Migalhas de Peso

Che: da ação à comoção

Terminada a sessão, a platéia do cinema lotado levanta-se e aplaude efusivamente aquele filme. Levantei-me e percorri com os olhos a sala que permanecia ainda à meia luz, observando as faces e o manear das cabeças e corpos daquelas pessoas.

30/7/2004

Che: da ação à comoção


Francisco Petros*


A

l'aurore, armes d'une ardente patience, nous entreron aux splendides Villes.

(Ao amanhecer, armados de uma ardente paciência, nós entraremos nas esplêndidas cidades)


(Rimbaud)


Terminada a sessão, a platéia do cinema lotado levanta-se e aplaude efusivamente aquele filme. Levantei-me e percorri com os olhos a sala que permanecia ainda à meia luz, observando as faces e o manear das cabeças e corpos daquelas pessoas. Uma audiência com renda abastada, bem vestida e a aparência saudável dos que sabem sobreviver. Estavam a divertir suas mentes cansadas (?) naquele conjunto de cinemas localizado entre os quarteirões mais luxuosos da capital paulista. No Brasil. Batiam palmas com incomum força e alguns esfregavam lenços de papel no rosto no intento de ocultar as lágrimas que escorriam na face emocionada.

“Poder ver tanta vida, tanta felicidade!
Poder, ao lado de homens livres, pisar o solo livre!”

(Johann W. von Goethe, 1749-1832, Fausto, II Parte, Ato 5)

O aplauso era dedicado aos “Diários da Motocicleta” (The Motorcycle Diaries, 2004, Argentina/EUA/Inglaterra/Brasil, dirigido por Walter Salles Jr., produzido por Robert Redford e interpretado por Gael Garcia Bernal (Che Guevara) e Rodrigo de La Serna (Alberto Granado)). O filme retrata a viagem do jovem Ernesto Guevara de La Serna e de seu melhor amigo Alberto Granado pela América Latina. A motocicleta foi batizada pelos protagonistas daquela aventura de La Poderosa II. Aqueles argentinos percorreram, entre dezembro de 1951 e julho de 1952, os caminhos de cinco países (Argentina, Chile, Peru, Colômbia e Venezuela).

O título é pouco fiel à importância da motocicleta. Tão frágil, viu-se logo abandonada no Chile no início da jornada. O restante da viagem foi realizado a pé e por meio de “caronas” nas boléias de caminhões e carroças do mundo rural, em meio ao povo e à tragédia social e cultural latino-americana. Ernesto e Alberto trabalharam como transportadores de mercadorias, carregadores de sacos, marinheiros, seguranças e médicos - Ernesto estava no quinto ano de Medicina e Alberto era bioquímico - e arrumaram pequenos afazeres para custear a odisséia a qual se propuseram a cumprir.

O diário não é da motocicleta, é óbvio. É de Guevara e escrito mais de um ano depois da experiência conquistada. Ao longo da viagem, Ernesto tomou apenas notas de seus pensamentos espontâneos, ilações e observações. De terras percorridas e, muitas vezes arrasadas pelas mãos do tempo e pela obra do homem. Escreveu sobre gente nobre e gente pobre. Estava já consolidado o costume, uma quase mania diária, do futuro revolucionário, o Che, que sempre escreveu sobre suas aventuras e desventuras em Cuba, no Congo e na Bolívia. Em muitos lugares do mundo.

Naquela viagem e na convivência com mineiros, estivadores, indígenas, leprosos, médicos e freiras que Ernesto esquadrinhou a visão íntima, o traço mais profundo do político e do futuro revolucionário. Ernesto tornou-se o Che. De Che transfigurou-se no mito que hoje percorre fantasmagoricamente as mentes de homens e mulheres. Na América Latina e no mundo. O mito que persegue o sentimento mais anterior do cérebro e do coração em relação à injustiça humana e que é capaz de fazer uma platéia de cinema se erguer e aplaudir. Ao final do filme, surgem as trânsfugas ocasionais aos homens e mulheres. Até lágrimas jorram. Como pode este mito, Che Guevara, ter sobrevivido por tanto tempo nestas terras e neste mundo?

