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A representação em juízo de consumidores por parlamentares: uma proposição a ser rejeitada

O Congresso Nacional discute se outorga aos parlamentares da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal a legitimidade ativa para promover ações coletivas em defesa do consumidor.

16/6/2008


A representação em juízo de consumidores por parlamentares: uma proposição a ser rejeitada

Caio Leonardo Bessa Rodrigues*

Renata de Paiva Puzzilli Comin*

O Congresso Nacional discute se outorga aos parlamentares da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal a legitimidade ativa para promover ações coletivas em defesa do consumidor. Essa discussão tramita na Câmara dos Deputados, na forma do Projeto de Lei nº. 1.403, de 2007. Essa proposição é grave e instamos a sociedade civil, os operadores do Direito e o empresariado a oporem-se a ela, porque desnatura o espírito da ação coletiva prevista no Código de Defesa do Consumidor, desequilibra o sistema de freios e contrapesos da Democracia, introduz um instrumento sem precedentes de fiscalização de pessoas físicas e jurídicas por membros do Legislativo, e oferece mais um elemento deletério à já caótica administração da Justiça no Brasil.

Proposta similar foi rechaçada pela última Legislatura. Naquela oportunidade, quando tramitava na Câmara vinda do Senado, recebeu parecer do Deputado Luiz Antonio Fleury Filho, que ressaltava a desnecessidade da ampliação do extenso rol de legitimados à propositura, naquele caso, de ações civis públicas. Tal parecer ainda salientava o risco do uso político-partidário das ações civis públicas pela ampliação do rol dos legitimados à sua propositura, e opinava pela inclusão apenas da Defensoria Pública no artigo 5º da Lei nº. 7.347/85 (clique aqui).

Porém, com o início de uma nova Legislatura em 2007, a matéria voltou à pauta do Parlamento. O PL 1.403, de 2007, é inconveniente, inoportuno, injurídico e inconstitucional.

A proposição é inconveniente, porque o uso abusivo dos instrumentos para a defesa coletiva do consumidor deve ser evitado. A proposta de legitimar membros do Legislativo à promoção da defesa coletiva não irá incrementar a tutela do consumidor. Ao contrário. De um lado, essa legitimação causará sérios problemas de administração da Justiça, dando ensejo a um sem-número de ações movidas com propósito eleitoral. Não foi para atender a essas agendas que a ação coletiva foi concebida.

De outro lado, quanto mais extenso for o rol de legitimados, maior tenderá a ser número de ações idênticas, com Autores diferentes procurando representar a mesma classe. Esse problema, que já existe atualmente, só se acentuará com a aprovação do PL, com deletérias repercussões ao direito de ampla defesa e à segurança jurídica.

A proposição é inoportuna porque o que se quer é uma Justiça acessível e eficiente. O atual rol de legitimados ativos é suficiente para garantir acesso à Justiça. O sistema de defesa dos direitos transindividuais é complementado pela existência de órgãos que permitem a solução de controvérsias de modo expedito, como os PROCONS e até mesmo dos Juizados Especiais Cíveis, dispensada, em muitas situações, a intervenção do advogado. Em suma, já há uma teia complexa de órgãos e instrumentos disponíveis à tutela do consumidor no país. Incluir no rol de legitimados um sem-número de parlamentares oferece o risco evidente de agravamento do congestionamento do Judiciário, abarrotado de ações de toda natureza e incapaz de prover Justiça a todos que já a ele recorrem. Nesse sentido também, a proposição choca-se com o propósito de defesa do consumidor, no que fará com que o sistema perca em eficiência.

A proposição é injurídica, porque legitima algo em torno de 52 mil parlamentares, uma multidão de partes, cuja relação de substituição processual com seus representantes é fundamentalmente mal concebida: o parlamentar é um representante do povo – ou de seu Estado, no caso dos senadores; o conceito de povo não se confunde com o de classe de consumidores, menos ainda com um Estado da Federação. A proposição não resolve como se operará essa substituição processual, e nisso ofende a sistemática jurídica vigente da defesa do consumidor – donde ser, portanto, injurídica.

A proposição é, de resto, inconstitucional. A ação coletiva não pode ser um instrumento de controle do Governo pelo Legislativo, através do Judiciário, tanto por mais não seja, porque esse instrumento não é previsto na Constituição Federal. Os instrumentos de controle do Executivo pelo Legislativo estão previstos na Constituição Federal e disciplinados pelo Regimento Interno de suas Casas. Não há previsão constitucional para que um Poder, no exercício de sua atribuição de fiscalizar Outro, tenha de recorrer ao Terceiro.

A proposição é inconstitucional também porque, nos casos em que pessoas físicas e pessoas jurídicas de direito privado figurem como Réus (situação mais comum), o Legislativo passaria a fiscalizar indivíduos e empresas, o que é uma completa distorção do sistema constitucional, pela simples razão de que esse sistema não confere ao Legislativo esse Poder de Polícia.

O Poder Legislativo, no plano da distribuição constitucional dos Poderes, já tem suficientes atribuições em matéria consumerista. Confira-se o rol exemplificativo abaixo:

(i) definição das normas que disciplinam a matéria;

(ii) convocação de autoridades para a prestação de informações (artigo 50 da Constituição Federal)

(iii) constituição de Comissões Parlamentares de Inquérito (§ 3° do artigo 58 da Constituição Federal)

(iv) realização de audiências públicas com entidades da sociedade civil (artigo 58, § 2º, II, da Constituição Federal) e até mesmo a promoção de campanhas para o esclarecimento dos direitos dos consumidores.

Inconveniente, inoportuno, injurídico, inconstitucional e arriscado estender, da forma pretendida pelo PL 1.403, de 2007, o já amplo leque de atividades dos parlamentares para alcançar áreas em que a tutela dos direitos já se mostra adequadamente acessível aos interessados. O risco está na introdução do jogo político como elemento constitutivo do sistema de defesa do consumidor, porque para tanto ficam assim legitimados os atores desse jogo. Isto poderá ter efeitos incontroláveis sobre o equilíbrio de poderes, a segurança jurídica, a economia, a cidadania e a vida corporativa, tudo posto à mercê dos interesses da mais variada natureza veiculados por meio de uma representação (política) por substituição processual que não se justifica de maneira alguma.

Instamos outras vozes cidadãs a se fazerem ouvir contra essa proposição, e que ouvidos serenos as ouçam no Congresso Nacional, para que essa matéria seja rejeitada.

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*Associados do escritório Mattos Muriel Kestener Advogados

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