Migalhas de Peso

O princípio da proporcionalidade no Direito Processual

Certamente alguém havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem que tivesse feito mal algum. Quem lhe trazia o café todos os dias, por volta de oito horas, era a cozinheira da senhora Grubach, sua locadora, mas dessa vez ela não veio. (...) bateram à porta e entrou um homem que ele nunca tinha visto antes naquela casa e informou-lhe que ele estava detido. Diante da surpresa de K. e de sua pergunta sobre as razões da prisão, o homem disse-lhe que não respondia a perguntas como aquela.

30/5/2008


O princípio da proporcionalidade no Direito Processual

Encarnacion Alfonso Lor*

Introdução Literária1

Certamente alguém havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem que tivesse feito mal algum. Quem lhe trazia o café todos os dias, por volta de oito horas, era a cozinheira da senhora Grubach, sua locadora, mas dessa vez ela não veio. (...) bateram à porta e entrou um homem que ele nunca tinha visto antes naquela casa e informou-lhe que ele estava detido. Diante da surpresa de K. e de sua pergunta sobre as razões da prisão, o homem disse-lhe que não respondia a perguntas como aquela.2

Daí por diante, o protagonista da história atravessa toda a trama sem descobrir a razão de seu suplício, quem o acusa e qual é a acusação. Ao final, Josef K. é assassinado por dois senhores taciturnos e bem vestidos, encarregados pelo Tribunal de dar cumprimento a uma sentença da qual nada se sabe.

Com efeito, todo o procedimento judicial ao qual o personagem é submetido, beira o surrealismo, não se soubesse que isso também ocorreu a bem pouco tempo em próprio solo brasileiro. Veja-se o que diz um dos guardas, quando do seu primeiro encontro com K., que insiste em exibir-lhe seus documentos:

O senhor se comporta pior que uma criança. O que quer, afinal? Quer acabar logo com seu longo e maldito processo discutindo conosco, guardas, sobre identidade e ordem de detenção? Somos funcionários subalternos que mal conhecem um documento de identidade e que não têm outra coisa com o seu caso a não ser vigiá-lo dez horas por dia, sendo pagos para isso. É tudo o que somos, mas a despeito disso, somos capazes de perceber que as altas autoridades a cujo serviço estamos, antes de determinarem uma detenção como esta, se informam com muita precisão sobre os motivos dela e sobre a pessoa do detido.3

Entende-se, sem dúvida nenhuma, que não parece haver início melhor para se tratar do Direito processual do que este exemplo literário elaborado pela mente de Franz Kafka (1883-1924), um escritor quase desconhecido em vida.

Introdução

Num Estado Democrático de Direito, as normas constitucionais são imperativas, pois representam a expressão máxima dos valores eleitos pela comunidade que as adota.

Pressuposto indispensável para tanto consiste em admitir a natureza normativa do Texto Maior4 e a sua supremacia em relação às demais normas5. Isso porque decorrem do caráter normativo da Constituição sua exigibilidade e obrigatoriedade e da sua supremacia em relação às demais normas, a prevalência das regras e princípios constitucionais sobre estas. As regras são normas mais restritas e concretas; os princípios, normas mais abrangentes e genéricas, representando a base e as idéias nucleares de um sistema jurídico, de modo a dar-lhe um sentido lógico, harmonioso e racional.6

O farto material bibliográfico disponível a respeito dos critérios de distinção entre princípios e regras demonstra a relevância do assunto. O presente trabalho, porém, limitar-se-á a abordá-lo na justa e necessária medida à compreensão do real objeto desta pesquisa: o princípio da proporcionalidade no direito processual.

