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A Súmula 239 do STF

Não é novidade que, nos países que adotam o sistema do common law, a normatividade dos precedentes judiciais possui papel central. Por meio da política de stare decisis, os tribunais inferiores são obrigados a seguir a orientação (holding) firmada pelos tribunais hierarquicamente superiores.

27/5/2008


A Súmula 239 do STF

Iuri Engel Francescutti*

Não é novidade que, nos países que adotam o sistema do common law, a normatividade dos precedentes judiciais possui papel central. Por meio da política de stare decisis, os tribunais inferiores são obrigados a seguir a orientação (holding) firmada pelos tribunais hierarquicamente superiores. Nesse sistema, em que o juiz faz a lei, a compreensão dos motivos ou razões determinantes de um precedente (rationale1) é importante para definir o exato conteúdo da norma emanada pela corte superior. Note-se que, nestes casos, a primeira interpretação do conteúdo do precedente superior é feita pelas cortes vinculadas, quando se defrontarem com casos análogos. Segundo Patrícia Perrone Campos Mello, "caberá, inicialmente, ao magistrado hierarquicamente inferior definir a abrangência do decisum proferido pela corte superior e, eventualmente, afastar sua aplicação, por entender não haver uma identidade entre a situação apreciada pelo último e a nova demanda"2.

No Brasil, desde a edição da Emenda Constitucional nº. 45/2004 (clique aqui) e da Lei nº. 11.417/06 (clique aqui), que regulamentou a súmula vinculante, verificamos uma efetiva aproximação de nosso sistema jurídico, essencialmente fundado no modelo de direito codificado-continental (civil law), ao sistema do comonn law. As súmulas editadas passaram a desempenhar papel relevante na unificação do entendimento jurisprudencial nacional.

No campo do direito tributário, essa importância tem ainda mais destaque, porque as grandes questões levadas ao Judiciário, em geral, afetam uma gama enorme de contribuintes. Assim, embora os efeitos da coisa julgada sobre determinada matéria em um processo isolado não se estendam diretamente a pessoas que não integraram o litígio (à exceção dos casos de controle concentrado de constitucionalidade), eles repercutirão de forma mediata nas demandas travadas por muitos outros contribuintes que se encontrem em situação equivalente. Diante desse panorama, a correta compreensão da súmula é vital.

Ao contrário do precedente jurisprudencial, a súmula é o extrato, consolidado num texto, de uma firme orientação jurisprudencial. A primeira conseqüência prática disso é que, para a construção de uma súmula, não basta uma única decisão, sendo necessária a reiteração de julgados em um mesmo sentido. Em segundo lugar, ao contrário do que ocorre com os precedentes em geral, a primeira interpretação dada ao precedente que se quis enunciar é da própria corte vinculante, o que confere um certo "teor normativo" às súmulas. Nesse sentido, Patrícia Perrone Campos Mello afirma, com maestria:

"... a norma emergente do precedente é cristalizada em um texto, em um enunciado-síntese, produzido a partir da interpretação da própria corte vinculante sobre seus julgados [...]. Tais fatores garantem um teor normativo mais acentuado às súmulas: em primeiro lugar, seu texto escrito pode constituir uma barreira a novas interpretações reconformadoras dos precedentes que as originaram. Além disso, a formulação do teor vinculante diretamente pelo próprio tribunal que produziu as decisões, sem a participação das cortes vinculadas em sua gênese, afasta de tal processo uma importante instância crítica, que lida, em seu dia a dia, com uma riqueza fática maior, e que poderia contribuir na definição da generalidade da norma."3

Por isso, a autora citada, em seguida, destaca a importância de que exista uma perfeita congruência entre os precedentes que deram origem à súmula e o seu enunciado, para que não resulte num exercício ilegítimo de poder normativo.

É com base nessa perspectiva que afirmo que poucos enunciados foram tão infelizes em retratar os paradigmas que lhe fundamentam do que aquele construído para a Súmula 239 do Supremo Tribunal Federal.

O referido enunciado, que trata da coisa julgada em matéria tributária, assim dispõe:

"Súmula 239. Decisão que declara indevida a cobrança do Imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação aos posteriores."

Evidentemente, sua leitura isolada pode levar a absurdas conclusões, como, por exemplo, a de que o contribuinte, que obteve um provimento judicial reconhecendo sua imunidade quanto a determinado imposto, deve renovar, anualmente, sua pretensão na justiça, a fim de ver assegurado o seu direito. E não raras vezes as fazendas públicas têm desenvolvido argumentações nesse sentido. Certamente não foi essa a intenção que norteou sua formulação, até mesmo porque isso não seria razoável.

