O juízo de inadmissibilidade do recurso especial
Ovídio Rocha Barros Sandoval*
A interposição do Recurso Especial é feita perante o Tribunal de origem, sendo dirigido ao Superior Tribunal de Justiça que exerce a competência constitucional para o seu julgamento.
No Tribunal de origem, há o Juízo de admissibilidade do recurso, por despacho da Presidência ou da Vice-Presidência.
Nos primeiros anos de criação do Superior Tribunal de Justiça pela Constituição de 1988, houve a correta tendência de abandonar a draconiana orientação haurida no Supremo Tribunal Federal, atolado em processos de questões infraconstitucionais, de só se admitir o Recurso Extraordinário "in articulo mortis".
Posteriormente, diante do grande número de Recursos Especiais dirigidos ao Superior Tribunal de Justiça, houve o abandono da salutar tendência que melhor se adaptava às divergências regionais de um país-continente, para abraçar-se a orientação de criar dificuldades para o trânsito processual do Recurso Especial.
A nova orientação passou a ser seguida pelos Tribunais de Justiça, com a manifesta tendência de indeferir os Recursos Especiais, em especial, no exame do requisito do prequestionamento.
Dias atrás, fiquei estarrecido ao deparar com um despacho de indeferimento de Recurso Especial, em uma Ação Civil Pública, no Tribunal de Justiça de São Paulo, o que me levou a descobrir um fato de escandalosa gravidade.
O Recurso Especial encontrava-se fundamentado no permissivo constitucional da letra "a" e inclusive com citação de farta jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça abonando interpretação da lei federal questionada em clara divergência com aquela abonada na decisão recorrida.
O despacho de indeferimento iniciava com o seguinte parágrafo: "Trata-se de recurso especial fundado no art. 105, inciso III da Constituição da República". Quer dizer, não apontava qual o permissivo constitucional utilizado: alíneas "a", "b" ou "c". Muito menos, qual a lei federal contrariada ou com sua vigência negada. Enfim, não havia qualquer referência à "res in judicio deducta".
Em seguida, era feita a seguinte alusão: "O recurso não merece trânsito", isto porque, "ao que se infere, os argumentos expendidos não são suficientes para infirmar a conclusão do v. aresto combatido que contém fundamentação adequada para lhe dar respaldo. Tampouco restou evidenciado qualquer maltrato a normas legais ou divergência jurisprudencial, não sendo atendida qualquer das hipóteses das alíneas "a", "b" e "c" do permissivo constitucional".
Não diz quais seriam "os argumentos expendidos" que, no entender do despacho não seriam "suficientes para infirmar a conclusão do v. aresto combatido" e muito menos esclarece qual seria a "fundamentação adequada para lhe dar respaldo". De forma olímpica afirma não ter sido evidenciado "qualquer maltrato a normas legais ou divergência jurisprudencial". Por fim, de maneira genérica, entende que não teria sido atendida “qualquer das hipóteses das alíneas "a", "b" e "c" do permissivo constitucional".
Para o despacho vale tudo. Qualquer das hipóteses do permissivo constitucional não estaria atendida.
Diante dessas circunstâncias, parecia evidente o uso de um despacho-padrão e pronto para se amoldar a qualquer hipótese de Recurso Especial.
Fui pesquisar e, em único dia, encontrei idêntico despacho utilizado em dez casos de Recurso Especial, versando matérias diversas.
Constatei a triste evidência de que, qualquer que seja o Recurso Especial, o mesmo despacho-padrão é utilizado para a inadmissibilidade do apelo extremo.
O Juízo de admissibilidade existe para que o recurso seja apreciado em relação direta com os requisitos contemplados no texto constitucional e, para tanto, deve ser exercido no contexto do caso concreto e no exame dos argumentos expendidos, respeitado o permissivo constitucional utilizado.
O despacho-padrão demonstra que o Recurso Especial não é analisado e, muito menos, lido. Retira-se do arquivo do computador, de um armário ou de uma gaveta, o despacho genérico, um texto único, igual, que vale para todas as hipóteses de Recurso Especial e tranca-se, de forma olímpica, a via recursal.
O agente público que redigiu a fórmula não se deu ao trabalho nem sequer de elaborar uma redação para a letra "a", outra para a letra "b" e uma terceira para a letra "c", porque teria de mencionar, no primeiro caso, qual o tratado ou lei federal discutido, teria que indicar, no segundo caso, qual o ato do governo local questionado e, finalmente, teria que demonstrar, na última hipótese, qual a jurisprudência não contrariada para indeferir o direito constitucional de recorrer sob tais fundamentos. Daria muito trabalho. Teria que ler o recurso. Fez um texto que indefere tudo, uma receita que serve para queda de cabelo, unha encravada, dor de cabeça, mal de chagas e doença do fígado.
É de estarrecer! E mais estarrecedor é haver um Desembargador que assina em baixo dessa alquimia, manifestamente desonesta e desrespeitosa à Constituição, que deveria ser tratada com um mínimo de seriedade.
No exercício jurisdicional do Juízo de admissibilidade não se faz a triagem, mas a barragem dos Recursos Especiais sem sequer saber do que estão recorrendo.
O Juízo de admissibilidade transforma-se em Juízo de inadmissibilidade. Não se busca examinar, em cada caso, a admissibilidade ou não do recurso, mas obstar o seu trânsito a todo custo e com total desprezo ao direito da parte.
A possível avalancha de Recursos Especiais não pode servir de pretexto para a negativa de apreciação do Recurso Especial por força de despacho-padrão, com o coroamento de uma verdadeira denegação de Justiça.
A perdurar tão estranha e absurda maneira de examinar-se o apelo da parte, o Recurso Especial passará a ser instrumento processual inútil e o recorrente saberá, de forma antecipada, que um despacho-padrão será utilizado para indeferir o seu trânsito, sem exame do caso concreto e não será, até mesmo, lido.
Depois de mais de quarenta anos dedicados, de forma exclusiva, ao Direito e à Justiça, sinto-me no dever de alertar sobre uma questão gravíssima e que atormenta a consciência jurídica daqueles que amam o são Direito, na feliz expressão do saudoso e querido professor Vicente Ráo.
Por fim, o despacho-padrão, ora analisado, desrespeita a secular tradição do mais importante e respeitado Tribunal de Justiça da nação brasileira.
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*Advogado do escritório Advocacia Rocha Barros Sandoval & Ronaldo Marzagão
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