Migalhas de Peso

Homossexualismo e concubinato

Não será, certamente, fruto do acaso que, enquanto as nossas Constituições anteriores contemplavam os direitos e garantias depois de cuidarem da organização do Estado, aquela de 1988, a tal Constituição cidadã, para recordarmos o bravo dr. Ulysses, cuida de tais institutos logo em seu pórtico.

20/7/2004

Homossexualismo e concubinato

Adauto Suannes*

Não será, certamente, fruto do acaso que, enquanto as nossas Constituições anteriores contemplavam os direitos e garantias depois de cuidarem da organização do Estado, aquela de 1988, a tal Constituição cidadã, para recordarmos o bravo dr. Ulysses, cuida de tais institutos logo em seu pórtico.

Também não será descabido recordar que uma Constituição, antes de ser um conjunto de normas1 - coisa que ela, efetivamente é - constitui , antes e acima de tudo, um conjunto de princípios, as tais têtes de chapitres, como querem os gauleses, cabendo aos chamados operadores do Direito - preferentemente o legislador - escrever esses capítulos.

A lei, contudo, enquanto tal, nada mais é que a somatória de palavras, parágrafos, capítulos e títulos, cabendo ao exegeta - preferentemente o juiz - explicitar o real conteúdo dessas normas.

Assim, somente como forma de expressão se admitirá que uma Constituição tenha normas programáticas, pois, se é verdade que enquanto a determinação do legislador constitucional não for objeto da preocupação do legislador infra-constitucional, o princípio aí albergado - e toda norma constitucional pressupõe a presença de algum princípio de Direito - será o norte para o qual o intérprete orientará (rectius: deveria orientar) sua bússola.

Há, pois, o intérprete - dentre os quais, como é de todo óbvio, o juiz - de extrair de uma Constituição tudo o que ali se contém, até porque, como é de todos sabido, a fonte maior do Direito são os seus princípios gerais, como vetores metajurídicos, tais como o princípio da isonomia (art° 5°, I), o da legalidade (inciso II), o da inafastabilidade da atividade judiciária (inciso XXV), dentre tantos outros que seria enfadonho recordar aqui.

Indo-se à atual Constituição Federal, temos no seu art° 226, § 3°, o princípio da necessária proteção da família, independentemente da celebração do casamento oficial, ao dispor que “para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

A lei n° 9.278/96, como é sabido, buscou regulamentar tal dispositivo, introduzindo profundas modificações em nosso Direito de Família, cuja extensão ainda é objeto de muita discussão.

De fato, o art° 1° da mencionada lei dispõe que “é reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e continua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família”.

Chama a atenção, por primeiro, o fato de um legislador que se pretende tão moderno, ao mesmo tempo em que reconhece a existência de “entidades familiares” formadas sem a sacramentalização do registro em cartório do ato originário dela, continua a ignorar a existência de “entidades familiares” formadas por pessoas do mesmo sexo, nada obstante preveja o art° 5°, I, da mesma Constituição a igualdade “em direitos e obrigações” de homens e mulheres e o contido no § 2° do mesmo art° 5°, no sentido de que a relação de direitos e garantias é meramente exemplificativa, além daquilo que se contém no caput do aludido dispositivo, onde se afirma que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, aí incluída, por óbvio, a opção sexual que se tenha.

Em segundo lugar, alude-se aí à finalidade dessa união: constituir família.

Mas que é uma família?

Tradicionalmente, tal expressão se referia ao conjunto de pessoas ligadas a um casal comum, unidos pelo casamento (também dito matrimônio). A imagem dessa família patrilinear era uma grande mesa, tendo à cabeceira o varão, cercado de filhos, filhas, genros, noras e netos, com a esposa fazendo as honras da casa.

Que se deve entender, porém, hoje por casamento?

"Remedium concupiscentiæ", "vinculum omnis vitæ", “contrato pelo qual o homem e a mulher se unem para sempre, sob promessa de fidelidade no amor, de assistência recíproca e dos filhos e da mais estreita comunhão de vida" (Spencer Vampré), "contrato solene pelo qual duas pessoas de sexo diferente e capazes, conforme a lei se unem com o intuito de conviver toda a existência, legalizando, por ele, a título de indissolubilidade do vínculo, as suas relações sexuais e estabelecendo para seus bens, à sua escolha ou por imposição legal, um dos regimes regulados pelo Código, e comprometendo-se a criar e educar a prole que de ambos nascer" (Pontes de Miranda), “união de um homem e uma mulher, realizada segundo as prescrições da lei” (Cunha Gonçalves), para ficarmos apenas com o que registra o “Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro”, eis como nossos juristas buscavam conceituar tal instituto.

