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Democracia processual e a necessidade de motivação dos provimentos jurisdicionais

A participação popular, fonte de legitimação do poder estatal, possibilita que todos os jurisdicionados possam exercer papel de destaque na escolha dos rumos a serem adotados pela sociedade, estando assim satisfeita a soberania do Estado.

9/7/2004


Democracia processual e a necessidade de motivação dos provimentos jurisdicionais

Hugo Filardi*

A participação popular, fonte de legitimação do poder estatal, possibilita que todos os jurisdicionados possam exercer papel de destaque na escolha dos rumos a serem adotados pela sociedade, estando assim satisfeita a soberania do Estado. Faz-se mister salientar que o avanço legislativo iniciado no início dos anos 80 e que teve como ápice a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil contaminou todo o ordenamento jurídico vigente com ideais de efetiva garantia dos direitos fundamentais, sejam eles individuais ou coletivos.

O conceito de democracia indissociável de processo como garantia fundamental dos jurisdicionados, vislumbrado por PIERO CALAMANDREI e NICOLÒ TROKER, deve ser aplicado de forma irrestrita por todos os atuantes da relação processual, sob pena de se incorrer em grave inconstitucionalidade. Os juízes, na sua inerente função de gerenciadores processuais, guardam a obrigação de garantir que todos os jurisdicionados interessados tenham plena capacidade de exporem suas opiniões jurídicas. Dentro deste conceito de livre acesso e contribuição das pessoas na entrega da tutela jurisdicional, o magistrado assume papel ativo perseguindo assim a efetividade de seus provimentos. O zelo pela eficiência da tutela judicial deve pautar a atuação dos magistrados, que terão que conduzir os processos com senso humanitário e buscando a igualdade entre interessados no desfecho da demanda.

Já às partes e aos demais jurisdicionados que possam trazer à demanda elementos concretos para a construção da sentença, encarada como a aplicação prática da abstração legal, é imperiosa a facilitação da exposição de suas idéias no campo processual, a fim de que o exaustivo e qualitativo debate sobre a matéria possa se refletir na confiança em uma justiça mais próxima da sociedade e com mais credibilidade. A plena participação popular, um pouco mais afeta aos Poderes Executivo e Legislativo, tem que ser transportada para o Poder Judiciário semeando a cultura de obtenção coletiva da verdade legal.

Não podemos mais conceber que o processo ainda conserve resquícios de autoritarismo, já que estamos sob a égide do Estado Democrático de Direito, e a democracia participativa deve quebrar as amarras do conservadorismo no emprego da relação processual. Dado o dinamismo das atividades humanas, o processo tem obrigatoriamente que acompanhar as relações de direito material, não mais sendo triangular e sim um conjunto de relações jurídicas complexas. Somente com um diálogo humano e propenso à compreensão dos fatos postos em Juízo, atingiremos o ideal de processo justo, estando disponibilizados eficazmente todos os instrumentos para que a tutela jurisdicional seja efetiva e se traduza em credibilidade junto aos jurisdicionados.

A ética habermasiana deliberativa que preconiza o diálogo humano como única forma de pacificação social, valendo-se da teoria do melhor argumento, deve ser amplamente aplicada no desenrolar das relações processuais, com vistas à obtenção de legitimidade dos provimentos jurisdicionais. Adotando a concepção de nexo interno entre soberania popular e direitos humanos e intersubjetivismo das relações sociais, o processo tende a se humanizar e servir como instrumento respeitado, e não meramente imposto, para a aplicação da vontade legal ao caso concreto.

Na esteira da plena participação popular nos comandos estatais, surge o princípio geral de Direito processual da motivação das decisões judiciais, estando consagrado na Constituição da República, no art.93, inciso IX. A fundamentação das decisões judiciais é impingida por nosso arcabouço jurídico tendo por escopo salvaguardar o interesse das partes, além de contribuir de sobremaneira para satisfação do interesse público.

Encarando-se cada atividade estatal como uma pequena contribuição para a efetividade do Estado Democrático de Direito, a motivação das decisões judiciais deve ser concebida como elemento integrador da função jurisdicional aos jurisdicionados. Num contexto de democracia processual e do due process of law, devemos assegurar a todos os jurisdicionados a possibilidade de influir eficazmente em todas as decisões que possam acarretar-lhes invasão em suas esferas de interesses.

A participação democrática no processo de todos os jurisdicionados interessados no deslinde da demanda é completamente preponderante na aplicação de um processo justo, capaz de propiciar a segurança dos direitos fundamentais do homem. A motivação age como instrumento de controle das decisões judiciais e concede aos jurisdicionados a possibilidade do exercício do democrático direito de manifestação. Convém destacar que a exaustiva fundamentação dos provimentos jurisdicionais traz solidez aos julgados, visto que todos os interessados podem expor suas opiniões e assim os magistrados adquirem legitimidade para revelar o direito.

Como a Constituição da República Federativa do Brasil é fundada justamente no nexo entre soberania popular e direitos humanos, não mais devemos assistir inertes à prolação de decisões, que dada a sua frágil fundamentação, não podem ser questionadas. O Juiz Deus morreu, deixando aberto o espaço para o aparecimento do Juiz cidadão, sempre atento aos reais anseios populares e consciente de sua responsabilidade social.

O simples fato de vivermos sob o sistema republicano de governo já nos faculta a chance de construirmos uma sociedade mais fraterna e justa, com a participação efetiva de todos. Há de ser ressaltado que a fiscalização e o controle popular das decisões estatais visam eliminar as arbitrariedades, já que como bem disse ANDRÉ BERTEN “é preciso e basta que possamos contestar as decisões, se avaliarmos que elas não correspondem a nossos interesses ou a nossa concepção de justiça” para impedir que juízes ou governantes interfiram ilegitimamente nos atos sociais.

Especialmente com a propagação da idéia de república contestadora e não consensual conseguiremos dar eficácia às normas constitucionais abertas asseguradoras de direito fundamentais, apaziguando as claras e enormes desigualdades em nossa sociedade. Mas para que haja este engajamento, é preciso que compreendamos os atos estatais, nos propiciando oportunidade de eficazmente contestá-los. Os atos do Estado não devem se impor pela força, mas pelo convencimento e sua congruência com o ordenamento jurídico vigente. O Poder Judiciário se legitima quando sua decisão convencer a sociedade, sendo certo que, para que isso ocorra, os interessados devem tomar pleno conhecimento dos fundamentos dela.
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* Advogado do escritório Siqueira Castro Advogados









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