Álcool e direção: alguns breves apontamentos sobre as últimas alterações do Código de Trânsito Brasileiro
Luiz Gustavo Latocheski*
É certo, pois, que a recente lei traz em seu bojo várias outras normas salutares impondo "restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas"; porém assumem maior relevância exatamente as disposições legais que podem diretamente afetar o motorista.
Isso porque é grande o consumo de bebida alcoólica em nosso país, e todos os condutores de veículos que dela fazem uso estão sujeitos às sanções previstas na legislação de trânsito em vigor. E, sejamos honestos, o álcool está presente em todos os cantos, desde uma badalada festa destinada a jovens que gostam de "curtir a vida" despreocupadamente até um inocente almoço em família. Nessa esteira, atire uma pedra quem nunca conduziu um veículo automotor após ter ingerido bebida alcoólica e nunca foi conivente com um amigo ou familiar que o fazia nessa circunstância. Aos que atiraram a pedra: Minhas sinceras congratulações!
É bom que se diga, desde logo, que a nova lei não trouxe novidade alguma a respeito da proibição do consumo de bebidas alcoólicas em momento anterior à condução de veículos automotores. A vedação vem de longa data. O que se fez agora foi dar maior evidência à proibição (desculpem o pleonasmo, mas a evidência já havia sido dada quando da edição de leis anteriores). Não obstante, mesmo para os casos de infração administrativa a antiga norma apontava um limite de tolerância da quantidade de álcool encontrada no sangue (art. 276), o que não mais socorre aos motoristas que ingerem moderadamente a bebida alcoólica.
A primeira modificação nesse sentido encampada pela nova lei atinge o art. 165 do Código de Trânsito Brasileiro, que considera infração "dirigir sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência". A redação do dispositivo já havia sido alterada pela Lei n. 11.275, de 7 de fevereiro de 2006 (clique aqui), e não apresentou mudança substancial relevante de seu conteúdo (a dicção anterior era "dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica").
A medida administrativa antes prevista para a mencionada infração – considerada gravíssima – foi mantida (retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação). Igualmente mantida foi a penalidade cominada: multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir, acrescentando-se, no entanto, que a suspensão há de perdurar pelo prazo de doze meses.
O que tem gerado muitos comentários, outrossim, é o novo teor do art. 276, caput, do CTB:
"Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código".
A redação anterior era:
"A concentração de seis decigramas de álcool por litro de sangue comprova que o condutor se acha impedido de dirigir veículo automotor".
Uma interpretação equivocada do antigo dispositivo poderia sugerir que o estado alcoólico somente estaria configurado se atingido o índice supra apontado. Todavia, não raros são os casos em que algumas pessoas apresentavam índices inferiores ao legalmente previsto e, mesmo assim, mostravam-se mergulhadas em torpeza decorrente da ingestão de bebidas alcoólicas. Em situações desse jaez, havia de se provar de outra forma que o condutor dirigia veículo automotor sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos. Ou seja, mesmo em conformidade com a norma revogada, não importava sobremaneira a quantidade de álcool encontrada no sangue, mas sim o estado debilitado do motorista.
Ocorre que a nova lei pôs uma pá de cal nessa discussão, estabelecendo "tolerância zero" quanto à ingestão de bebidas alcoólicas.
Note-se que o parágrafo único do art. 276 dispõe que "órgão do Poder Executivo federal disciplinará as margens de tolerância para casos específicos". Essas margens de tolerância, pois, deverão ser definidas mediante resolução do CONTRAN (Conselho Nacional de Trânsito), nos termos de proposta formulada pelo Ministro de Estado da Saúde, consoante o disposto no art. 1.º, § 1.º, do Decreto nº. 6.488, de 19 de junho de 2008 (clique aqui). De salientar-se, ainda, que enquanto não editado aquele ato, a margem de tolerância será de dois decigramas de litro de sangue ou de um décimo de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões, para todos os casos (art. 1.º, §§ 2.º e 3.º do referido decreto).
Permaneceu íntegra a redação também dada pela Lei nº. 11.275/06 ao caput do art. 277, que dispõe in verbis: "Todo condutor de veículo automotor envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool, será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia, ou outro exame que por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado".
O método mais comum para a aferição do estado de alcoolemia é o teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro, mais conhecido como "bafômetro"). Entrementes, a infração poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor (art. 277, § 2.º).
Em que pese à máxima jurídica de que ninguém poderá ser obrigado a produzir prova contra si mesmo, consta do § 3.º do art. 277 que àquele que se recusar a submeter-se a qualquer dos procedimentos previstos no caput daquele dispositivo serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 do CTB.
De outra banda, afigura-se de bom alvitre assinalar que a "tolerância zero" refere-se apenas às infrações de trânsito de caráter administrativo. O tipo penal contido no art. 306 do CTB mantém o índice de seis decigramas de álcool por litro de sangue, porém ganhou nova redação, nestes termos: "Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência".