Tão diversos e tão passíveis de críticas têm sido os designativos para o casamento que chegamos a comentar jocosamente, há algum tempo: "isso mostra que o casamento não é difícil apenas na prática".2

Os especialistas em inter-relacionamento humano, contudo, vinham observando que as formas tradicionais de relacionamento conjugal estavam sendo postas em cheque, especialmente pelos mais jovens, donde a observação de um deles no sentido de que “uma coisa que nós, como cultura, talvez pudéssemos fazer para preservar esse valiosíssimo laboratório, essas aventuras pioneiras no espaço de novos relacionamentos, seria livrá-los da sombra sempre presente da censura moral e do processo criminal”.3 À forma hierarquizada de família, composta de tantos membros, foi-se opondo forma horizontalizada, na qual, além de diminuto o número de seus membros, há entre eles um relacionamento que apresenta formas intercambiáveis de papéis.

Curiosamente, porém, graças principalmente à passividade das mulheres que escrevem sobre o tema, ainda se lê em livros especializados, escritos obviamente por homens, coisas como “perante o direito brasileiro, expressamente e como sanção ao dever que tem a mulher de coabitar com o marido no domicílio conjugal, se este dever é descumprido pelo abandono voluntário do lar sem justa causa, com recusa de retornar a ele, cessa para o marido a obrigação de sustentá-la”.4 Note-se que a atribuição do marido não seria a de colaborar para a manutenção da família, mas a de sustentar a companheira, talvez em compensação dos serviços prestados por ela.

Essa visão da mulher como ser inferior, devida, indiscutivelmente, em nossa sociedade judaico-cristã, aos ensinamentos do apóstolo Paulo e que a Igreja católica faz questão de manter até hoje, negando-se, por exemplo, a autorizar o ordenamento de sacerdotisas, nem sempre fica restrita, como é curial, às concepções pessoais de que quem as tem, contaminando, ao reverso disso, as instituições onde inseridos os adeptos de tais concepções. Ainda recentemente, como foi amplamente divulgado pela imprensa, mulheres foram retiradas de sala de provas para ingresso na Magistratura do Estado de São Paulo simplesmente porque estavam trajando calça comprida, o que atentaria contra o decoro forense. Não é mera coincidência que o autor de tal ordem, em entrevista radiofônica, na condição de Corregedor Geral da Justiça, tenha já afirmado sua convicção - contra tudo o que se sabe a respeito do assunto - de que as pessoas do sexo feminino não devem ir além do magistério, mesmo porque, ao seu ver, mensalmente elas se tornam incapazes de manter o equilíbrio mental pelos dias em que se encontram menstruadas.

Como se verifica, o fantasma de Georges Sand ainda assusta a muita gente.

Um autor, absolutamente insuspeito por sua opção de vida, o padre Paul-Eugène Charbonneau, advertia, porém, que, durante muito tempo, confundiu-se a Moral com um sistema de regras de conduta, o que trouxe mais malefício do que benefício ao ser humano. “Apresentar a moral pura e simplesmente como um imperativo extrínseco ao homem, a lhe ser imposto gratuitamente por Deus, sob a ameaça de danação eterna, é, a golpes certos, preparar, de um lado, a amoralidade e, de outro, o ateísmo.”5

E não se acanha de afirmar: “É isto o que grande número de moralistas, sobretudo no interior da Igreja, não compreendem. Eles deslizaram imperceptivelmente para um moralismo legalista, idolatrando a Lei, nela se detendo”.6

Aliás, quando do julgamento, por parte de nossa Corte Maior, da Representação de Inconstitucionalidade n° 1.000 (por sinal rejeitada) e que se referia ao art° 38 da lei 6.515/77, em boa hora revogado pela lei n° 7.841/89, o ilustre Min. Cordeiro Guerra não se pejou, em seu voto, de atribuir à Igreja Católica a culpa pela introdução entre nós do divórcio a vínculo, salientando que, quando ela se dedicava apenas ao ensino da moral, e não a atividades políticas, os projetos nesse sentido sempre haviam sido rejeitados pelo Congresso Nacional. Para sermos fiéis a suas palavras: ”durante o tempo em que a Igreja Católica dominava os corações e os espíritos e não se preocupava com os fenômenos temporais, fazia preponderar os princípio ético da indissolubilidade do vínculo.”7

