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Salada à brasileira: pitaco, futebol, Direito e Internet

Brasileiro é um povo incrivelmente inteligente, criativo e astuto. Em geral, temos um raciocínio lógico ímpar. Esse nosso atributo é tão forte que acaba em uma outra característica ainda mais marcante: o pitaco. Para quem não entendeu, pitaco é a opinião que emitimos e que faz do brasileiro um especialista em todas as coisas e sobre tudo opinar.

22/7/2004

Salada à brasileira: pitaco, futebol, Direito e Internet

 

Rodrigo Guimarães Colares*

 

Brasileiro é um povo incrivelmente inteligente, criativo e astuto. Em geral, temos um raciocínio lógico ímpar. Esse nosso atributo é tão forte que acaba em uma outra característica ainda mais marcante: o pitaco. Para quem não entendeu, pitaco é a opinião que emitimos e que faz do brasileiro um especialista em todas as coisas e sobre tudo opinar.

 

Observemos bem. Cada um de nós é um potencial técnico de time de futebol. Se o assunto for Direito, então, nem se fala. Mais recentemente evoluímos para a era digital: sabemos tudo e mais um pouco sobre a Internet.

 

Como bom cidadão da terrinha, não me furto dessa honra. Quando mais novo, nunca fui aquele fanático adorador de futebol. Não via graça na bola nem em correr atrás dela. Preferia videogame. Era tudo sem sentido.

 

Mas aqui entre nós, na realidade, eu até gostava de dar uns chutes na pelota. O problema é que ela nunca ia pra onde eu queria. Eu era muito ruim mesmo. Mas você pensa que esse “detalhe” me impediu de me meter nas jogadas do time? A cada passe, a cada drible, a cada bola fora da rede, era um xingamento ao jogador e ao juiz, até a quinta geração de sua genitora. Acompanhado, logicamente, do pitaco com o chute antecipado que ele deveria ter dado ou do passe que ele deveria ter feito.

 

Eu tenho um amigo chamado Gabriel que trabalha na administração de um grande banco brasileiro. Apesar de não ser sua área, opinião jurídica é com ele mesmo. Como eu sou o advogado da nossa turma, de vez em quando ele me liga pra perguntar alguma coisa. O detalhe é que ele sempre tem um parecer legal mentalmente pré-constituído sobre o assunto. Geralmente quando discordamos, sua explicação do porquê se resume a três ou quatro palavras.

 

Da última vez ele me ligou de um posto de gasolina. Eram umas 8 horas da noite e, pra variar, eu estava no escritório. Gabriel estava indignado porque o frentista não queria aceitar o cartão de crédito dele. Em tom de ameaça, para o frentista ouvir, ele me perguntou: “Colares, me diz uma coisa. Num posto de gasolina, eles não são obrigados a aceitar meu cartão?”. Expliquei que não. A resposta dele foi imediata: “Ôxe, é sim!”, e desligou o telefone. Contemos, foram três palavras. Rápido, fácil, e o que antes poderia ser um reles pitaquinho, evoluiu e se transformou em dogma jurídico.

 

Hoje entramos na era do ciberespaço e a nossa cultura pitaqueira evoluiu para o extraordinário mundo dos bits. As classes profissionais tradicionalmente esclarecidas, como professores, jornalistas e advogados, acompanharam esse salto e passaram igualmente a dar sua “opinião” quando o assunto é Internet.

 

Poderia falar dos honrosos ofícios de professor e jornalista, mas vou fugir de nossa tradição do bom pitaco e falarei apenas dos operadores do Direito, que é onde me sinto mais à vontade.

 

Pois bem. Todo estudante de Direito (incluindo graduando, promotor, advogado, professor, juiz, etc) brasileiro que se preze tem sua opinião apriorística para dar sobre qualquer assunto relacionado à Internet. É bem verdade que a grande maioria dos institutos jurídicos construídos pela doutrina ao longo dos tempos é largamente aplicável às situações encontradas no meio virtual.

 

Contudo, há questões cujo nascituro se encontra na Internet, como é o caso dos nomes de domínio. Sobre o assunto, há poucos anos conversava com um advogado que defendia os interesses de uma empresa digital local, em um conflito judicial. Como eu cursava a graduação – e isso era do seu conhecimento – , ele me olhava de cima para baixo, quando proferiu a seguinte pérola: “simplesmente me baseei na lei de marcas (sic). Não há o que discutir, o INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) deverá passar o domínio para nós em alguns dias (sic!)” – os parênteses são meus.

 

Quem tem alguma noção sobre a matéria sabe da teratologia jurídica que ele, do alto de seu pedestal, estava me “ensinando”. Eu era estudante da graduação de Direito e, apesar de ser cronologicamente muito novo e realmente aparentar minha idade – o que continuo sendo e aparentando –, era um estudante bastante dedicado às matérias pelas quais tinha interesse. Sabia que alguma coisa estava errada, mas não quis tirar o prazer do pitaqueiro. Afinal, eu também sou, só que prefiro ser no futebol.

 

Hoje em dia não vejo muita diferença entre meu amigo Gabriel, no seu caso do cartão de crédito, e aquele advogado. Ambos são brasileiros e seguem nossa tradição. O mestre Amaro Moraes e Silva Neto1 já disse que “a maior parte dos que falam sobre direito e Internet ou não entendem de direito ou não entendem de Internet. Freqüentemente não entendem nem de direito, nem de Internet...”

 

Às vezes acho que ele tem razão...

 

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1SILVA NETO. Amaro Moraes e Silva. Prolegômenos. In KAMINSKI, Omar. Internet Legal: o Direito na Tecnologia da Informação. Juruá: Curitiba, 2003.

 

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*Advogado em Recife/PE, professor de Direito da Informática e pitaqueiro profissional.

 

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