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Um novo e democrático Tribunal do Júri (V)

1. A redação e a votação dos quesitos Dispõe o art. 482, da Lei nº 11.689/08: “O Conselho de sentença será questionado sobre matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido”. Parágrafo único: “Os quesitos serão redigidos em proposições afirmativas, simples e distintas, de modo que cada um deles possa ser respondido com suficiente clareza e necessária precisão. Na sua elaboração, o presidente levará em conta os termos da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, do interrogatório e das alegações das partes”.

28/7/2008


Um novo e democrático Tribunal do Júri (V)

Breves notas em torno da Lei nº 11.689, de 9 de julho de 2008

René Ariel Dotti*

1. A redação e a votação dos quesitos

Dispõe o art. 482, da Lei nº 11.689/08 (clique aqui):

"O Conselho de sentença será questionado sobre matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido".

Parágrafo único:

"Os quesitos serão redigidos em proposições afirmativas, simples e distintas, de modo que cada um deles possa ser respondido com suficiente clareza e necessária precisão. Na sua elaboração, o presidente levará em conta os termos da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, do interrogatório e das alegações das partes".

O jurado deve decidir apenas as chamadas questões de fato, distintas das questões de direito. Mas assim não ocorre em muitas situações do modelo ainda vigente, quando o juiz popular responde questão tipicamente jurídica. Servem alguns exemplos:

a) se houve excesso culposo (na legítima defesa);

b) se o réu praticou o fato no estrito cumprimento do dever legal (especificação do dever);

c) se o réu ("com esse procedimento"), iniciou a execução do crime de homicídio?;

d) 1º. "O réu, no dia (...), local, ministrou cápsula de cianureto a (...)?";

e) 2º. "A ingestão da cápsula deu causa à morte da vítima?";

f) 3º. "O réu ministrou a cápsula a pedido da vítima e para pôr fim a grave sofrimento desta?";

g) 4º. "O réu supôs, por erro, que o pedido da vítima, nas circunstâncias, tornava seu procedimento autorizado pela lei?";1

h) 1º. "O réu (...)"; e) 2º. "Essas lesões (...) (quesito comum à letalidade ou à tentativa conforme o caso)";

i) 3º O réu (...), em conseqüência de erro plenamente justificado pela circunstância de (especificar a circunstância de que resultou o erro) supôs achar-se em face de uma agressão à sua pessoa? (ou agressão a terceira pessoa, ou situação de necessidade, ou de estrito cumprimento de ordem legal, ou de exercício de um direito);

j) 4º. "Se existisse agressão à sua pessoa (ou à de terceira pessoa, ou uma situação de necessidade, ou de cumprimento de ordem legal, ou no exercício de um direito) seria lícito o procedimento do réu (...)?";

k) 5º. "O erro do réu derivou de culpa?".2 Como se pode observar por estas e muitas outras situações, a afirmação de que o Júri decide apenas questão de fato tornou-se um mito diante da formulação técnico-jurídico-penal do questionário. Se persiste, ainda, na doutrina científica, a polêmica sobre o início de execução do homicídio (quando terminam os atos preparatórios e quanto surge o início de execução?), como atribuir ao magistrado leigo a "solução" da controvérsia?

Com a experiência cotidiana e as decisões que anulam o Júri, pela deficiência de redação dos quesitos ou contrariedade nas respostas, tornou-se um truísmo a conclusão de que a sexagenária fórmula continua sendo – como tenho dito reiteradamente – uma das usinas de nulidade.

2. A lição da experiência no Judiciário e no Ministério Público

Com a inegável autoridade da militância no Júri, um imenso número de magistrados e membros do Ministério Público – além dos advogados – tem reconhecido e proclamado essa realidade que compromete o prestígio da mais democrática instituição jurídica brasileira.

Em artigo publicado na coletânea organizada por Rogério, Lauria Tucci,3 o Juiz de Direito da Vara do Júri de Campinas, José Henrique Rodrigues Torres, informou que durante o III Encontro Nacional do Tribunal do Júri, realizado em Belém do Pará, em dezembro de 1997, ouviu um dos palestrantes afirmar que "a quesitação muita vez parece um lobo mau". E prossegue:

"Como é cediço, no que diz respeito aos julgamentos do Tribunal do Júri, a maioria das nulidades invocadas pelas partes e declaradas pelos Tribunais está relacionada com a quesitação. Logo, se não há motivos para ter medo do lobo mau, pelo menos ele deve ser respeitado. (...) Para alguns profissionais do Júri, ou mesmo para alguns de seus críticos, a quesitação é muito simples. Não é verdade. No Encontro Nacional de Tribunais do Júri acima referido, o Ministro Evandro Lins e Silva afirmou que um dos momentos mais dramáticos e decisivos no julgamento do Tribunal do Júri é exatamente o momento da quesitação. E, com toda a sua experiência e inegável sabedoria, prestes a quebrar o recorde nacional de defesas do Tribunal do Júri, o advogado, juiz e jurista Evandro não teve receio de confessar que reputa difícil e complexa a quesitação, especialmente em face da atual sistemática adotada por nossa legislação. Ele tem razão".