“Afasto-me de pai e mãe e irmã, quando meu gênio me chama. Escreveria acima das esquadrias das portas: capricho. Espero que, em última instância, seja algo superior a capricho, mas não posso ficar o dia todo dando explicações”.


(R.W.Emerson, 1803-1882, no ensaio Autoconfiança)

Ernesto Che Guevara é um mito que condiz mais com outra revolução profunda: o eu profundo coletivo. Aquela insurreição que nasce dentro da alma dos homens que não aceitam o mundo como ele é, com as suas injustiças, divisões e divisórias, o universo das dominações materiais e dos modelos mentais que arregimentam multidões e que, de muitas formas, as escravizam.

A obra efetiva criada por Che Guevara, afora o seu caráter mitológico, transformou-se numa nua e crua realidade. Cuba, libertada revolucionariamente por Fidel Castro e Che Guevara das garras de Fulgencio Batista - ditador ligado à máfia, à droga e à exploração profunda de um povo – sucumbe, trôpega até os dias de hoje, sob o jugo ditatorial do ex-revolucionário Castro. Ele, Fidel, aos poucos, travestiu-se em caudilho. Uma obra própria. Semelhante e à imagem de tantos outros da América Latina. Um ditador por outro ditador. Cuba simboliza, juntamente com a Coréia do Norte, o que restou do desastre da aventura comunista. A pobreza e a falta de liberdade. A China oscila entre o real (a ditadura comunista) e a aceitação do jogo capitalista para ir à frente. Velozmente.

É fato que quase todas as revoluções, a Francesa, a Russa e a Chinesa e tantas outras, de espectro político de direita ou de esquerda, sucumbiram à tentação da ditadura. Resultaram em milhões de mortos, em milhares de prisões, em censuras prévias e póstumas aos pensamentos livres, em resistências amassadas sob os pés dos homens das armas. Por vezes, é mais fácil destruir velhas ordens que ordenham a liberdade dos seres e das sociedades que a construção de novas ordens que permeiem a “nova sociedade” com o fragor da liberdade e do progresso.

O meu é um mundo passado, mas não acabado,-
Jardim imaginado, cinza, galhos fendidos
E ramos quebrados, tristonhos, sem concerto,
E névoa que é mais constante do que promessas”.

(Hart Crane, 1899-1932, Diário)

De que lado estaria Ernesto Che Guevara hoje? Como veria a decadência do país que ajudou a libertar das mãos de Batista? Seria Castro ainda seu fiel aliado?

Sinceramente, creio que, a despeito de sua vocação para a luta armada, as suas aventuras nas selvas africanas e latino-americanas, Che Guevara foi a simbiose de um tempo em que se pensava que era possível mudar o mundo para melhor no âmbito político, econômico e social e, ao mesmo tempo, que fosse capaz de mudar o homem por dentro. Não era à toa que apreciava a leitura dos poetas e a escrita de versos, histórias e diários. Che era um amante da reflexão interior, da fidelidade inconteste e dado a enormes doses de generosidade. Capaz da autopunição, cortando cana-de-açúcar entre os campônios, mesmo que fosse o Presidente do Banco Central de Cuba. Capaz de abandonar o almoço para servir de professor no programa de alfabetização do povo ignorante da Cuba pós-Batista, naquela ilha na qual sequer tinha nascido.