Nesse contexto, registrem-se os ensinamentos de Canotilho:

Os princípios (...) permitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as regras, à "lógica do tudo ou nada"), consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exacta medida das suas prescrições, nem mais nem menos. (...) em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objecto de ponderação e de harmonização, pois eles contêm apenas "exigências" ou "standards" que em "primeira linha" (prima facie), devem ser realizados; as regras contêm "fixações normativas" definitivas, sendo insustentável a validade simultânea de regras contraditórias. Realça-se também que os princípios suscitam problemas de validade e peso (importância, ponderação, valia); as regras colocam apenas questões de validade (se elas não são correctas devem ser alteradas).7

No mesmo sentido, Alexy, apud Paulo Bonavides8, destaca que é no conflito de princípios e na colisão de regras que a distinção entre princípio e regra ganha destaque. Uma colisão entre regras implica na obrigatória anulação de uma delas. Já no conflito de princípios, um deles deverá ser afastado, não significando, porém, sua anulação.

Resumindo o pensamento dos dois autores, pode-se afirmar que "se as regras têm que ver com a validade, os princípios têm muito que ver com valores".9

Assentada essas diferenciações, importantes para o desenvolvimento das idéias que se seguirão, acrescente-se que os princípios nem sempre constam explicitamente num texto legal. Nesse caso, é mister "descobri-los", tarefa essa facilitada por meio da interpretação sistêmica.

Princípios implícitos, portanto, são aqueles "inferidos como resultado da análise de um ou mais preceitos constitucionais ou de uma lei ou conjunto de textos normativos da legislação infraconstitucional (exemplo: o princípio da imparcialidade do juiz, art. 95, parágrafo único)".10

Explícitos ou implícitos, os princípios têm a mesma validade e importância, desde que se saiba "operá-los em conjunto, dimensionando o peso relativo de cada qual".11 Essa é justamente a função primordial do princípio da proporcionalidade.

Especificamente no que diz respeito à importância da aplicação do princípio da proporcionalidade na esfera do processo civil, vale lembrar que a garantia ao devido processo legal é de natureza constitucional, textualmente expressa no inciso LIV do artigo 5º da Lei Maior pátria. Nessa condição, impõe-se ao Estado como um valor supremo do desenvolvimento da personalidade humana e da sua dignidade12, devendo assim ser sopesado quando em confronto com outros valores.

Agregue-se ao que foi dito o elevado grau de complexidade, os novos direitos e inéditas relações jurídicas presentes na chamada "Sociedade da Informação", e, ainda, a reclamação por soluções rápidas, "de preferência na mesma velocidade com que se estabelecem as relações sociais, comerciais e funcionais"13 e teremos um cenário preocupante, carente de análise e reflexão.

Esse é o objetivo do presente trabalho: centrado especificamente no princípio da proporcionalidade, buscar a superação de obstáculos processuais criados pelo choque de normas, de modo a possibilitar a prestação de uma tutela judiciária eficiente.

De modo a atingir a meta pretendida, a primeira parte da pesquisa é dedicada ao processo e aos fenômenos que lhe vêm alterando a concepção. A seguir, tratar-se-á especificamente do princípio da proporcionalidade, analisando suas principais características e estabelecendo sua relação com o processo.

1. PROCESSO

Dentre os vários significados da palavra "processo", elegemos a de Rodrigo da Cunha Lima Freire: "processo é o meio pelo qual se realiza a prestação jurisdicional [que], na prática, se dá por meio de um (...) sistema de atos processuais, conhecido na doutrina como procedimento".14

Paulo Hamilton Siqueira Júnior assevera que "o processo tem uma finalidade instrumental, garantística e sociopolítica, [cuja] finalidade [é] investigar a verdade (garantia dos direitos subjetivos) e distribuir a justiça".15

Vicente Greco Filho, seguindo linha similar, enuncia quatro princípios deontológicos16 do processo:

I – Lógico: escolha dos meios mais seguros e expeditos para procurar e descobrir a verdade e evitar o erro;

II – Jurídico: proporciona aos litigantes igualdade na demanda e justiça na decisão, atendendo à finalidade do processo, que é a declaração concreta da lei;

III – Político: máxima garantia social dos direitos com o mínimo sacrifício individual de liberdade, atribuindo-se força para o processo no sistema de equilíbrio dos poderes do Estado e da garantia de direitos da pessoa;

IV – Econômico: as lides não devem ser tão dispendiosas a ponto de deteriorar seu objeto ou discriminar os pobres na obtenção da justiça.17

Entende-se que os princípios supra mencionados estão perfeitamente adequados às exigências contemporâneas pautadas pelo neoconstitucionalismo, pela constitucionalização do processo e pela Sociedade da Informação.

