1999 o relatório final da CPI da FUNAI, que funcionou na Câmara dos Deputados, exigiu do Ministério da Justiça a "imediata solução para os índios Guarani Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, que estão confinados em áreas insuficientes para a sua própria sobrevivência. E que a FUNAI promova os meios para dar-lhes a necessária assistência, no que for necessário para que não mais se registrem mortes por suicídio nestas comunidades." Mais recentemente, outra CPI da Câmara dos Deputados, "destinada a investigar as causas, as conseqüências e os responsáveis pela morte de crianças indígenas por subnutrição de 2005 a 2007", que encerrou seus trabalhos em 06 de junho do corrente ano, recomendou em seu relatório final a adoção de "providências administrativas no sentido de assegurar espaço territorial suficiente e adequado para os povos indígena Guarani, Kaiowá e Terena, que se encontram confinados na terra indígena de Dourados, concluindo-se os procedimentos administrativos de demarcação das terras por eles tradicionalmente ocupadas, revendo-se os limites das atuais terras já demarcadas".

Volta e meia a imprensa noticia a prática de atos de violência entre os Guarani, tais como assassinatos e suicídios, apontando como uma das causas o confinamento a que estão submetidos.

Perante a última CPI mencionada no primeiro parágrafo, compareceu o presidente da FUNAI Márcio de Meira e declarou que "as terras dos guaranis foram demarcadas no início do século passado, com base em uma população menor do que a encontrada hoje na região, estimada em 40 mil indígenas. Ele destacou que o crescimento populacional dos índios hoje, no Brasil, é seis vezes maior do que o observado na população não-índigena" (clique aqui).

Parece ser unânime a constatação de que os Guarani necessitam de mais terras. Mas se é assim, por que causou um rebuliço danado, a ponto de provocar manifestações do Governador do Estado, Prefeitos Municipais, parlamentares de todas as esferas, federações, sindicatos, produtores, além de intenso noticiário, a criação pela FUNAI de grupos técnicos para identificar e delimitar terras indígenas que estariam localizadas ao longo dos territórios de vinte e seis municípios sul-mato-grossenses e que seriam reivindicadas pelos Guarani?

Primeiramente, cabe esclarecer que a FUNAI agiu pressionada pelo Ministério Público Federal (MPF), que obteve daquela, em 12 de novembro de 2007, Compromisso de Ajustamento de Conduta no sentido de identificar e delimitar novas terras para os Guarani. Entre outras justificativas alinhadas no documento pelo MPF, foram consideradas as disposições constitucionais que reconhecem aos índios "os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam" e o dever de a União demarcá-las, assim como o contido no art. 14 da Convenção 169 da OIT (clique aqui), que em síntese repete garantias já inscritas em nossa Lei Maior (clique aqui).

Levou-se em conta, também, na elaboração do compromisso, duas conclusões alcançadas em encontros que teriam sido previamente promovidos pelo MPF, quais sejam: "a maior parte dos problemas sofridos pela população Guarani Kaiowá está relacionada à falta de terra" e haveria "uma relação, não exaustiva, de 31 (trinta e uma) Terras Indígenas (Tekohas) a serem identificadas e delimitadas e que são fortemente demandadas por Comunidades das etnias KAIOWÁ e ÑANDEVA localizadas na região sul do estado de Mato Grosso do Sul".

Em segundo lugar, deve ser assinalado, por ser fato público e notório, tanto que admitido pelo próprio presidente da FUNAI, que as terras dos Guarani já foram demarcadas no início do século XX e que a população indígena cresceu muito além da média nacional.

Logo, se demarcação já houve, ainda que em tempos remotos, e a falta de terras deu-se pelo crescimento populacional, a solução não é identificar e demarcar mais terras, fazendo incidir essas ações sobre terras de particulares, haja vista que este agir não encontra apoio em nenhum diploma legal, principalmente na Constituição de 1988, que obriga a demarcação de terras ainda não demarcadas e de posse tradicional dos índios, mas não admite o avanço sobre terras de há muito consolidadas na propriedade e posse dos não índios, obtidas mediante titulação regular por parte da União ou do antigo Estado de Mato Grosso ou da Província que o antecedeu.

