Lei sobre álcool e trânsito
Carlo Huberth Luchione*
É notório no mundo jurídico que o aumento de penas ou da criminalização sem critérios sérios não resolve o problema objeto da lei, in casu, diminuir os acidentes pelo agravamento de sanções, o que certamente é objetivo de toda a sociedade, que aplaude iniciativas no sentido de coibir os que bebem colocando em risco a incolumidade pública. Não é de hoje que há uma tendência mundial de modo a reservar a pena de prisão a indivíduos perigosos, sendo cada vez mais aceita tal realidade pelos diversos organismos internacionais, inclusive a Organização das Nações Unidas, que buscam soluções alternativas à pena de prisão.
A nova "lei seca", se assim podemos comparar, "tolerância zero", em que pese merecer aplausos sua iniciativa, pois é absurdo os excessos cometidos pelos motorista bêbados, principalmente nas madrugadas, ceifando suas próprias vidas e a dos incautos que estiverem em sua companhia e até mesmo provocando mortes de terceiros, merece reparos sob pena da pecha da inconstitucionalidade, pois determinados artigos estão na contramão da tendência internacional, estando comprovado que o agravamento das penas por si só não constitui fator de inibição de criminalidade.
Daí a "tolerância zero" estar em total descompasso, pois as pesquisas demonstram que os acidentes que tanto preocupam a sociedade são provocados por pessoas realmente bêbadas, não se tendo notícia que alguém que bebeu um chope ou taça de vinho esteja neste estado, daí porque radicalizar só irá contribuir para a corrupção e excessos por parte da polícia, que certamente irão ocorrer, exemplificando que os amantes da arte do bem comer e beber, uma boa massa com um bom vinho, correm o risco de sair presos de seu especial programa ao lado da família, transformando pais de família em marginais sujeitos a prisão, pelo perigoso crime de beber apenas uma taça de vinho com a família.
Alardes a parte, está comprovado, não importando se pela égide da lei antiga ou a atual, que o simples fato de alguém ter feito uso de bebida alcoólica não induz ao fato concreto de estar bêbado, expondo a vida de outros a perigo, podendo citar diversos julgados neste sentido, podendo citar alguns:
"O delito de direção perigosa, devido a embriaguez ao volante, está entre os classificados como de perigo concreto. Exige-se, assim, que efetivamente tenha o motorista exposto a risco a vida ou a incolumidade de outrem, não satisfazendo os requisitos do tipo a mera condução de veículo após a ingestão de bebida alcoólica. Recurso desprovido. (RCSE - Nº 158682-1 - Ivaiporã - Vara Criminal - Recte: Ministério Público - Recdo: João Batista Ferreira - Relator: Juiz Sérgio Arenhart)".
"Penal. Processual. Contravenção. Direção Perigosa. Atipicidade da Conduta. "Habeas Corpus". Recurso..
1. Não havendo, como não há, neste caso, descrição da circunstância objetiva de perigo, a conduta atribuída ao acusado não se reveste de tipicidade penal.
2. Ação penal trancada por falta de justa causa. 3. Recurso conhecido mas provido. (STJ RHC 5958/SP - 5ª Turma, Rel. Min. Edson Vidigal, DJU 24.2.97, p. 3350)".
No mesmo sentido, o entendimento desta Primeira Câmara:
"O delito de direção perigosa, devido a embriaguez ao volante, está entre os classificados como de perigo concreto. Exige-se, assim, que efetivamente tenha o motorista exposto a risco a vida ou a incolumidade de outrem, não satisfazendo os requisitos do tipo a mera condução de veículo após a ingestão de bebia alcoólica." Recurso Desprovido.
Arnaldo Rizzardo, em sua obra "Comentários ao Código de Trânsito Brasileiro" Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 767, pontua que: "Na figura, impõe-se que se apure o estado de embriaguez, não importando os índices de concentração de álcool no sangue" (sic).
