Porte de drogas para uso próprio: É crime?
Luiz Flávio Gomes*
A jurisprudência brasileira, de um modo geral, não aceita ainda essa tese (da descriminalização do porte de droga para uso próprio). Ainda não está devidamente trabalhado na jurisprudência o requisito da transcendentalidade da ofensa como fundamento para se afastar a tipicidade (material) da posse de drogas para uso próprio.
No plano legal o vigente art. 28 da Lei 11.343/06 (clique aqui), inovando surpreendentemente nosso ordenamento jurídico, passou a cominar tão-somente penas alternativas para o "usuário de droga" (ou seja: portador de droga para uso próprio). Antes (na Lei 6.368/76 – clique aqui) essa conduta era punida com pena de prisão (de seis meses a dois anos de detenção). Antigamente, como se vê, o fato era considerado como crime. Depois da Lei 11.343/06 surgiu uma grande polêmica na doutrina e na jurisprudência.
Três posições:
(a) do STF (Primeira Turma – RE 430.105-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence), entendendo que se trata de crime;
(b) Luiz Flávio Gomes admitindo que se trata de uma infração penal sui generis (cf. GOMES et alii, Lei de Drogas Comentada, 2.e.d, São Paulo: RT, 2007, p. 145 e ss.);
(c) Alice Bianchini (para quem o fato não é crime nem pertence ao Direito Penal).
A decisão do TJ/SP seguiu a terceira corrente. A posição do STF (no RE 430.105/RJ) constitui o seu oposto. Nossa opinião, fundada na lei vigente, isto é, no plano da legalidade - é intermediária. Só com o tempo vamos saber qual dessas três correntes vai se pacificar.
No plano legal (art. 28) há previsão de uma infração (aparentemente penal). No plano constitucional - por onde transitou o acórdão do TJ/SP - entretanto, a outra conclusão se pode chegar. É por essa via que transitou a decisão da 6ª Câmara do TJ/SP.
Essa decisão - no plano constitucional - não pode ser tida como incorreta. Por quê? Porque a imposição de sanção penal ao possuidor de droga para uso próprio conflita com o Estado constitucional e democrático de Direito (que não aceita a punição de ninguém por perigo abstrato e tampouco por fato que não afeta terceiras pessoas).
Vejamos: por força do princípio da ofensividade não existe crime -ou melhor: não pode existir crime - sem ofensa ao bem jurídico (cf. Gomes, L.F. e Garcia - Pablos De Molina, A., Direito penal-PG, v. 2, São Paulo: RT, 2007, Vigésima Segunda Seção).
Ofensa ao bem jurídico significa lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico. Para a existência de um crime não basta que o sujeito realize a conduta descrita no tipo legal. Mais que isso: além dessa tipicidade (chamada) formal, impõe-se que esse fato seja ofensivo ao bem jurídico protegido. Dessa forma o fato além de ser formalmente típico deve também constituir um fato materialmente típico.
Essa ofensa ao bem jurídico - que é conhecida em Direito Penal como resultado jurídico - precisa ser desvaliosa (para que o fato seja penalmente típico não basta a produção de qualquer resultado: ele precisa ser desvalioso). E quando uma ofensa ao bem jurídico é desvaliosa? Quando concreta ou real - não cabe perigo abstrato no Direito Penal regido pelo princípio da ofensividade - transcendental (afetação contra terceiros), grave ou significativa - fatos irrelevantes devem ser excluídos do Direito Penal - e intolerável (insuportável, de tal forma a exigir a intervenção do Direito Penal).
A transcendentalidade da ofensa, como se vê, é a segunda exigência que decorre do resultado jurídico desvalioso. Só é relevante o resultado que afeta terceiras pessoas ou interesses de terceiros. Se o agente ofende - tão-somente - bens jurídicos pessoais, não há crime (não há fato típico). Exemplos: tentativa de suicídio, autolesão, danos a bens patrimoniais próprios etc.
Na transcendentalidade da ofensa reside o princípio da alteralidade (a ofensa tem que atingir terceiras pessoas). Alteralidade - ofensa a terceiros - não se confunde com alternatividade (princípio que conduz ao reconhecimento de um só crime quando o agente realiza, no mesmo contexto fático, vários verbos descritos no tipo).
Se em Direito Penal só deve ser relevante o resultado que afeta terceiras pessoas ou interesses de terceiros, não há como se admitir - no plano constitucional - a incriminação penal da posse de drogas para uso próprio. O assunto passa a ser uma questão de saúde pública - e particular - como é hoje (de um modo geral) na Europa, onde se adota a política da redução de danos. Não se trata de um tema de competência da Justiça penal. A polícia não tem muito que fazer em relação ao usuário de drogas (que deve ser encaminhado para tratamento, quando o caso).
_______________
*
_______________