Mas se parece tão óbvia essa conclusão, por que tantos se voltam contra ela, especialmente setores do Governo, MPF e entidades defensoras dos indígenas?

Sucede que reconhecida determinada terra como de posse tradicional dos índios, seu ocupante, proprietário ou não, dela será desalojado sem ser indenizado do valor da mesma, recebendo apenas, se possuidor de boa-fé considerado for, indenização pelas benfeitorias. Ou seja, obtém-se a terra de graça, daí a opção de alguns em trilhar por esse caminho.

Qual é a solução, então?

O MPF, ao obrigar a FUNAI a se comprometer com a demarcação de novas terras lançou mão da Convenção 169 da OIT, que embora datada de 1989, está em vigor no Brasil desde 25 de julho de 2003. Essa "Convenção Sobre os Povos Indígenas e Tribais", além das garantias asseguradas aos povos de que trata – a meu ver, inferiores às constantes na nossa Constituição de 1988 – sustenta em seu art. 19 que "os programas agrários nacionais deverão garantir aos povos interessados condições equivalentes às desfrutadas por outros setores da população, para fins de:

a) alocação de terras para esses povos quando as terras das que dispunham sejam insuficientes para lhes garantir os elementos de uma existência normal ou para enfrentarem o seu possível crescimento numérico;

b) a concessão dos meios necessários para o desenvolvimento das terras que esses povos já possuam".

E não poderia ser diferente.

A OIT (Organização Internacional do Trabalho), organismo das Nações Unidas, não seria irresponsável a ponto de produzir legislação determinando que terras indígenas fossem demarcadas de qualquer maneira ou em qualquer situação, como se as populações indígenas contassem com privilégios não atribuídos às demais etnias. Por isso, além de prever a adoção de programas agrários para os indígenas com terras insuficientes, devido ao seu crescimento numérico, também estabeleceu a proibição de a Convenção "prejudicar os direitos e as vantagens garantidos aos povos interessados em virtude de outras convenções e recomendações, instrumentos internacionais, tratados, ou leis, laudos, costumes ou acordos nacionais" (art. 35), recomendando sua aplicação "com flexibilidade, levando em conta as condições próprias de cada país" (art. 34).

De modo que para as hipóteses em que as terras indígenas tornaram-se insuficientes, como aconteceu com os Guarani, a solução alvitrada pela Convenção, como se viu, não é a simples identificação e delimitação de novas terras, mas a adoção de programas de reforma agrária específicos. Se as terras um dia destinadas aos Guarani tornaram-se insuficientes, em virtude do propalado crescimento da população indígena, a solução, por óbvio, não é a ficção de transformar, num passe de mágica, as terras lindeiras em "velhas" terras indígenas, metamorfoseando seus atuais ocupantes em novos sem-terras. O MPF, pela grandeza de suas funções, deveria ser o primeiro a reconhecer que a ordem constitucional de 1988, garantidora de direitos aos índios, veio conformada nos princípios da solidariedade e da fraternidade, não admitindo que suas políticas compensatórias sejam executadas mediante o sacrifício de alguns. Tanto quanto devem ser asseguradas aos índios terras suficientes para sua existência, deve ser garantido aos não-índios o direito de propriedade, passível de expropriação pelo Estado, desde que pago previamente o justo preço.

A desapropriação de terras para os Guarani, autorizada pela legislação recepcionada da OIT, mostra-se, assim, como a única solução legal para o grave problema vivido pelos brasileiros da etnia Guarani. Sua efetiva implantação depende, todavia, da tal "vontade política", aquela que costuma se manifestar mais amiúde em ano eleitoral e em favor de quem demonstra ser capaz de retribuir com votos, de preferência em quantidade superlativa.

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*Advogado do escritório Newley, Romanowski, Araújo & Guerra Advogados Associados

 

 

 

 

 

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