Vejamos o principal4 precedente que serviu de fundamento para a referida súmula. Tratam-se dos embargos no agravo de petição nº. 11.227, em que foi relator o Ministro Castro Nunes, assim ementado:

"Executivo fiscal - imposto de renda sobre juros de apólices - Coisa Julgada em matéria fiscal - É admissível em executivo fiscal a defesa fundada em 'coisa julgada' para ser apreciada pela sentença final. - Não alcança os efeitos da coisa julgada em matéria fiscal, o pronunciamento judicial sobre nulidade do lançamento do imposto ou da sua prescrição referente a um determinado exercício, que não obsta o procedimento fiscal nos exercícios subseqüentes."5

No referido precedente, o contribuinte foi citado em execução fiscal, para pagamento de Imposto de Renda referente ao exercício de 1936, supostamente incidente sobre juros de apólices, que foram emitidas anteriormente à lei de 31 de dezembro de 1925.

Em sua defesa, o contribuinte alegou que, em processo executivo anterior, movido para a cobrança de Imposto de Renda sobre a mesma rubrica referente ao exercício de 1934, havia obtido decisão judicial favorável no STF e que, portanto, a questão estaria acobertada pelo manto da coisa julgada.

No seu voto, o Ministro Castro Nunes, embora destaque seu entendimento quanto à incidência dos juros sobre apólices, qualquer que seja a data de sua emissão, negou provimento aos embargos da União, entendendo que deveria prevalecer, no caso, o instituto da coisa julgada. Seguem alguns trechos de seu voto:

"A coisa julgada existe em qualquer processo contencioso, seja de que natureza for, ordinário, sumário ou especial, sem possível exclusão do executivo, desde que se decida da relação jurídica, por contestação contra as partes. Só não induzem a coisa julgada os processos mencionados na lei processual, entre as quais não estão os executivos, fiscais ou não.

[...]

Aliás, o Dr. Procurador Geral da República, ao salientar esse ponto, insistindo na anualidade da cobrança do imposto, sugere uma observação que eu faço: o imposto não é anual; anual é o orçamento. Este não estabelece nenhum imposto, supõe ou pressupõe impostos já criados. O orçamento é que é anual; porque anual a arrecadação, renovada cada ano e apenas estimada no orçamento.

É exato. Mas o que é anual é o lançamento, não o imposto em si mesmo. É o lançamento (em se tratando de impostos diretos) que se renova anualmente; de modo que uma questão sobre irregularidades verificadas num dado lançamento é restrita ao exercício, não alcançando a sentença nela proferida os exercícios posteriores em que o lançamento poderá não ter os mesmos vícios.

[...]

É o lançamento que poderá ser renovado não obstante o julgado que tenha anulado o do exercício anterior. Daí o dizer-se, com o mesmo Reneletti, que o julgado sobre um dado acertamento é autônomo e independente.

[...]

Sucede, então, que, procedida a revisão, caduca o lançamento anterior e surge para a administração o direito de proceder a outro, fixando de novo a obrigação do contribuinte; e porque o julgado não possa ter duração mais longa do que a obrigação a que se refere (isto é, o lançamento anterior) cede também o julgado, reabrindo-se o Juízo, para novas controvérsias que surgiram.

[...]

Outro tanto não sucede, porém, quando de lançamento não se trate, senão de imposto em si mesmo. É o que adverte o mesmo expositor italiano quando acrescenta que, tratando embora de imposto continuativo e obrigação periódica, o julgado proferido conserva a sua eficácia mesmo nos períodos sucessivos, nos casos em que a controvérsia não se tenha limitado à qualidade ou quantidade da matéria imponível, mas tenha abrangido outros aspectos não suscetíveis de revisão (existência legal do imposto, tributabilidade). E a razão, acrescenta, é que a revisão não muda nem a causa nem a natureza jurídica da obrigação, e sim a soma exigida.

[...]

O que é possível dizer, sem sair, aliás, dos princípios que governam a coisa julgada, é que esta se terá de limitar aos termos da controvérsia. Se o objeto da questão é um dado lançamento que se houve por nulo em certo exercício, claro que a renovação do lançamento no exercício seguinte não estará obstada pelo julgado. É a lição dos expositores acima citados.

[...]

Mas se os tribunais estatuíram sobre o imposto em si mesmo, se o declararam indevido, se isentaram o contribuinte por interpretação da lei ou de cláusula contratual, se houveram o tributo por ilegítimo porque não assente em lei a sua criação ou por inconstitucional a lei que o criou, em qualquer desses casos o pronunciamento judicial poderá ser rescindido pelo meio próprio, mas enquanto subsistir será um obstáculo à cobrança, que, admitida sob a razão especiosa de que a soma exigida é diversa, importaria praticamente em suprimir a garantia jurisdicional do contribuinte que teria tido, ganhando a demanda a que o arrastara o Fisco, uma verdadeira vitória de Pirro."

