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O Ministério Público e a investigação criminal

A questão da prerrogativa do Ministério Público para empreender investigação criminal é séria e toca fundo na eficiência do modelo brasileiro de incriminação e de apuração de responsabilidades.

23/7/2004

O Ministério Público e a investigação criminal


Carlos Roberto Siqueira Castro*

A questão da prerrogativa do Ministério Público para empreender investigação criminal é séria e toca fundo na eficiência do modelo brasileiro de incriminação e de apuração de responsabilidades. Pende de julgamento no Supremo Tribunal Federal recurso apresentado pelo Deputado do PL do Maranhão, Remi Trinta, que é acusado pela Procuradoria da República naquele Estado de haver desviado recursos públicos do Sistema Único de Saúde, no qual o parlamentar impugna a atribuição de Procuradores da República para conduzir investigação criminal à margem da atuação da autoridade policial. Caso a Suprema Corte se incline pela supressão da função investigatória que vem sendo desempenhada por aquela instituição essencial à Justiça desde a promulgação da Constituição de 1988, conseqüências ainda mais gravosas advirão para o triste acervo de impunidades que a sociedade brasileira não mais tolera e deplora.

Ninguém ignora que o Ministério Público conquistou prestígio e o respeito de toda a nação na justa medida em que conquistou independência e altivez em face dos Poderes orgânicos da soberania. Por isso, subtrair-lhe a faculdade autônoma de investigar no campo da criminalidade, a pretexto de se impor um extravagante monopólio investigatório a cargo da Polícia Civil, além de nada servir à sociedade, tampouco aos próprios órgãos da Polícia Judiciária, importa em manifesto retrocesso institucional em nosso País. Não se pretende, aqui, incorrer em figurações simplistas e extremadas, do tipo “só o Ministério Público possui independência funcional para investigar, uma vez que não se acha subordinado aos esquemas de cúpula e de alianças do Poder Executivo, das Casas Legislativas e das instâncias do Judiciário”, ou de que “as Polícias Civis, por deformações históricas, são inconfiáveis para conduzir investigações isentas e destemidas”.

Rigorosamente, não é disto que se trata. As mazelas da investidura pública no Brasil continuam, para desencanto geral, a comprometer o conjunto de nossas instituições, não isentando ou deixando imaculada alguma delas em especial. Os membros do Ministério Público, como também os integrantes da Magistratura, não estão, por pressuposto constitucional e legal, livres das seqüelas da corrupção, do nepotismo ou do abuso de poder, tanto que as infrações da legalidade no exercício de tais funções excelsas acham-se perfeitamente tipificadas e sancionadas num extenso conjunto de normas. Também não estão livres de eventuais arroubos juvenis e de vedetismo diante da mídia, que não raro acometem jovens integrantes da corporação. Tais anomalias haverão de ser combatidas e penalizadas mediante as sanções próprias da legalidade e com a devida atenção aos predicamentos do contraditório, da ampla defesa e da publicidade das inquirições e julgamentos. Nesse sentido, o controle dos desvios de conduta por parte dos membros do Ministério Público há de valer-se dos mecanismos corregedores tanto internos da própria instituição, quanto externos, na órbita do Poder Judiciário e mediante provocação dos prejudicados com as ações ou omissões ilícitas perpetradas por Procuradores e Promotores de Justiça. Reveste-se de benéfica inspiração a proposta de emenda constitucional referente à Reforma do Judiciário, que vem de ser aprovada pelo Senado Federal, ao prever a criação do Conselho Nacional do Ministério Público. Este, à semelhança do Conselho Nacional de Justiça, concebido para exercer o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, é integrado não apenas por membros da carreira do Ministério Público, mas ainda por magistrados, advogados e representantes da sociedade civil indicados pelas Casas do Congresso Nacional. A previsão é saudável e atende aos elevados propósitos de não segregar internamente o controle da instituição e torná-la permeável à fiscalização de outros Poderes constituídos e da sociedade em geral. Tanto mais por que tal controle extrínseco não fere o princípio intocável da independência funcional do agente político de acusação ou do oficiante pelo Ministério Público, ou seja, não constrange em absoluto a essencialidade do exercício da função como órgão agente ou interveniente na jurisdição civil e criminal.

Reconheço que a matéria tem merecido acalorado debate nos órgãos de imprensa e divide opiniões entre doutrinadores e aplicadores do Direito. A ponto de dois notáveis membros de nossa Suprema Corte, Ministros Nelson Jobim e Marco Aurélio, já terem votado, no processo de início referido, no sentido de não reconhecer amparo constitucional para o exercício da função investigatória pretendida pelo Ministério Público, fazendo-o com invocação do precedente no Habeas Corpus nº 81.326-7, de que foi relator o atual e culto Presidente do Supremo Tribunal Federal. Elevando ainda mais a temperatura da polêmica, o Superior Tribunal de Justiça inclina-se por reconhecer a competência investigatória do Ministério Público em matéria penal, qual se vê no Acórdão de sua 5ª Turma, no Habeas Corpus 28761-MG, sob a relatoria do Ministro Jorge Scartezzini.