Observe-se que a nova dicção do tipo penal suprimiu a necessidade de potencialidade de dano decorrente da conduta do agente. A redação anterior fazia menção a "conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem".
A pena abstratamente cominada para o delito em questão também permaneceu a mesma: detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Dispõe o parágrafo único do art. 306 que o Poder Público federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia para efeito de caracterização do crime em tela. Assim, conforme o disposto no art. 2.º do Decreto n. 6.488, para fins penais, a concentração igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue (exame de sangue) equivale à concentração de álcool igual ou superior a três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões (teste em aparelho de ar alveolar pulmonar).
Apenas a título de ilustração, seis decigramas equivalem aproximadamente a dois copos médios de cerveja ou a uma dose de bebida destilada para uma pessoa que pesa setenta quilogramas.
Noutra esteira, conquanto possa passar despercebida a alteração da redação do art. 296 do CTB, possui ela grande importância de ordem prática. Dispõe o dispositivo que se o réu for reincidente na prática de crime de trânsito, "o juiz aplicará a penalidade de suspensão da permissão ou habilitação para dirigir veículo automotor, sem prejuízo das demais sanções penais cabíveis” A redação anterior consignava que "o juiz poderá aplicar a penalidade" (grifei). Não possui mais o magistrado a faculdade, a discricionariedade, na aplicação dessa medida acessória.
Frise-se, ademais, ser prescindível que a reincidência seja específica (mesmo delito): basta que haja reiteração na prática do crime de trânsito para que se imponha a sanção, observadas, contudo, todas as regras gerais do direito penal pertinentes à espécie. Oportuno lembrar, também, que a reincidência constitui uma circunstância agravante da pena (art. 61, I, do Código Penal - clique aqui).
Há de se mencionar, ainda, serem aplicáveis aos crimes de trânsito de lesão corporal culposa as disposições dos arts. 74, 76 e 88 da Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995 (Lei dos Juizados Especiais Estaduais – clique aqui) – que tratam da composição dos danos, da transação penal e da necessidade de representação da vítima, respectivamente –, exceto se o agente estiver:
(I) sob influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência,
(II) participando, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística ou, ainda, de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente, ou
(III) transitando em velocidade superior à máxima permitida para a via em 50 km/h (cinqüenta quilômetros por hora), tudo em consonância com a nova dicção do art. 291 do CTB.
Saliente-se, por fim, continuar vigorando integralmente o art. 301 do CTB, que impossibilita a prisão em flagrante ou a exigência de fiança em caso de o condutor de veículo automotor, após causar um acidente de trânsito, prestar pronto e integral socorro a eventuais vítimas.
O Projeto de Lei de Conversão nº. 13/2008 (clique aqui), referente à Medida Provisória nº. 415/2008 (clique aqui), previa a inserção de parágrafo único no art. 301, a fim de obstar a sua aplicação nas mesmas situações elencadas nos incisos do art. 291 (acima mencionadas). Entretanto, embora aprovado o texto na Câmara de Deputados e no Senado Federal, houve veto presidencial por contrariedade ao interesse público. Consta da Mensagem nº. 404 as seguintes razões: "Embora objetivando aumentar o rigor do tratamento dispensado àqueles que atuam de forma irresponsável no trânsito, a proposta pode ensejar efeito colateral contrário ao interesse público. Uma vez produzido o resultado danoso pelo crime de trânsito, o melhor a se fazer é tentar minorar suas conseqüências e preservar o bem jurídico maior, a vida. Nesse sentido, tendo em vista o pronto atendimento à vítima, a legislação estabelece que não seja preso em flagrante aquele que socorrer a vítima. Entende-se que não há razão para se excepcionar tal regra, porquanto que direcionada para a preservação da vida."
Obviamente, o benefício diz respeito apenas à prisão em flagrante, não se estendendo aos demais desdobramentos da conduta do infrator. Por conseguinte, deve o agente responder por seus atos nas esferas administrativas e judiciais (cíveis ou penais), sendo possível, inclusive, que a sua prisão (cautelar ou decorrente de sentença penal condenatória) seja posteriormente decretada, se for o caso.
São essas, em escorço, as principais alterações trazidas pela Lei nº. 11.705, de 19 de junho de 2008, que guardam relação direta com os motoristas. É desejo de todos, pois, que as disposições nela contidas tragam os resultados práticos almejados, de modo a contribuir na prevenção de acidentes de trânsitos, cujas estatísticas causam assombramento.
Talvez uma rigorosa repressão (punição) dos infratores não seja a melhor forma de atingir o fim colimado – seria muito melhor que os condutores de veículos automotores se conscientizassem sobre o perigo da direção sob a influência de álcool ou outras substâncias psicoativas –, mas, ao que parece, é o único meio capaz de mexer com a cabeça do cidadão.
Esperemos novas estatísticas...
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* Assessor para assuntos específicos do Tribunal de Justiça de Santa Catarina
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