A maioria dos ministros então presentes, contudo, embora no mérito tenham negado a pretensão da Fazenda Nacional, entenderam que não haveria de se falar em coisa julgada no caso. Daí decorreu a súmula, embora tal conclusão estivesse longe de retratar a posição consolidada do STF.

Infelizmente, a redação dada ao enunciado da súmula adquiriu uma abrangência incompatível com os acórdãos que lhe serviram de base. É evidente que os efeitos da coisa julgada estão limitados imediatamente ao dispositivo da decisão e mediatamente ao pedido formulado pela parte (princípio da congruência entre pedido e provimento). Assim é que os efeitos da coisa julgada perpetuar-se-ão no tempo dependendo da natureza da relação processual estabelecida e do sentido do provimento jurisdicional.

Se no precedente em que se sustenta a súmula era discutida a legalidade ou constitucionalidade de um determinado lançamento, seja por razões de ordem formal ou material, então a coisa julgada, seja ela benéfica ou contrária ao contribuinte, somente dirá respeito a esse determinado lançamento6. Não porque se trate de matéria tributária, frise-se, mas sim porque a coisa julgada está atrelada ao pedido formulado no processo, que, na hipótese, seria de desconstituição de um lançamento específico.

Por outro lado, se no processo discutia-se a existência ou não de relação jurídico-tributária entre o contribuinte e o Fisco no que diz respeito a determinado tributo (ou se essa questão foi examinada incidentalmente), a decisão que sobrevier fará coisa julgada entre as partes até que outra norma venha a regulamentar a questão de forma substancialmente7 diversa.

A orientação do STF, aparentemente, seguiu-se ao longo dos anos nessa linha, como se pode constatar, por exemplo, do voto vencedor do Ministro Rafael Mayer no julgamento do RE 93.048, em que se deu provimento a recurso do contribuinte, contra a pretensão do Fisco de lhe exigir tributo declarado indevido por anterior decisão judicial, sob invocação da Súmula nº 239:

"Esse verbete se situa no plano do direito tributário formal, pois realmente o lançamento de um tributo originante de um crédito exigível num determinado exercício financeiro, não se poderia transpor a condições do débito de um próximo exercício. São os novos elementos que igualmente inovam o procedimento tendente à verificação da razão factual da existência da dívida e de seu montante.


Mas se a decisão se coloca no plano da relação de direito tributário material para dizer inexistente a pretensão fiscal do sujeito ativo, por inexistência de fonte legal da relação jurídica que obrigue o sujeito passivo, então não é possível renovar a cada exercício o lançamento e a cobrança do tributo, pois não há a precedente vinculação substancial. A coisa julgada que daí decorre é inatingível, e novas relações jurídico tributárias só poderiam advir da mudança dos termos da relação pelo advento de uma norma jurídica nova com as suas novas condicionantes."8

Outro exemplo que pode ser citado é o voto do Ministro Ilmar Galvão no julgamento do RE 109.073, acolhido pela Corte:

"Está aí demonstrado que o acórdão embargado não foi omisso, o que seria suficiente para rejeição dos embargos.

Mas se assim não fosse, se omissão houvesse a ser sanada, pediria ainda permissão ao eminente Ministro Marco Aurélio para dele discordar, não apenas por não reconhecer a ocorrência de contradição, mas também por não poder afasta- la, mesmo que existente, com modificações do julgado, já que, ao admitir este - como fez o paradigma - que a regra consubstanciada na Súmula nº. 239 pode ser excepcionada diante de inconstitucionalidade, imunidade ou isenção do imposto, chegou apenas a registrar que, no caso, não se estava diante de qualquer dessas hipóteses, razão pela qual a pretendida divergência não se poderia ter por configurada.

Daí, o não-conhecimento dos embargos.

Ante tal evidência, é fora de dúvida que se está diante de embargos declaratórios que perseguem indisfarçavelmente, sob falso pretexto de omissão, a reforma do julgado, o que não pode ser tolerado.

Meu voto, pois, é pela rejeição."

Resta clara, assim, a eficácia da coisa julgada em matéria tributária, a despeito do que diz explicitamente a súmula 2399, ressalvados os casos em que a decisão judicial dirija-se a um lançamento específico.