A vanguarda revolucionária dos 50 e 60 é a mesma e maior parte integrante da imediata posteridade dos anos 70 e 80. Em tão pouco tempo, abandonou os preceitos do vanguardismo pregado pela esquerda. A utopia que, por vezes, transformou-se na luta sangrenta das guerras e guerrilhas, inicialmente fragmentou-se nos seus próprios intestinos. Surgiram os mais sanguinários líderes do ópio comunista. Stálin, Kruchev, Mao, Fidel e outros tantos merecem estar na galeria assombrosa dos anti-humanistas. Mataram em nome do Poder, trafegando na venda da utopia às multidões tão fáceis de enganar quanto famintas. Não havia relação da nomenklatura com a idéia inovadora que as vanguardas imaginavam no princípio. Na essência, estes quadros da galeria do anti-humanismo estão juntos com Hitler, Mussolini, Pinochet, Médici e todos os demônios da direita. Desta fragmentação das idéias da esquerda pelos seus próprios algozes, viu-se que aquela aventura fantástica terminou na queda de um muro que mostrou sociedades ainda mais imperfeitas que aquelas que se imaginavam igualitárias.

E nós, que sempre pensamos
A felicidade como algo crescente, sentíamos
Uma emoção que quase nos faz sucumbir,
Sempre que algo feliz decresce.”

(Rainer Maria Rilke, 1875-1926, em Elegia de Duíno).

A luta de Ernesto Che Guevara foi, na sua essência, muito mais uma revolução cultural que forjava o espírito dos homens para a esperança e para a não-aceitação da pobreza dos povos, das condições ferozes da maioria das nações e da existência de elites tão egoístas ao redor do mundo. Todavia, não nos enganemos de que aquele Che Guevara foi um homem capaz de matar outros homens, de impor suas idéias pelas armas, de ser feroz com o seu fuzil. Era um soldado inquieto que acreditava na transformação guerreira das sociedades. Pelo sangue e pelo suor, seus e de tantos que o cercaram ao longo de sua vida.

Uma análise isenta da obra revolucionária de Che Guevara nos levará à constatação de que errou em quase tudo que fez. Foi traído pelo stalinismo de Fidel Castro e seu irmão Raul. Foi enganado pelo maoísmo que também embebedou Sartre nos anos 60. Caiu na África acreditando que naquela terra de ninguém seria possível exportar a insurreição comunista. Acabou vislumbrando o caráter tribal daquele continente negro. Tribal e politicamente canibal na encarnação de seus líderes. Sua aventura na Bolívia é uma espécie de expiação pelo pecado de ter saído de Cuba em meio às discordâncias com os irmãos Castro em relação à aliança com o mundo soviético. Fidel não o queria mais em Cuba, mesmo que jamais tenha expressado claramente este desejo. Era a farsa do caudilho barbudo. Castro pregava em cartas e mensagens que Che poderia voltar a Cuba, mas lhe apontava terras mais distantes onde pudesse exalar o seu espírito revolucionário. A Bolívia foi o seu último exílio. Sua cova física. Sua tumba intelectual. A confirmação de sua força moral. Ali, assistiu-se ao seu último erro, fosse sob a ótica da operação da guerrilha, fosse sob o significado político das suas ações.

Ernesto Che Guevara foi politicamente um errante. Contumaz. Foi um bravo nas selvas, capaz de morrer por idéias erradas. Paradoxalmente um homem que teve ideais elevados, que acreditava que o homem poderia ser transformado cultural e espiritualmente.

Não é possível separar o espírito do corpo material dos homens. Não é possível fazer a autópsia de um espírito, tal qual se fez na identificação da ossada de Che (em 1996) nas selvas bolivianas, onde foi secretamente enterrado (em outubro de 1967) pelos militares bolivianos. Aqueles algozes, seduzidos pela inspiração e ação da CIA norte-americana.

Che foi, para a América Latina e para o mundo, um membro da composição mitológica helênica. Com seus defeitos humanos, mas com a expressão exuberante do espírito humano e divino. Uma espécie de Aquiles. Valente na batalha, irritado e irado com o Poder e os poderosos, de espírito inquieto e inquietante. Bonito na aparência. Sedutor nas atitudes. Às vezes, ambíguo nas idéias, mesmo que sincero na perseguição daquilo que julgava ser a Verdade. Tinha lá o seu calcanhar. Fatal. Este calcanhar foi a crença de que a ação libertadora necessariamente leva à libertação. Não percebeu que a natureza intrínseca das idéias e a sua consistência - seja temporal, seja em termos dos mecanismos interiores que podem ser construídos a partir de um ideário – é que torna a ação válida para si, para um grupo, uma cidade, um país ou mesmo o mundo. Che foi o Hamlet que constatou que havia – e ainda há – algo de muito errado com a sociedade dos homens.