Após fazer outras considerações e observar que "basta uma consulta a qualquer repertório de jurisprudência para que sejam encontradas inúmeras decisões anulando julgamentos do Tribunal do Júri por causa dos quesitos", o Magistrado – com a experiência de presidir sessões do tribunal do povo – arremata ser importante fazer uma reflexão sobre o assunto "com o pensamento liberto dos grilhões dos preconceitos, dos mitos, dos dogmas e das fórmulas preconcebidas a respeito da quesitação e da própria instituição do Júri".4

Um dos mais qualificados críticos foi o imortal ex-ministro do Supremo Tribunal, Ary Franco, na obra de referência publicada quando exercia a cátedra de Direito Judiciário Penal da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro e era Desembargador do Tribunal de Justiça do antigo Distrito Federal. São suas essas palavras:

"Voltamos, assim, pelo artigo 5º da Lei nº. 263, ao sistema francês, anterior ao Código de Processo Penal (clique aqui), e, consoante dispõe agora o artigo 484 do Código de Processo Penal, o quesitos, cuja importância é vital no julgamento do Júri, tanto que a sua redação defeituosa tem ensejado vários casos de nulidade dos julgamentos (...)."5

Outro Juiz togadom, que durante muito tempo presidiu o Conselho de Sentença, James Tubenchlak, também presta o seu testemunho:

"Em nossa visão crítica, concluímos definitivamente que a causa exclusiva, geradora da deficiência dos quesitos em proporção alarmante, situa-se na deficiência da lei"6.

O depoimento do prestigiado mestre de processo penal e notável ex-integrante do Ministério Público Estadual paulista, Tourinho Filho, é igualmente expressivo:

"Aliás, o questionário, no Júri, continua sendo, como há cinqüenta anos, fonte inexaurível de nulidade. Depois de tantos anos de vigência do atual Código, ainda não se sabe se, na legítima defesa, os quesitos sobre a moderação e os meios necessários devem ser formulados englobada ou distintamente..."7

3. A necessidade de simplificar o questionário

A redação do questionário constitui um ato processual do maior relevo. A simplicidade na redação é uma exigência elementar para a busca da verdade e a realização da justiça. Segundo expressivo julgado, a matéria assume a dimensão inerente à garantia da ampla defesa quando se formula indagação diversa da imputação e, ainda, de modo impróprio e confuso, fica estabelecido o cerceamento de defesa que deve ser declarado a despeito da omissão do defensor que silenciou quando da leitura do questionário. Não se cuida de "indagar da prova de efetivo prejuízo que, no caso, resulta ontologicamente da própria redação dos quesitos. Não se olvide que nenhuma condenação pode prevalecer sem o sufrágio do constitucional devido processo legal, que envolve corolariamente o devido procedimento legal"8.

São inúmeras as decisões dos tribunais cassando decisões do Júri, em conseqüência de defeitos do questionário ou contradição das respostas aos quesitos. Há precedentes de todos os tipos. Assim, já se anulou o julgamento, pelos seguintes vícios:

a) proposição confusa e complexa (RT 732/685);

b) incongruência nas respostas, que demonstrou a perplexidade dos jurados (RT 721/507);

c) não formulação de quesitos sobre a moderação e o elemento subjetivo do excesso, após ter o Júri negado o uso dos meios necessários (RT 721/538);

d) conflitantes manifestações dos jurados (RT 716/429);

e) inversão na ordem dos quesitos, de modo que os prejudiciais ao réu fossem respondidos antes daqueles que o favorecem (RT 726/709 e Súmula 162 do STF - clique aqui);

f) induzimento dos jurados a equívoco em conseqüência da falta de técnica de redação (RT 726/726);

g) falta de desdobramento do questionário em séries distintas para compreender as teses de defesa (RT 695/301 e 720/498);

h) redação de quesito que conduz a equívoco ou perplexidade (RT 660/380).