Se outrora, bem antes de ser pronunciado tal voto, o desfazimento da sociedade conjugal, pelo desquite, era quase sempre acontecimento traumatizante, exatamente por causa dessa moralidade legalista, “hoje em dia, graças ao divórcio, esse fenômeno é mais aceito em todos os níveis, as motivações tendem a ser mais articuladas e as separações amigáveis mais freqüentes. Ocorre, então, que o fim de um casamento é mais amplamente admitido e a separação passa a ser a solução de um problema, ao invés do ato final de uma situação trágica. O atual estado de coisas indica uma maturidade crescente das instituições civis e uma consciência de comportamento mais difundida entre as pessoas”.8

Isso, porém, não nos dispensa de refletirmos sobre essa preocupante realidade: quais as causas desse fenômeno? Se é verdade que ao ser humano é impossível experimentar, solitariamente, um estado de plenitude e felicidade, pois não se resolve ele em si mesmo, estando sempre “em busca de um estado de harmonia e só é capaz de encontrá-lo, de uma maneira mais ou menos estável, a dois”9, surge como fato simplesmente absurdo que tal assunto, pela carga emocional que envolve, seja tratado pelos operadores do Direito sem a indispensável assessoria dos especialistas.

Realmente, qualquer um de nós aprendeu nas aulas de Direito de Família que uma das finalidades do casamento está em alguém proporcionar a seu parceiro o prazer sexual (o tal debitum conjugale), o que, não poucas vezes, é identificado com o amor. Para os não-operadores do Direito, no entanto, há entre satisfação sexual e amor uma diferença não pequena, por isso que, enquanto o primeiro tem a ver com a busca do próprio prazer, ”o amor é fenômeno que envolve outra pessoa e está comprometido essencialmente com os processos de integração, de dependência de uma pessoa e, depois, de um grupo”.10 Para repetir um autor católico que trata ambas as situações com a utilização de verbos tantas vezes confundidos: “gostar é uma sensação em que o Eu se antepõe ao Tu; amar é um sentimento em que o Eu se pospõe ao Tu. No gostar o Eu se antepõe ao Tu porque gostar supõe prazer pessoal, e é da psicologia (até da fisiologia) do prazer experimentar a sensação agradável. Quem gosta quer ser sujeito do prazer”.11

Em capítulo intitulado “O Homem Ama, se Casa e é Pai. Com Freqüência se Divorcia”, Gikovate salienta que já no Banquete de Platão, há quase 25 séculos, se discutia a respeito dessa coisa misteriosa que leva duas pessoas a desejarem unir suas vidas, “essa curiosa tendência que existe nos seres humanos adultos de buscar uma outra criatura para com ela estabelecer uma ligação especial”.12

E não há base científica alguma a sustentar que esse complemento psico-físico só se dará com alguém do outro sexo.

Em obra que muito longe está de incentivar o homossexualismo, lê-se que “há certo número de pessoas cuja erótica não se orienta para o outro sexo, mas para o sexo ao qual elas mesmas pertencem. A falta de discussão franca sobre o assunto fez surgir, em relação a elas, certas opiniões que, em sua generalidade, são injustas. O homem não possui a força de decidir por si mesmo sobre a tendência de sentir-se atraído ou não pelo outro sexo. Desconhece-se a origem da homossexualidade. Aquele que tem essa tendência é, muitas vezes, homem íntegro, que trabalha honestamente. Em solidão humana, deseja ele ou ela calorosa amizade.”13

E o que justifica a indiferença do Estado diante de uma realidade fática que está a exigir regramento jurídico, dado seu evidente conteúdo ético? Quem sustentará hoje que uma criança estará tendo uma formação mais condizente com as exigências do futuro se for deixada na guarda de duas pessoas de sexos distintos? Quem trabalhou ou trabalha em Vara de Família ou em Vara de Infância e Juventude sabe muito bem que a heterossexualidade dos pais não é garantia de quase nada. Um casal de homossexuais que dispense amor e respeito à criança atenderá, certamente, com muito mais segurança o pretendido pelo legislador constituinte ao estatuir no art° 227 sua especial preocupação com a criança e o adolescente do que um casal composto de heterossexuais que vivam em um relacionamento sado-masoquista como tantos que freqüentam consultórios psiquiátricos.14