Há pouco esteve em debate perante o STF se seria cabível ação rescisória com base em violação à literal disposição de lei, na hipótese de a res judicata estar em sentido contrário ao decidido em julgamento superveniente daquela Corte. Foi então decidido que é inaplicável a súmula nº. 343, quando se tratar de tema constitucional, sendo cabível a rescisória com base no inciso V do art. 458 do CPC (clique aqui). Sem embargo da d.v. discutível equiparação de decisão do STF em recurso inter partes à "violação à literal disposição de lei", o fato é que se a rescisória foi considerada cabível é porque havia coisa julgada com eficácia continuada.

Finalizando, sugiro ao meio jurídico o debate dessa questão e, ainda, acerca da conveniência de conferir efeitos prospectivos a julgados que revertam orientações judiciais definitivas adotadas pelos jurisdicionados e por decisões transitadas em julgado. S.m.j., parece que há ministros do STF sensíveis ao debate dessa questão importantíssima10.

___________

1 Opondo-se ao obiter dictum, que se verifica em manifestações do tribunal marginais ao processo, desinfluentes para o julgamento do caso.

2 Mello, Patrícia Perrone Campos. Operando com súmulas e precedentes vinculantes. In Barroso, Luís Roberto (Org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 674-675.

3 Idem, p. 686. A referida autora cita, como exemplo, trabalho de Leonardo Grego, sobre os enunciados das súmulas 622, 625 e 626 do STF, que não seriam compatíveis com o entendimento esposado nos acórdãos paradigmas que lhes deram origem.

4 Por muito tempo acreditei ser esse o único precedente, porque o outro citado no site daquele Tribunal (RE 59.423) é posterior à confecção da súmula. Anos mais tarde, tomei conhecimento do Recurso de Mandado de Segurança nº.l 11.714-DF, relatado pelo Ministro Cândido Motta Filho. Tal precedente é citado numa raríssima coletânea organizada por Jardel Noronha e Odaléa Martins, em 1969, sobre as súmulas do STF.

5 Publicado no DJ em 10/2/45.

6 Essa limitação merece um esclarecimento. A decisão que declara nulo um lançamento por vício formal não impede que o Fisco renove o lançamento, sanando tal vício, desde que ainda dentro do prazo decadencial. Contudo, se a decisão afasta o lançamento por razões de ordem material, então o Fisco está impedido de renovar o lançamento referente ao débito supostamente apurado. Como regra geral, todavia, isso não obsta que outros lançamentos referentes ao mesmo tributo sejam feitos, que não tenham relação com o lançamento anulado. No caso dos impostos renovados anualmente, como o IPTU, por exemplo, é lícito ao Fisco proceder a novo lançamento no exercício seguinte. A esse respeito, pode-se citar, entre outros: BIM, Eduardo Fortunato. In Machado, Hugo de Brito (Coord.). Coisa julgada, constitucionalidade e legalidade em matéria tributária. São Paulo: Dialética, 2006, p. 103-104.

7 Diz-se "substancialmente" porque não é qualquer alteração legislativa que tem o condão de desnaturar a coisa julgada, mas apenas aquela que alterar o cerne do tributo, de modo a tornar a coisa julgada descontextualizada. A alteração meramente formal da lei somente pode derrubar a coisa julgada em duas hipóteses: quando a coisa julgada se paute na ausência de lei complementar e posteriormente seja editada tal lei complementar, repetindo todos os termos da lei ordinária, ou quando a decisão judicial reconheça a impossibilidade de se declarar a constitucionalidade superveniente de uma lei, em decorrência de uma alteração constitucional, e em seguida venha nova lei, calcada nos termos da alteração constitucional. Nesse sentido, confira-se Machado segundo, Hugo de Brito; Machado, Raquel Cavalcanti Ramos. In Machado, Hugo de Brito (Coord.). Coisa julgada, constitucionalidade e legalidade em matéria tributária. São Paulo: Dialética, 2006, p. 192-193.

8 RTJ nº. 99, p. 414 e seguintes.

9 Nesse sentido, confira-se, entre outros: Theodoro Júnior, Humberto. Coisa julgada. Mandado de segurança. Relação jurídica continuativa. Contribuição social. Súmula nº. 239 do STF. In Martins, Ives Gandra da Silva. (Coord.) Coisa julgada tributária. São Paulo: MP Editora, 2005, p. 177 e seguintes.

10 Pet 2859-SP, Relator Min. Gilmar Mendes, decisão de 6/4/2004, referendada em 25/2/2005, Tribunal Pleno; RE 197917-SP, Relator Min. Maurício Corrêa, publicado no DJ em 7/5/2004, Tribunal Pleno.

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*Advogado do escritório Garcia & Keener Advogados









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