1.1 Neoconstitucionalismo e processo

Bobbio, define constitucionalismo como "a técnica da liberdade"; o método jurídico pelo qual se assegura aos cidadãos o exercício de seus direitos, colocando o Estado, simultaneamente, em condições de não os poder violar.18

O neoconstitucionalismo, numa abordagem bastante simplificada, consiste na valorização do Direito constitucional e no reconhecimento internacional de uma classe de direitos compreendidos como supranacionais, caso dos direitos humanos, rol em que se inclui a garantia do devido processo legal.19

As principais referências históricas do neoconstitucionalismo estão intimamente ligadas à promulgação das Constituições italiana, de 1947 e alemã, de 1949, bem como à criação do Tribunal Constitucional Federal alemão (1951) e da Corte Constitucional italiana, instalada em 1956. A partir desses marcos, verifica-se uma crescente produção doutrinária e jurisprudencial tendente à valorização do direito constitucional nos países filiados à civil law. Na década de 70, "agregando valor e volume ao debate" sobre esse novo direito constitucional, seguiram-se "a redemocratização e a reconstitucionalização de Portugal, em 1976, e da Espanha, em 1978".20

No Brasil, esse sentimento voltado às garantias e direitos fundamentais fez-se sentir mais fortemente já no ocaso do regime militar, e, sobretudo, quando "da discussão prévia, convocação, elaboração e promulgação da Constituição de 1988".21

1.2 Constitucionalização do processo

A constitucionalização do processo consiste em inserir, na Constituição, as garantias mínimas que ele assegura, o que, nas palavras de João Batista Lopes, significa "uma nova postura do processualista: estudar o processo (...) com os olhos voltados para a Constituição. Não se trata de esvaziar o direito processual (...), mas de estudá-lo à luz da Constituição para fazer atuar concretamente os valores da ordem jurídica".22

Entende-se, à vista do princípio da supremacia constitucional, que essa não é nenhuma novidade. O importante é o reconhecimento da força hierárquica das normas constitucionais (princípios e regras), e, ratifique-se, um foco de luz para a resolução dos conflitos normativos.

1.3 Sociedade da Informação e processo

Não existe unanimidade na conceituação da chamada "Sociedade da Informação". O Programa Sociedade da Informação no Brasil, desenvolvido pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, refere-se a ela, dizendo tratar-se de "(...) um fenômeno global, uma nova era em que a informação flui a velocidades e em quantidades há apenas poucos anos inimagináveis, assumindo valores sociais e econômicos fundamentais".23 (grifos no original).

Paulo Hamilton Siqueira Júnior entende que: "O conceito de Sociedade da Informação é amplo, e não se reduz ao aspecto tecnológico, abrangendo qualquer tratamento e transmissão da informação, que passa a possuir valor econômico".24

Numa ótica concisa, trazida por Rodrigo da Cunha Lima Freire, "a Sociedade contemporânea é a da informação".25

Qualquer que seja a concepção adotada, o ponto comum é tratar-se de uma sociedade em que a informação, o conhecimento, a comunicação e a velocidade ocupam papéis centrais nas relações públicas e privadas. Nesse cenário, como muito bem resume André Ramos Tavares,

(...) a grande dificuldade que se enfrenta é a da superação de velhos preconceitos formulados pela dogmática jurídica tradicional, que perderam por completo sua atualidade ou praticidade e, pois, apenas prestam um desserviço à administração da Justiça. (...) As realidades e necessidades de hoje diferem não apenas em extensão, mas igualmente em natureza, daquelas para as quais fora concebido e forjado o modelo clássico (estatal) de prestação da função jurisdicional. E, embora seja esse um fato notório, não basta seu mero reconhecimento formal, em declarações de intenções de pouca ou nenhuma repercussão na vida concreta, para que se elimine o problema. É preciso ir mais longe, para traçar um novo perfil do sistema de prestação jurídica que seja capaz de das respostas eficientes para a demanda social existente.26