Em decisões de casos de embriaguez ao volante, assim decidiu o Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo:
"A presença de álcool no sangue do motorista, só por si, não autoriza a conclusão de que ele, no momento do acidente, se encontrava embriagado." (Tacrim/SP – AC – Rel. Gonçalves Sobrinho – Jutacrim 57/288)
"Como a capacidade de resistência do álcool varia de pessoa para pessoa, o fato por si só, de ser encontrada a presença, ainda que considerável, de álcool no sangue do motorista, não autoriza, a bem da verdade, a conclusão de que ele, no momento do acidente, encontrava-se embriagado." (Tacrim/SP – AC – Rel. Gonçalves Sobrinho – Jutacrim 49/385)
Na espécie, inexiste, diante da tolerância zero, qualquer estado etílico em questão, que o sujeito já é penalizado,até mesmo se invocar o direito constitucional de não se sujeitar a suposta prova contra ele, sendo vítima de outra ilegalidade, que é o de ser punido por simples presunção.
O texto da Lei diz ser obrigatório o teste do etilômetro, neste caso é importante lembrar que a Lei não se sobrepõe a Constituição (clique aqui), diversas Leis bem intencionadas demonstram-se inconstitucionais em diversos pontos, como a Lei dos Crimes Hediondos, cujo cumprimento de pena em regime integralmente fechado e proibição expressa de liberdade, hoje são praticamente letra morta porque inconstitucionais declarado pelo Supremo Tribunal Federal.
Dispõe a Constituição Federal (art. 5º, inciso LXIII) que "o preso será informado de seus direitos, ente os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado". Como reiteradamente tem firmado o Supremo Tribunal Federal, o texto legal está a consagrar um princípio maior:o de que ninguém será obrigado a produzir provas contra si mesmo.
Os argumentos de que dirigir trata-se de uma concessão do poder público, além, aliado ao fato de que há disposição expressa na Lei da obrigação de se submeter o possível infrator ao teste do etilômetro ou qualquer outro previsto no caput do art. 165 do CTN, também esbarram em óbices constitucionais, até porque em se submetendo ao teste, poderá o infrator estar com índice elevado de álcool a ponto de incidir no tipo do artigo 306 do mesmo diploma legal, que admite a prisão em flagrante.
Daí se conclui que uma vez constatado índices superiores a 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue é dado voz de prisão ao infrator, então, a submissão ao teste está diretamente ligado a possível processo criminal, e o teste é comprovante em seu desfavor, razão pela qual está o mesmo protegido pelo referido princípio constitucional.
Tal posicionamento de que matéria administrativa não é recepcionada pelo referido princípio constitucional não é isolado e encontra eco em juristas de renome, como Miguel Reale Junior, que define em matéria publicada no Jornal Valor Econômico, no sentido de que mesmo em procedimento administrativo tem-se o direito a não cooperar na própria incriminação.
A Constituição prescreve, "aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e a ampla defesa" (art. 5º LV), do que se conclui que, não só no âmbito de um processo penal, mas diante de qualquer autoridade pública, tem-se o direito a não cooperar na própria incriminação."
Ainda na matéria de Miguel Reale, é citado dois precedentes da Sétima turma do Tribunal Regional da 4ª Região, onde no primeiro caso o Desembargador Federal Fabio Rosa afirmou que "a garantia da não auto – incriminação não está limitada às hipóteses de acusado preso" (tratava- se de procedimento administrativo no âmbito fiscal).
Tal posição ora externada não tem a menor intenção de desprezar a intenção do legislador, pois já era hora de algo ser feito para coibir o uso indiscriminado de bebidas ao volante, o que causa tantas tragédias e dor para famílias inteiras, apenas, radicalizar punindo de "roldão" e criminalizando condutas que não oferecem qualquer perigo a sociedade, deve ser, em nossa opinião, adequada a uma realidade, uma vez que, antes da Lei, estão os princípios constitucionais que norteiam todo o ordenamento jurídico.
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*Advogado do escritório Luchione Advogados