Do Estado de Direito Legal ao transnacional
Luiz Flávio Gomes*
Dois outros modelos de Estado (na verdade sub-modelos) tentaram superar esse Estado liberal mas continuaram fulcrados fundamentalmente no legalismo, sem alcançar o "paradigma" constitucionalista: Estado social de Direito e Estado democrático de Direito.
O Estado social de Direito constituiu reação contra o individualismo e abstencionismo do Estado liberal; o Estado democrático configurou uma tentativa de concretização material do Estado social (ou seja: superação do individualismo, do neocapitalismo etc.). Duas correntes socialistas se destacaram: uma de cunho marxista (que conduziu às revoluções na Rússia, em 1917, e na China, em 1949) e outra não marxista. Ambas contestavam o individualismo burguês, a insuficiente garantia que o Direito representava para grande parcela da população, a ausência de proteção efetiva dos direitos individuais e econômicos, a irrealização da igualdade material etc.
Confiava-se no intervencionismo estatal, ou seja, o Estado não pode ficar ausente do objetivo de alcançar conquistas econômicas e sociais. Nascia, desse modo, o chamado Estado de bem-estar ou Estado de bem-estar social, que acabou recebendo o impulso do movimento de democratização material.
O Estado democrático de Direito surgiu justamente para possibilitar a todos a justiça social. A síntese se dá com o Estado democrático e social de Direito, que vem a ser a soma das liberdades conquistadas com o Estado liberal mais a busca pela justiça social.
A segunda onda evolutiva do Estado, do Direito e da Justiça vem representada pelo chamado Estado de Direito constitucional (EDC), que se apresenta, desde a Segunda Guerra Mundial, como a base jurídico-normativa (mais evoluída) das sociedades civilizadas. A evolução do velho Estado de Direito legal (liberal ou social ou democrático social) para o Estado de Direito constitucional retrata um avanço (jurídico e político) extraordinário. Há uma mudança de "paradigma", que nenhum meio acadêmico pode (mais) ignorar. Pode-se não concordar com o novo paradigma, mas não se pode deixar de ensiná-lo (de mostrá-lo).
Recorde-se que o Estado, enquanto regido (exclusivamente) pelas regras, valores, normas, princípios e garantias do clássico Estado de Direito legal (EDL) - Estado de legalidade -, alcançou, sobretudo durante o século XX, sua mais aguda crise.
Dentre os múltiplos aspectos dessa crise, de acordo com Ferrajoli, sobressaem três:
(a) crise de legalidade (estamos vivenciando verdadeiros Estados de sub-legalidade);
(b) crise na sua função social (os Estados modernos estão se tornando cada vez mais neoliberais, deixando de cumprir suas tarefas básicas consistentes na distribuição da justiça, saúde, educação etc.) e
(c) crise do tradicional conceito de soberania (os Estados decidem cada vez menos os seus destinos, que freqüentemente são ditados e guiados por órgãos internacionais).1
Uma das principais conseqüências que decorreram da crise anunciada consistiu na transformação do velho Estado de Direito legal (EDL), que foi cedendo espaço para a construção de um novo paradigma (de Estado, de Direito e de Justiça) que pode (e deve) ser conhecido (e reconhecido) como Estado de Direito constitucional (EDC), cuja premissa lógica reside no valor da dignidade humana, de genealogia bem conhecida: estoicismo, Velho Testamento, cristianismo, direito natural etc. Do governo de homens (Estado absoluto) evoluímos para o governo das leis (Estado legalista) e deste estamos nos dirigindo para o governo do Direito.
Mas uma coisa é o Estado de Direito constitucional regido pela Constituição de cada país, modelo de Estado de Direito esse que é criado e aplicado pelos legisladores e juízes respectivos. Outra bem distinta consiste em enfocar esse mesmo Estado de Direito sob a ótica internacional (ou regional ou comunitária ou, em síntese, transnacional). Não são dois modelos excludentes, ao contrário, são complementares. No caso brasileiro, aliás, complementares e sucessivos (porque somente agora, no princípio do século XXI, é que se começa a prestar atenção no aspecto internacional do Estado de Direito constitucional, sobretudo a partir dos votos de Gilmar Mendes – RE 466.343-SP – e Celso de Mello – HC 87.585-TO).
Estudar hoje o Estado de Direito constitucional sem o complemento da transnacionalidade significa conhecer apenas a metade do que se deve saber. E se o estudante ou operador jurídico sabe manejar tão somente os códigos (ou seja: a legalidade), conhece apenas um terço do que se deve saber. Para além da legalidade (Estado de Direito legal) está a constitucionalização e a transnacionalidade do Direito.
Eis as três palavras-chave que podem exprimir as evoluções do Estado, do Direito e da Justiça: legalidade, constitucionalização e transnacionalização. Cada uma delas corresponde a uma onda evolutiva.
Uma quarta onda, neste princípio de novo milênio, também já começa a ser vislumbrada: trata-se do Estado de Direito global (que já conta com seus primeiros ordenamentos jurídicos e órgãos supralegais: Estatuto de Roma e TPI, ONU e Tribunal de Justiça Internacional etc.).
Conhecer e saber manejar todas essas ondas evolutivas do Estado, do Direito e da Justiça é a primeira tarefa do estudante ou operador do Direito antenado com o seu tempo.
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1Cf. FERRAJOLI, Luigi, Derechos y garantias, Madrid: Trotta, 1999, p. 15 e ss.
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