2. O princípio da proporcionalidade

2.1 Conceito

Em sentido amplo, Pierre Müller define o princípio da proporcionalidade como "regra fundamental a que devem obedecer tanto os que exercem quanto os que padecem do poder".27 Em sentido estrito, o autor entende que tal princípio é caracterizado "pelo fato de presumir a existência de relação adequada entre um ou vários fins determinados e os meios com que são levados a cabo".28

Numa ótica distinta, João Batista Lopes afirma que o princípio da proporcionalidade não é uma "simples regra, porque uma regra não tem o condão de resolver colisão entre princípios (normas fundantes)'. E acrescenta: "Cuida-se de princípio constitucional, corolário do próprio Estado de Direito, que veda o excesso e o abuso".29 No que diz respeito ao seu sentido estrito, Lopes registra que o princípio da proporcionalidade "consiste na avaliação dos direitos ou interesses em jogo para dar prevalência aos valores que informam a ordem jurídica". 30

A verdade é que "há princípios mais fáceis de compreender do que definir. A proporcionalidade entra na categoria desses princípios".31 Assim, nem todos os doutrinadores que se ocuparam do assunto chegaram a um consenso, sequer quanto ao nome. Uns, chamam-lhe de "proibição de excesso"32; outros, de "ponderação"33; outros, ainda, de "razoabilidade"34; mais alguns, de "princípio da concordância prática" ou da "harmonização"35.

A despeito dessa imprecisão terminológica, entende-se que a essência do princípio é, em todos os casos, a mesma: servir como instrumento de interpretação de validade e de aplicação de outras normas, levando em conta sua adequação, a vedação de excessos e a ponderação de valores.

Assentada essa premissa, fácil fica visualizar o vínculo entre o princípio da proporcionalidade e o processo: uma nova leitura dos princípios constitucionais a ele inerentes, tais como o da proibição das provas ilícitas, o do duplo grau de jurisdição e o do acesso irrestrito ao Judiciário.

2.2 Origens

Leciona Canotilho que o princípio da proporcionalidade já marcava presença nos séculos XVIII e XIX na Inglaterra, Prússia, Itália e França, porém, com propósitos voltados à defesa dos cidadãos contra as arbitrariedades e exorbitâncias de atos discricionários praticados pela administração pública, e, portanto, basicamente na esfera do Direito Administrativo.36

Muito embora a inserção constitucional do princípio da proporcionalidade haja ocorrido primeiramente na Suiça37, coube à doutrina e jurisprudência da Alemanha a formulação contemporânea desse princípio, notadamente na salvaguarda dos direitos fundamentais.

Com efeito, o Direito Constitucional alemão elevou o princípio de proibição do excesso à categoria de norma constitucional não escrita, derivada do Estado de Direito. Tal é o poder desse princípio, que o Tribunal Constitucional alemão, reportando-se a ele, pode declarar a inconstitucionalidade de qualquer norma que o infrinja. Essa orientação, esclarece Gilmar Ferreira Mendes,

permitiu converter o princípio da reserva legal no princípio da reserva legal proporcional [e] pressupõe não só a legitimidade dos meios utilizados e dos fins perseguidos pelo legislador, mas também a adequação desses meios para consecução dos objetivos pretendidos e a necessidade de sua utilização.

O subprincípio da adequação exige que as medidas interventivas adotadas mostrem-se aptas a atingir os objetivos pretendidos. O subprincípio da necessidade significa que nenhum meio menos gravoso para o indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos.