Releva assinalar que a Constituição não outorga às carreiras da Polícia Civil a exclusividade da investigação criminal. A elas atribui, no universo dos órgãos incumbidos da segurança pública, as “funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais” (art. 144, § 4º). É bem de ver, contudo, que poder investigatório de violações à legislação penal é também atribuído pela Constituição às Comissões Parlamentares de Inquérito, que ademais terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”, cujas conclusões “deverão ser encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores” (art. 58, § 3º).

Nem se esqueça que até mesmo investigações privadas são consentidas pela ordem jurídica, inclusive aquelas desenvolvidas por detetives particulares profissionais, conquanto não revestidas de cogência pública, mas cujo resultado probatório pode bem servir de elemento de convicção para o oferecimento de denúncia a cargo do Ministério Público, enquanto titular da ação penal pública. Sabido que o inquérito policial possui natureza meramente informativa e que não constitui requisito de procedibilidade da ação penal, é por todos reconhecida, à luz dos artigos 4º, parágrafo único, 39, § 5º, e 46, § 1º, do Código de Processo Penal, a prerrogativa do Ministério Público de oferecer denúncia independentemente do investigatório da Polícia Judiciária, o mesmo ocorrendo nos casos de crimes falimentares, com base no art. 108 da Lei de Falências. E tudo isto através da formação de indícios de materialidade e autoria delitiva chegados ao seu conhecimento por fontes as mais diversas, inclusive e especialmente mercê do exercício de inúmeras funções institucionais próprias conferidas pelo artigo 129 da Constituição da República. Dentre essas, sobressai a de promover privativamente a ação penal pública, a promoção do inquérito civil e da ação civil pública, a expedição de notificações e a requisição de informações e documentos para instruir procedimentos administrativos, o exercício do controle externo da atividade policial, a requisição de diligências investigatórias e de instauração de inquérito policial, além da genérica prerrogativa constitucional para “exercer outras funções que lhe forem (explicita ou implicitamente) conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade”.

De certo, a interpretação sistêmica da Constituição e a aplicação dos poderes implícitos deferidos ao Ministério Público, que exteriorizam a festejada teoria norte-americana dos “implied powers”, reconhecida pela Suprema Corte dos Estados Unidos no caso McCulloch v. Maryland, no ano de 1819, conduzem à preservação da competência do órgão ministerial para conduzir investigação criminal com independência da instância policial.

Ora bem: nada mais compatível com esse amplo espectro de atribuições supralegais do que a faculdade do Ministério Público de coligir autonomamente os elementos de prova de que necessita para perseguir a responsabilização de quantos incorrerem nos desvãos da delinqüência. Portanto, creio falaciosa a tese de que a Constituição tenha instituído um monopólio investigatório titulado pelas autoridades da Polícia Civil, a qual inclusive já foi rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIn nº 1517, em 1997. Se tudo não bastasse, inexiste razão pro societatis para que o Brasil se afaste do modelo preferencial adotado em vários países da Europa, a exceção da Inglaterra, como é o caso da Alemanha, Itália, Portugal e França, todos de larga tradição no rigoroso combate à criminalidade (cf. Procédures Pénales d’Europe”, coordenada por Delmas-Marty Mireille, 1995). Por esse conjunto de motivos, o item 82 do Relatório da Organização das Nações Unidas sobre execuções sumárias no Brasil recomendou que o Ministério Público deve ser estimulado a desenvolver investigações em face das estatísticas clamorosas desses atentados contra os direitos humanos. Não é demais lembrar, por fim, que a investigação autônoma por parte do Ministério Público evitou que ficassem impunes dezenas de escândalos de improbidade administrativa, a exemplo da condenação do ex-deputado do Acre, Hildebrando Pascoal, do superfaturamento das obras do TRT-SP, da chamada “Operação Vampiro”, envolvendo superfaturamento de hemoderivados, das acusações contra o ex-prefeito de São Paulo, Paulo Mafuf, sobre envio irregular de receitas para o exterior, e da “Operação Anaconda”, que desvendou um esquema de comércio de decisões judiciais.

Descartadas as paixões que o assunto desperta, não pode haver dúvida de que, sopesada a relação custo/benefício social de uma ou de outra solução, a que serve melhor aos reclamos da legalidade democrática, aos anseios da sociedade contra a impunidade e ao postulado da máxima efetividade da Constituição no combate à criminalidade é aquela que prestigia a competência do Ministério Público para conduzir, com autonomia se necessário e sem prejuízo do apoio técnico da polícia civil, os atos investigatórios conducentes à apuração de responsabilidade criminal.
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* Advogado do escritório Siqueira Castro Advogados









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