“Então, surgiu Aquiles, caro Zeus,
E à altura do ombro forte do guerreiro,
Atena fez pousar o seu escudo,
E a cabeça do herói a grande deusa
Enfeitou com cordão em tom de ouro,
E ali fez reluzir brilhante chama”.

(Homero, aproximadamente 700 a.c., Ilíada, “Aquiles Diante da Trincheira”)

Ernesto Che Guevara não merece um lugar na galeria dos anti-humanistas, ao contrário da maioria de seus pares daquilo que se imaginava a vanguarda política. Ele pertence ao “espírito de seu tempo” (Zeitgeist). Aqueles anos de transformação e inquietação que acabaram fincados e incrustados nos homens. Os seus resultados foram trágicos apesar das muitas virtudes e transformações que trouxeram consigo. Trágicos como os deuses gregos, mesmo que cheio de fascínios e obras.

A platéia que aplaudia de pé ao filme de Walter Salles Jr. e Robert Redford, tão tristemente batizado de Diários da Motocicleta, naquele cinema de gente abastada e cheia de auto-estima, talvez não saiba ao certo o que aplaudia. Estivesse o revolucionário Che vivo, lhe causaria certo constrangimento olhar nos olhos de pessoas que não percebem o significado dos espinhos da pobreza que cerca quase todas as regiões que Ernesto e Alberto percorreram – caminhando muito mais que sobre o banco da La Poderosa II. Quase nada mudou daquele tempo. As veias da pobreza e da miséria persistem abertas em quase todo o mundo latino da América.

O que se vê no filme é o Che de idéias fáceis e incompletas, mesmo que regadas a certo lirismo e uma percepção romântica da vida e dos homens. Não há naquele filme o mito estendido, já morto, na mesa de autópsia de La Higuera, a localidade boliviana onde se deu o fuzilamento de Ernesto Che Guevara. Até hoje, não chegou nenhum sinal de modernidade naquele lugarejo. Sequer tem luz elétrica. Na película que provocou aqueles efusivos aplausos, encontramos o Che sedutor, aventureiro e com o véu da beleza do ator espanhol que o interpreta. É fácil amá-lo e chorar a sua aventura. Claro, não se trata de um romantismo como o de Mary Jane e o Homem-Aranha!

Ali, naquela obra, temos o Che que podemos amar sem o compromisso de pensar. E se pensarmos, especialmente nas cenas passadas no leprosário peruano onde passou alguns dias daquela aventura, será apenas uma réstia de luz sobre o mito em quem se transformou aquele argentino, filho de uma família de classe média alta.

Naquele filme, não cabe o mito de Che. Se coubesse, a platéia sairia em profundo silêncio. Sairia silenciosa e pensando na contradição que existe no sonho de um homem e aquilo que é o mundo. Perceberia que a ação política de Che foi um erro gigantesco, mas os seus sonhos estão à solta no mundo. À espera de que peguemos eles no ar e não aceitemos sucumbir às invasões bárbaras que se aproximam cada vez mais da porta de nossos lares.

“Não cometera o moço miserando
O carro alto de pai, nem o ar vazio
O grande Arquitector co’o filho, dando
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum comedimento alto e nefando,
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte, estranha condição!”

(Luiz Vaz de Camões, 1524?-1580, Os Lusíadas, 104)

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petros@migalhas.com.br





* Economista, ex-presidente da APIMEC – Associação Brasileira dos Analistas e Profissionais do Mercado de Capitais (São Paulo) e editor da EconoMigalhas.








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