(...) De qualquer forma, um juízo definitivo sobre a proporcionalidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação e do possível equilíbrio entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (proporcionalidade em sentido estrito).38

Alerte-se que, apesar de sua concisão, esse trecho revela os três subprincípios norteadores do princípio da proporcionalidade:

(a) o da adequação, capaz de revelar a compatibilidade entre o fim pretendido e os meio utilizados para alcançá-lo

(b) o da exigibilidade do meio, ou seja, "o meio certo para levar a cabo um fim baseado no interesse público"39

(c) o da necessidade, não raro identificado como o da proporcionalidade em sentido estrito, subprincípio que consiste na busca do meio mais vantajoso para atingir o objetivo proposto pela norma, "no sentido da promoção de certos valores com o mínimo de desrespeito de outros que a eles se contraponham".40

Paralelamente à jurisprudência elaborada pela Corte Alemã, três trabalhos doutrinários produzidos naquele país fizeram crescer o interesse pelo princípio da proporcionalidade. O primeiro, de 1955, foi uma monografia intitulada "O princípio da Proporcionalidade", de autoria de Rupprecht Von Krauss, a quem se atribui a origem da expressão, sua associação ao estabelecimento do Estado de Direito e a extensão do seu alcance ao legislador.41 O segundo, datado de 1956, de G. Düring ("Arquivo de Direito Público"), consistiu num ensaio, em que o autor

defende a tese de haver um sistema de valores imanentes à Lei Fundamental alemã ocidental, cuja justificação última é fornecida pela imposição de respeito à dignidade humana (...) Seria por intermédio dela que se incluiria o princípio da proporcionalidade no plano constitucional, para ser observado em qualquer medida do Estado, pois é uma degradação da pessoa a objeto, se ela for importunada pelo emprego de meios mais rigorosos do que exige a consecução do fim do bem-estar da comunidade.42

A terceira obra, com o título de "Excesso e Direito Constitucional, a Vinculação do Legislador aos Princípios da Proporcionalidade e da Necessidade", foi escrita, em 1961, por Peter Lerche, consagrando definitivamente "a distinção entre esses dois aspectos da proporcionalidade, bem como a denominação do 'princípio da exigibilidade' para distingui-lo do da proporcionalidade em sentido estrito".43

Registrem-se, por derradeiro, dois aspectos dignos de destaque, o primeiro, assinalando que o princípio da proporcionalidade jamais constou textualmente na Constituição alemã, apesar de tornar-se, inquestionavelmente, num dos principais instrumentos do Direito constitucional daquele país, e espraiando seus efeitos por toda a Europa Continental, incluindo Portugal, o que mais de perto nos interessa na abordagem de um dos próximos tópicos. O segundo ponto, diz respeito à estreita ligação entre o princípio da proporcionalidade e o Direito constitucional, que se dá por meio dos direitos fundamentais em que se aloja, repetimos, a garantia do devido processo legal.

2.3 Trajetória do princípio da proporcionalidade no Direito pátrio

Guerra Filho44 consigna que, naquilo que diz respeito ao princípio da proporcionalidade, o Brasil não seguiu o caminho traçado por constituintes de outros países, "que cumpriram sua função já na fase atual do constitucionalismo". Isso porque, segundo explica o autor, a Constituição Brasileira não prevê expressamente aquele princípio, diferentemente da Constituição portuguesa45, o Texto Maior brasileiro não prevê expressamente o princípio da proporcionalidade.

Porém, como já observado na parte introdutória deste trabalho, os princípios, explícitos ou implícitos, têm a mesma validade e importância. Dessa maneira, o princípio da proporcionalidade insere-se no ordenamento jurídico brasileiro ao lado dos princípios gerais de Direito, norteadores das regras constitucionais e infraconstitucionais.

Especificamente no que se refere ao direito processual, cujo paradigma essencial repousa no direito à não-exclusão da apreciação do Judiciário de lesão ou ameaça a direito (artigo 5º, inciso XXXV), o princípio da proporcionalidade aplica-se a qualquer ato (ou omissão) praticado pelo poder público que destoe do fim efetivamente almejado, sobretudo quando tal ato (ou omissão) conflite com os direitos e garantias individuais assegurados no artigo 5º da Constituição Federal.