De outra parte, os estudos sobre a química que conduz à união pretensamente estável de duas pessoas levam alguns autores a tentar catalogar essas motivações, nem sempre fáceis de identificar à primeira vista.15 Ao fim e ao cabo, tais estudiosos encontram na expressão livre das tendências individuais a única regra válida (por mais assustadora que seja) a ser considerada em tais casos. Donde dizer um deles, que passou a vida realizando terapia com casais: “imaginemos que se promulgasse uma lei pela qual qualquer modelo de união adotado por adultos mutuamente consencientes passasse a ser legal, contanto que não fosse em claro detrimento de terceiro. Isto favoreceria as tentativas honestas, em lugar de favorecer as clandestinas, e permitiria que os laboratórios de uniões operassem franca e honestamente.”16

Ele mesmo, porém, indaga: “seremos, como cultura, capazes de uma atitude assim? Mudança e liberdade, mormente quando levadas a sério, são idéias que produzem calafrios no público norte-americano. Parecemos abominar a lembrança de que somos uma nação afeiçoada por revolucionários, tanto pacíficos como violentos. É por isso, talvez, que estamos demasiado assustados para dizer aos membros de uniões de vários gêneros: vocês são livres; aceitamos a inevitabilidade e as vantagens, concebivelmente grandes, da mudança. Mas acredito que se tivéssemos, coletivamente, a coragem de dizer isso, teríamos preparado o palco para uma revolução no âmbito das uniões, uma revolução na área dos relacionamentos”.17

Depois dessa incursão, algo infreqüente em artigos jurídicos, no campo da Psicologia, quando, propositadamente, citamos obras de divulgação científica acessíveis a qualquer leigo, com as datas das respectivas edições para um confronto entre o que ali se lê e o que os juristas ainda insistem em dizer hoje, reproduzo, com respeito, trechos de um de nossos mais respeitados juristas, quando, lecionando para nós todos, se demora em tecer considerações sobre o concubinato, em relação ao qual vê, por toda parte, “generalizada condescendência”, censurando aqueles que, assim se mostrando indulgentes, “a pretexto de que se trata de fato freqüente, sobretudo nas classes populares (sic), concorrem indiretamente para a desagregação da família legítima”18, reportando-se à lição de Miguel Moreno Mocholi, para quem tal instituto “es indigno de la más minima protección o reconocimiento19, mesmo porque, no magistério de Valverde, o concubinato, “união de fato mantida sem formalidade alguma e constituída muitas vezes com mulheres de condição social inferior (sic), representa a exaltação do egoísmo no homem, que deseja satisfazer suas necessidades sexuais com o mínimo de responsabilidade e de deveres”.20

O que o olhar neutro nos mostra, contudo, é que, menos por ser parte de alguma política inspirada em socialistas ou comunistas, como queria o mesmo Valverde21, e mais como opção de vida tomada por pessoas que exercitam seu direito de escolha diante daquilo que lhes convém, a dispensa da formalidade do registro da união vai ganhando adeptos em todo o mundo, sem que se possa ligar isso a qualquer dos males de que se queixa a Humanidade. Ao contrário, talvez isso se deva precisamente ao fato de os tempos presentes estarem caracterizados pela transitoriedade, pela consciência do efêmero da vida, donde não mais fazer sentido que duas pessoas façam promessas de eterna fidelidade e juras de amor eterno.

Diante da nova situação ocorrida com os casais, alguns autores estão a sugerir a adoção da expressão "conviventes", para designar aqueles que, ligados ou não pelo vínculo formal, convivem (sob o mesmo teto ou não, pois isso é opção do casal) com propósito de mantença de tal situação, o que se designava pela expressão more uxorio.

Aos tradicionalistas, a palavra cônjuge merece mantida para distinguir aqueles que se encontram abençoados pelo Estado daqueles que, pelos motivos que tenham, não querem ou não podem merecer a mesma bênção, donde viverem uma relação meramente concubinária.