4. O erro judiciário no Júri do Massacre de El Carajás

O caso de maior repercussão nacional na história dos julgamentos pelo tribunal popular e que configurou um leading case de erro judiciário quanto à esfinge do questionário, ocorreu na comarca de Belém (por desaforamento): o famoso Massacre de Eldorado dos Carajás, no município desse nome, no sul do Pará. Três oficiais da Polícia Militar sentaram no banco dos réus, em 18 de agosto de 1999, como co-autores dos 19 homicídios qualificados, cometidos em 17 de abril de 1996, contra membros do Movimento Sem Terra - MST, mortos a tiros, quando 1.500 deles, que estavam acampados na região, decidiram interditar uma rodovia para protestar contra a demora da desapropriação de terras improdutivas da Fazenda Macaxeira.

Após longos e extenuantes trabalhos, que custaram dias e noites, os jurados responderam afirmativamente aos primeiros quesitos indagando sobre materialidade e co-autoria. Os réus, portanto, estavam já condenados, porque a tese da negativa foi vencida por 4 votos a 3. O Juiz-Presidente, no entanto, havia redigido, após esses primeiros, um quesito absolutamente incompatível com o aspecto factual da causa e já prejudicado, indagando:

"As provas contidas nos autos são insuficientes para a condenação do réu?"9.

O Professor Nilo Batista, atuando em nome das vítimas-assistentes do Ministério Público, dirigiu veemente protesto, sustentando que a condenação já havia sido reconhecida pela maioria dos jurados e que a valoração da prova era questão exclusivamente de Direito. Incompatível, portanto, com a apreciação dos juízes de fato. Mas o Juiz togado afirmou ser aquele um hábito funcional da presidência dos trabalhos. E a pergunta foi feita. Por 4 votos a três, a resposta foi negativa. E mais: contraditória ao já decidido. Um dos 4 jurados que vinha respondendo afirmativamente, assim também procedeu (por provável equívoco) quanto ao malsinado quesito. Nilo Batista consignou o protesto em ata e o julgamento foi anulado em grau de apelação. Em novo julgamento os réus foram condenados.

5.O Projeto do novo Código de Processo Penal

O Projeto de Código de Processo Penal de 198310 já simplificava o questionamento, ao declarar que "aos jurados compete decidir sobre a inocência ou a culpabilidade dos acusados de autoria ou co-autoria de crime doloso contra a vida. Reconhecida a culpabilidade do acusado, compete ainda aos jurados decidir sobre a existência de circunstâncias que tornem o crime privilegiado ou qualificado" (art. 562 e parág. ún.).

A sensibilidade e a experiência dos redatores daquele texto11 absorveram antiga e renovada aspiração dos operadores do Júri. A tortuosa elaboração do questionário, a atmosfera de suspense gerada na chamada sala secreta e a colheita dos votos, caracterizam modalidades de penas atípicas impostas aos participantes do processo. Nestas ocasiões, a "pena" vai para muito além da pessoa do delinqüente.

Esse é um dos problemas mais graves do Júri brasileiro, e é referido por Rui Stoco em linguagem crítica muito expressiva:

"absurda complexidade do sistema de formulação do questionário a ser submetido aos jurados".12

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1 Este questionário aborda hipótese de erro sobre a existência de justificativa que, embora não incluída no sistema legal de exclusão de crime ou isenção de pena (eutanásia), pode autorizar sua especial diminuição. Em marrey, Adriano, silva franco, Alberto e stoco, Rui. Teoria e prática do Júri, 7ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 512. (Os destaques em negrito e itálico são meus).

2 Em marrey, Adriano et alii, ob. cit., p. 521). (Os destaques em negrito e itálico são meus).

3 Tribunal do Júri – Estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 211.

4 Ob. cit., p. 212. Os destaques em itálico são do original.

5 franco, Ary Azevedo. O Júri e a Constituição de 1946 - Comentários à Lei n.º 263, de 23 de fevereiro de 1948, ed. Livraria Freitas Bastos S/A, RJ, 1950, p. 163.

6 Tribunal do Júri - contradições e soluções, Rio de Janeiro: Editora Forense, 1990, p. 118. (Os destaques em negrito e itálico são meus). Uma nova edição dessa obra veio a público pela Saraiva, 1994. Vide, p. 123.

7 Tourinho filho, Fernando da Costa. Processo Penal: 3º Volume. 25a ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 152. Os destaques em itálico e as reticências são do original.

8 RT 719/385.

9 Os destaques em negrito e itálico são meus. (6º quesito).

10 Projeto de Lei n.º 1.655-B, de 1983, aprovado em forma de Substitutivo e publicado no DCN, seção I, supl. De 19.10.1984.

11 O coordenador dos trabalhos foi o sensível e sempre lembrado Francisco de Assis Toledo. O Ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, não poupou esforços para a elaboração do projeto, que foi retirado do Congresso pelo novo governo (1985).

12 "Crise existencial do Júri no Direito brasileiro", em RT 664/252.

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*Advogado do Escritório Professor René Dotti









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