Aliás, com relação aos direitos e garantias individuais, verifique-se que o princípio da proporcionalidade é explicitamente citado em alguns incisos do artigo 5º, como, por exemplo, no inciso V, que assegura "o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem" e no inciso XLVI, em que se garante, implicitamente, que as penas serão aplicadas proporcionalmente ao delito cometido.46 Além disso, o princípio da proporcionalidade tem também destaque, dentre outras normas, nas diretrizes de atuação do Ministério Público (artigo 129, inciso II, CF)47 , no sistema tributário (artigo 145, parágrafo 1º, CF)48 e no Direito administrativo, impondo limites aos atos discricionários da Administração Pública conforme Lei 9.784/1999, artigo 2º, in verbis:

Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.49 (grifou-se).

Pontualmente no que se refere ao direito processual, o princípio da proporcionalidade deve nortear, em todas as fases do processo e demais direitos e garantias a ele inerentes, o "dever jurídico do intérprete e aplicador do direito de guardar e buscar sempre a almejada justa medida no trato intersubjetivo [ou seja] a busca do meio mais idôneo, mais eqüitativo e menos excessivo na aplicação das normas".50

2.4 Princípio da proporcionalidade e interpretação

Conforme se viu, uma das maiores aplicações do princípio da proporcionalidade se dá no campo da interpretação normativa, frente a um conflito legal. Isso porque, como leciona Luís Roberto Barroso, que dá àquele princípio a denominação de "ponderação",

a colisão de direitos fundamentais, como a colisão de normas constitucionais em geral, não pode ser resolvida pelos critérios tradicionais hierárquico, temporal e especialização. Não quando se trate de normas integrantes da Constituição originária. [Tampouco] pode ser resolvida mediante subsunção. Não é possível o mero enquadramento do fato à norma, porque mais de uma norma postula aplicação. Daí a necessidade do recurso à ponderação (...) uma das marcas da interpretação do direito na atualidade.51

Confirmando o entendimento de João Batista Lopes, que vê na constitucionalização do processo "apenas um método de trabalho (...) com os olhos voltados para Constituição"52, Roberto Barroso encarrega-se de traçar a técnica adequada, dividida em três fases:

1ª) identificação das normas em conflito

2ª) identificação dos fatos relevantes

3ª) verificação da repercussão das possíveis soluções e ponderação dos elementos em disputa.53 Prosseguindo, diz o autor ser mister verificar, no momento da ponderação, a possibilidade de "concessões recíprocas entre as normas ou valores em disputa, de modo a preservar o máximo possível de cada um deles; escolhas acerca de qual princípio deverá prevalecer, quando seja impossível compatibilizá-los".54

2.5 Princípio da proporcionalidade e segurança jurídica

Juristas mais conservadores temem a aplicação de princípios como o da proporcionalidade, em nome da preservação da segurança jurídica. Luis Roberto Barroso fulmina prontamente essa argumentação, lembrando que a segurança jurídica, assim como qualquer outro princípio, não possui valor absoluto, representando, isso sim, uma das finalidades do Estado, juntamente com a justiça e o bem-estar social, com os quais, aliás, constantemente entra em colisão.55

A segurança jurídica, afirma o mencionado doutrinador, é um fenômeno que independe exclusivamente da técnica legislativa e da exegese, necessitando ser "materialmente construída". E arremata: "sem maniqueísmos, será preciso indagar, aqui e ali: segurança de quem? (...) Segurança que, por vezes, é a exacerbação da função conservadora do Direito, quando ele deveria ser instrumento da mudança, que gera insegurança (...)".56

Considerações Finais

Existe, de há muito, um movimento mundial voltado a considerar a Constituição como centro de todo o ordenamento jurídico, não mais sob a ótica exclusiva de um documento político, mas dotada de uma centralidade que extrapola o tradicional vínculo cidadão e Estado.

Como resultado desse processo, a constitucionalização do Direito irradia seus valores por todos os ramos jurídicos, mesmo porque o Estado Social e Democrático de Direito justifica-se na medida em que permite, num primeiro estágio, o desenvolvimento individual e a livre autodeterminação da pessoa e, num último, a verdadeira liberdade do cidadão.