Talvez que a emenda esteja piorando o soneto.

De fato, qualquer dicionário latino nos mostrará que jugum era o nome dado pelos romanos à canga ou aos arreios que prendiam as bestas à carruagem. Cícero tanto usava a expressão para indicar "junta de bois" como para referir-se ao cativeiro, à escravidão. O verbo conjugare (de cum jugare) designa, portanto, dentre outros sentidos, a união de duas pessoas sob a mesma canga. Donde conjugis significar "jungido ao mesmo jugo". Ou no mesmo cativeiro, se preferirem.

E tal aspecto do matrimônio (munus maternum, etimologicamente, em oposição ao munus paternum ou patrimônio, a mostrar a diferença entre o papel do homem e o papel da mulher nesse tipo de relação) pareceu-nos tão terrível que chegamos a expressar isso em versos, que nos atrevemos a reproduzir aqui:

Supõe meu amo, ao conduzir-me pela rua,

que apenas sua é a vontade que comanda.

Se eu ando, anda; páro, pára; avanço, avança

e nessa dança convivemos ano e ano.


Qualquer fulano, entretanto, sabiamente,

vendo a corrente que nos liga o tempo todo

e o tenso modo que nos marca o caminhar,

há-de indagar: “mas, afinal, e a liberdade?


Onde a vontade de viver, independente

dessa corrente que vos ata e vos limita

e delimita o vosso espaço e a vossa vida?”


Nessa sofrida convivência que nos pune,

o que nos une eu desconheço, isso não nego.

Sei sermos cegos, prisioneiros cão e dono.

Eis uma visão daquilo que, na maioria das vezes, é o casamento, a convivência formalizada entre duas pessoas, necessariamente de sexos diferentes, vivendo em um mesmo ambiente, atados pela lei e não mais pela disposição de juntos superarem os desafios que toda convivência costuma trazer.

Digno de destacar que por muito tempo o Direito se vem utilizando da palavra concubino/a para designar aquele ou aquela que vive com outrem, como se casados fossem, sem a formalização dessa união em cartório de registro civil, o que jamais significou que tais pessoas fossem de condição social inferior, já que, mesmo entre os romanos, era uma união “de natureza lícita, nada tendo de torpe ou reprovável”.22

Ainda que historicamente a palavra tivesse origem menos comprometida moralmente (entre os romanos, o concubinatus, embora menos solene que o matrimonium, era tão casamento quanto o outro, aplicando-se, porém, àqueles que não estavam legitimados a formalizar a união civitatis gratia), grassou entre nós a idéia de que concubina, amásia, comborça ou que outro nome o vulgo lhe emprestasse era aquela mulher que se unia a um homem casado, durante a mantença desse casamento, desfrutando de benefícios patrimoniais em troca de carinho e afeto dedicado a seu mantenedor. Amante teúda e manteúda, como preferia o vulgo.

Justamente por isso, em alguns trabalhos doutrinários e jurisprudenciais se preferiu aludir à companheira (hoje se propõe a expressão conviventes, que entendemos adequada até mesmo para designar aqueles que se encontram unidos pelos laços do casamento formal, já que a palavra cônjuge tem sentido claramente depreciativo, como já se viu acima) para nomear aquela mulher que, sem união formal, vivia more uxorio com homem impedido de com ela casar-se. Com o passar do tempo tal denominação passou a aplicar-se também àquela mulher que estivesse unida a homem com impedimento para novo casamento (não tínhamos ainda o divórcio a vínculo entre nó), distinguindo-se, assim, duas situação necessariamente distinguíveis: a situação da mulher que estava sponsae loco daquela interesseira que, geralmente capitalizando seus encantos pessoais, obtinha a compensação imediata de uma vida mantida por alguém que com ela não vivia more uxorio, limitando-se a breves visitas ou escapadelas para acalmar as exigências da libido.

Posta assim a questão, viram-se os juizes diante de situações extremas, onde, após anos de convívio, a mulher quedava desamparada quando, falecendo o homem, que cumulara grande soma de bens durante tal união para-matrimonial, estes passavam aos herdeiros dele e, não poucas vezes, também à esposa, ainda que dele separada de fato há lustros, já que o vínculo matrimonial era indestrutível.

Por mais que hoje se questione a moralidade de tal comparação, viram os juizes sensíveis identidade entre a situação da companheira e a da empregada doméstica o substrato jurídico para, à falta de outro melhor, justificar que fosse ela amparada a titulo de pagamento dos serviços prestados no lar. Isso se dava principalmente em face daqueles casos onde não fosse possível demonstrar que a mulher, mercê de seu trabalho fora do lar, houvesse contribuído para a formação do patrimônio comum, a teor do exigido pela conhecidíssima Súmula n° 380 do Supremo Tribunal Federal.

Avançou, porém, a jurisprudência admitindo que, ainda que não trabalhasse a mulher fora de casa ou mesmo que seus serviços não fossem comparáveis aos de uma empregada doméstica, justificava-se a partilha dos bens adquiridos durante a vida comum desde que ela tivesse colaborado em serviços materiais doutra ordem, como na ajuda em termos de afeto, estímulo e amparo psicológico.

Chegados a este ponto e impondo-se a conclusão do trabalho, retorno à pergunta inicial: que é uma família?

Se entendermos que somente a existência de prole a caracteriza, contrariaremos tudo o que se escreveu e legislou até aqui em torno do casamento, pois a impotência generandi tanto quanto a concipiendi jamais foram causa de desfazimento do vínculo matrimonial, até mesmo em face do Direito Canônico.23 Logo, família é expressão que deve abranger pelo menos aquelas duas pessoas que se unem com o propósito de manutenção desse vínculo afetivo, independentemente do fato de serem de sexo diverso, tenham ou não prole.

Ora, se a prole não é essencial para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, que motivos teriam levado o legislador constituinte a ressalvar que tal proteção só as merecem os casais compostos de homem e mulher, quando ele mesmo dissera que todos são iguais perante a lei, que não fará distinção entre pessoas? Para mostrar o absurdo de tal distinção, suponha-se que uma lésbica conviva com um homossexual masculino durante anos, sob o mesmo teto, de forma “contínua e pública”. Algum juiz negará a um deles os benefícios trazidos pela lei n° 9278/96 quando se desfaça tal união? Seguramente não. Logo, se o fato da opção de ambos pelo homossexualismo não significa que não tenham constituído família, em nome de que princípio jurídico ou moral se haveria de negar tal benefício se cada um deles mantivesse tal união com alguém do mesmo sexo?

A questão das uniões estáveis homossexuais é um fato social que nenhum Estado contemporâneo pode ignorar, pois não se trata de fenômeno isolado, devido à frouxidão dos costumes, como querem os moralistas, mas como expressão de opção pessoal que o Estado democrático tem o dever de respeitar.24

Se a Constituição Federal, no art° 5°, estatuiu o princípio de equiparação entre os sexos e se tais uniões existem, não será absurdo concluir que o art° 226, § 3°, fez uma distinção odiosa, contemplando a proteção da união estável apenas quando envolva pessoas de sexo diverso, contrariando princípio constitucional constante de regra pétrea.

Como diz Baracho, “a interpretação dos dispositivos constitucionais requer por parte do intérprete ou aplicador particular sensibilidade que permita captar a essência, penetrar na profundidade e compreender a orientação das disposições fundamentais, tendo em conta as condições sociais, econômicas e políticas existentes no momento em que se pretende chegar ao sentido dos preceitos supremos”.25

Sendo aceito que uma Constituição, mais do que apenas um conjunto de normas, é um conjunto de princípios, aos quais devem afeiçoar-se as próprias normas constitucionais, por uma questão de coerência interna, a conclusão somente pode ser uma: desde que uma norma constitucional se mostre contrária a um princípio constitucional, há de prevalecer o princípio.

De fato, já em 1951 Otto Bachof aludia à possibilidade desse conflito, pelo que a norma deveria ser considerada inconstitucional, ou, se se preferir, não-vinculativa, causando compreensível escândalo na época, como dá conta o prof. José Manuel Cardoso da Costa.26

Dizia o ilustre professor da Universidade de Tübingen, depois de discorrer sobre a natureza supralegal das normas que contenham garantias dos direitos fundamentais27, que “o direito constitucional supralegal positivado precede, em virtude do seu carácter incondicional, o direito constitucional que é apenas direito positivo, razão porque aqui - mas também aqui - a ponderação da importância de normas constitucionais diferentes, em confronto umas com as outras, preconizada por Krüger e Giese, se mostra justificada. Falta a autonomia da criação do direito, que permite ao poder constituinte abrir brechas, através de excepções à regra, nas normas autonomamente estabelecidas, onde a positivação significa, não a criação de normas jurídicas novas, mas apenas um reconhecimento de direito pré-constitucional.”28