O processo legal, como garantia constitucional e na sua moderna acepção, significa um processo efetivo, no sentido mais lato do termo. Isso significa dizer, basicamente, que, por meio do processo, a parte tenha o seu direito reconhecido e assegurado no menor tempo possível; que a paz jurídica seja restabelecida de forma célere, eficaz e pouco onerosa para o cidadão e para o Estado.

Nesse contexto, não é suficiente que se tenha direito ao processo e a tutela do Poder Judiciário. O processo legal compreende, igualmente, um conjunto de garantias visando a assegurar às partes o efetivo exercício de suas faculdades e o acesso não apenas ao Judiciário, mas a uma ordem jurídica justa.

É imprescindível, para tanto, que os juízes e operadores de direito se libertem dos vínculos que os mantêm atados à vetusta doutrina do positivismo jurídico, passando a explorar novas técnicas de interpretação, dentre as quais se destaca o princípio da proporcionalidade.

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1 Este início foi inspirado na pesquisa realizada por Souza, Carlos Afonso Pereira de; e Sampaio, Patrícia Regina Pinheiro, bolsistas do Programa de Treinamento, instituído pela CAPES, sob orientação e coordenação da professora Regina Quaresma. In: O princípio da razoabilidade e o princípio da proporcionalidade: uma abordagem constitucional.<_https3a_www.pucrio.br direito="" sobrepuc="" depto="" pet_jur="" cafpatrz.html="">

2 Kafka, Franz. O processo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Brasiliense, 1988, p.

3 11.Ibid, p. 12.

4 Siqueira Júnior, Paulo Hamilton. Direito processual constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 12.

5 Trata-se da concepção jurídica de Constituição de Hans Kelsen, segundo a qual o ordenamento jurídico pode ser visualizado graficamente como uma pirâmide, em que as normas inferiores buscam validade nas normas que lhes são superiores. No topo dessa pirâmide jurídica, encontra-se a Constituição Federal.

6 Sundfeld, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. São Paulo: Malheiros, 2002, p.143.

7 Canotilho, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1161-1162.

8 Alexy, Robert. Theorie der Grundrecht. Baden-Baden, 1985, p. 79, apud Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p.279-280.

9 Bonavides, Paulo, op. cit., p. 280.

10 Grau, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988: interpretação e crítica. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 157.

11 Sundfeld, Carlos Ari, op. cit, p. 150.

12 Loewenstein, Karl. Teoría de la constitución. Trad. Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona: Ariel, 1965, p. 390. Tradução livre.

13 Tavares, André Ramos. As tendências do direito público no limiar de um novo milênio. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 186.

14 Lima Freire, Rodrigo da Cunha. Condições da ação: enfoque sobre o interesse de agir. 2 ed. São Paulo: RT, 2001, p. 35.

15 Siqueira Júnior, Paulo Hamilton. Direito processual constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 29.

16 Deontologia, do grego deontós, que significa dever é a ciência do que deve (ou deveria) ser. Montoro, André Franco. Introdução à ciência do direito. 25 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 107.

17 Greco Filho, Vicente. Direito processual civil brasileiro. v. 2. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.82-83.

18 Bobbio, Norberto; Matteuci, Nicola; Pasquino, Gianfranco. Dicionário de política. 9 ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1997, p. 247.

19 Canotilho, J. J. Gomes. "Brancosos" e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. Coimbra: Almedina, 2006, p. 289-290.

20 Barroso, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista de Direito Constitucional e Internacional, n. 58. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan./mar. 2007, p. 131-132.

21 Barroso, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista de Direito Constitucional e Internacional, n. 58. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan./mar. 2007, p. 132.

22 Lopes, João Batista. Efetividade da tutela jurisdicional à luz da constitucionalização do processo civil. Revista de Processo. v. 29, n. 116. São Paulo, jul./ago. 2004, p. 30.