Se tal afirmação puder trazer alguma dúvida ao leitor, útil a leitura de longuíssimo e lapidar acórdão originário de nosso Supremo Tribunal Federal, onde se deixou dito que uma Emenda Constitucional pode ser considerada inconstitucional não por defeito de forma, mas por conter matéria que conflita que princípios constitucionais.29

Ora, sob tal prisma, tanto o parágrafo 3° do art° 226 da CF quanto o art° 1° da recente lei 9278/96 afrontam o espírito e a letra da Constituição de 1988, quando restringem a proteção legal apenas às uniões estáveis de pessoas de sexos diferentes, fazendo uma distinção que os princípios supra-constitucionais, albergados no art° 5°, não autorizavam, nem mesmo como exceção.

Se se entender que a argumentação aqui desenvolvida deva ser rejeitada, chegaremos, paradoxalmente, ao extremo oposto: quando a Constituição Federal se referiu à união estável protegível como sendo aquela entre pessoas de sexo diverso estará, contrario sensu, impedindo que o legislador ordinário contemple com tal proteção aquelas uniões onde os conviventes tenham identidade de sexo.
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1 cf. Michel Temer, “Elementos de Direito Constitucional”, RT ed., 1990, pág. 25

2 cf. “Noções de Direito Público e Privado", ed. Max Limonad, 1980, pág. 211

3 Carl R. Rogers, “Novas Formas do Amor: O Casamento e suas Alternativas” (no original “Becoming Partners: Marriage and its Alternatives”), trad. de Octávio Mendes Cajado, ed. José Olympio, 1979, pág. 212

4 Yussef Sahid Cahali, “Dos Alimentos”, RT editora, 1987, pág. 191

5 “Amor e Liberdade”, ed. Herder, 1968, pág. 10

6 id., ib.

7 cf. Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 101, pág. 908 e seguintes

8 Edoardo Giusti, “A Arte de Separar-se”, ed. Nova Fronteira, trad. de Raffaela De Filippis, 1984, pág. 27

9 Flávio Gikovate, “O Instinto do Amor”, MG Editores Associados, 1979, pág. 27

10 Flávio Gikovate, “Homem: o Sexo Frágil?”, MG Editores Associados, 1989, pag. 90

11 João Mohana, “Ajustamento Conjugal”, ed. Globo, 1969, pág. 194

12 “Homem: o Sexo Frágil?”, pág. 195

13 “O Novo Catecismo”, publicado pela editora Herder com parecer da CNBB para o nihil obstat e imprimatur, 1969, pág. 444

14 Havendo publicado este trabalho na Revista Literária do Direito, recebi de um ilustre Advogado os comentários seguintes, que bem mostram o modo de pensar de muita gente sobre o tema - “ .... “

15 cf. Pierre Weil, “Amar e Ser Amado”, Editora Vozes, 1976, passim

16 Carl R. Rogers, ob. cit., pág. 212

17 id., ib.

18 cf. Washington de Barros Monteiro, “Curso de Direito Civil”, 2° vol., ed. Saraiva, 1995, pág. 19.

19 id., pág. 20

20 id. ib.

21 cf. Washington de Barros Monteiro, ob. e loc. cit.s

22 cf. Washington de Barros Monteiro, ob. cit., pág. 19

23 cf. Washington de Barros Monteiro, ob. cit., pág 98

24 cf. o levantamento efetuado pela revista L’Express, edição de 22/06/95, sob o título “Homosexuels: la révolution tranquille”

25 José Alfredo Baracho, “Teoria da Constituição”, 1989, pág. 54

26 cf. “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, Atlândia Ed., 1971, trad. de José Manuel Cardoso da Costa, nota do tradutor

27 ob. cit., pag. 56

28 ob. cit., pág. 63

29 cf. ADIn n° 339-DF, rel. o Min. Sydney Sanches, in Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 151, pág. 755 e seguintes

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* Desembargador aposentado do TJ/SP e membro do IBCCRIM







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