23 Brasil. Ministério da Ciência e Tecnologia. Sociedade da informação no Brasil: livro verde. 2000, p. 3 e 5.

24 Siqueira Júnior, Paulo Hamilton. Habeas data: remédio jurídico da sociedade da informação. In: PAESANI, Liliana Minardi (Coord.). O direito na sociedade da informação. São Paulo: Atlas, 2007, p. 252.

25 Lima Freire, Rodrigo da Cunha. Direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva na sociedade informacional. In: PAESANI, Liliana Minardi (Coord.). O direito na sociedade da informação. São Paulo: Atlas, 2007, p. 302.

26 Tavares, André Ramos. As tendências do direito público no limiar de um novo milênio. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 182-183.

27 Muller, Pierre. Le principe de la proportionnalité. In: Zeifschrift für Schweizerisches Recht. Neue Folge, v. 97, fasc. 3. Basel, 1978, apud Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 393.

28 Ibid, mesma página.

29 Lopes, João Batista, op. cit., p. 34.

30 Ibib, mesma página.

31 Philippe, Xavier. Le contrôle de proporcionnalité dans les jurisprudences constitucionelle et administrative françaises. Aix-Marseille, 1990, p.7, apud Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 392.

32 Canotilho, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 267.

33 Barroso, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. t. 3. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 527.

34 Ibid, p. 529.

35 Guerra Filho, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 4 ed. São Paulo: RCS Editora, 2005, p. 77.

36 Canotilho, J. J. Gomes, op. cit, p. 268.

37 Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 407.

38 Mendes, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 49-50.

39 Bonavides, Paulo, op. cit., p. 396.

40 Ibid, mesma página.

41 Bonavides, Paulo, op. cit., p. 410.

42 Guerra Filho, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 4 ed. São Paulo: RCS Editora, 2005, p. 96-97.

43 Ibid, p. 98.

44 Guerra Filho, Willis Santiago, op. cit, p. 84.

45 Constituição Portuguesa, artigo 18, in verbis: Artigo 18º (Força jurídica) – 1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 2. A lei só poderá restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. 3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstrato e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais. (grifou-se). Fonte: Governo de Portugal. Disponível em: (clique aqui). Acesso em: 14.8.2007.

46 Souza, Carlos Afonso Pereira de; e SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro. O princípio da razoabilidade e o princípio da proporcionalidade: uma abordagem constitucional. Disponível em: (clique aqui) <_https3a_www.puc-rio.br direito="" sobrepuc="" depto="" pet_jur="" cafpatrz.html="">. Acesso em: 12.8.2007

47 Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: (...) II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia. (grifou-se).

48 Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: (...) § 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte (...).

49 Esclarece Maria Sylvia Zanella Di Pietro que: “embora a Lei 9.784/99 faça referência aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, separadamente, na realidade, o segundo constitui um dos aspectos contidos no primeiro. Isto porque o princípio da razoabilidade, entre outras coisas, exige proporcionalidade entre os meios de que se utiliza a Administração e os fins que ela tem que alcançar. E essa proporcionalidade deve ser medida não pelos critérios pessoais do administrador, mas segundo padrões comuns na sociedade em que vive; e não pode ser medida diante dos termos frios da lei, mas diante do caso concreto”. (grifo no original). Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17 ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 81.

50 Castro, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 199.

51 Barroso, Luis Roberto. Temas de direito constitucional. t. 3. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 526-527.

52 Lopes, João Batista. Efetividade da tutela jurisdicional à luz da constitucionalização do processo civil. Revista de Processo. v. 29, n. 116. São Paulo, jul./ago. 2004, p. 30.

53 Barroso, Luis Roberto. Temas de direito constitucional. t. 3. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 528.

54 Ibid, p. 529.

55 Barroso, Luis Roberto, op. cit., p. 534.

56 Ibid, p. 534-535.

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*Advogada, membro da Comissão dos Novos Advogados do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP, membro colaborador da Comissão de Direito na Sociedade da Informação, da Ordem dos Advogados do Brasil, secção de São Paulo





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