E agora: "Como falar de livros que não se leu?"
Jayme Vita Roso*
"Polonius: What do you read, my lord?
Hamlet: Words, words, words".
William Shakespeare 1564-1616: Hamlet (1601)
Por dever aos que lhe permitem veicular suas idéias, por amor à verdade que lhe brota das entranhas e por probidade intelectual, as obras não lidas, mas focadas, lembradas, apeladas ou mencionadas, ao longo de quase duas mil páginas sempre exibiram a sinceridade indispensável: as citações vêm acompanhadas dos esclarecimentos, quando as obras não são lidas por inteiro.
Ora bem, em setembro do ano recém-findo, ao ler a relação dos livros mais vendidos na França, deparou com a obra de Pierre Bayard "Comment parler des livres que l'on n'a pas lus?"1.
Sucesso editorial de grande repercussão, sem dúvida pelo provocativo título, o livro chegou-me às mãos em novembro, vindo da leitura do catálogo do Le Grand Livre du Mois, do qual sou e estou cliente há quase 24 anos.
Quem é Pierre Bayard? Desde logo assaltou-me a curiosidade de conhecer o autor, sem referência na edição por mim adquirida. Mas as Éditions de Minuit prodigalizam informações de autores contemporâneos e de suas obras, como o fazem, e vem fazendo com rigor, ao longo de décadas.
Do mesmo autor, Minuit deu a lume nove livros, cujos títulos- e bastam por eles – apresentam Bayard e o colocam dentre os mais fecundos autores franceses destas duas últimas décadas, porque, por outras editoras, ele mesmo publicara outros livros (Presses Universitaires de France). É muito para se avaliar: o autor, que tem 53 anos, vem lecionando literatura francesa na Universidade de Paris VIII, praticando psicanálise e assombrando pela variedade de temas que realçam os vínculos literários com a arte terapêutica.
Percorrendo os títulos dos seus livros,a partir da leitura que fiz de Honoré de Balzac e o imaginário, ensaio sobre <_st13a_personname w:st="on" productid="La Peau">La Peau de Chagrin2 quando Bayard mal completava 23 anos, percebe-se a sua evolução, em coerência com o que ensinava e com que praticava. Não lhe escaparam os mestres Stendhal e Romain Gary, Maupassant, Shakespeare e outros mais, até tombar, reconhecendo e questionando: "Peut-on appliquer la littérature à la psychanalyse?"3.
Este livro é evocado pelo escriba que não o leu, mas consultando as informações da época de sua publicação, resultaram-lhe algumas que são preciosas e dadas pela sua editora ao publico: "Se é freqüente falar de métodos críticas eficazes, é mais raro apresentar os que não funcionam. Propondo (Bayard) um balanço ao método que ele inventou – a literatura aplicada à psicanálise, o autor narra a sua história, seus desígnios, suas experiências e mostra porque ela não tem nenhuma oportunidade de funcionar. Um trabalho de reflexão sobre um método que não funciona não é desprovido de interesse, ele permite, com efeito, estudar com precisão não somente as restrições que exerce sobre o texto e as dificuldades encontradas, mas também das motivações inconscientes e seu núcleo de delírio – em resumo, a interrogar de novo a leitura".
Traçado este itinerário, com a demonstração de que o autor é um personagem literário sui generis, ele mesmo trata de caricaturar-se, ao se referir que as Illusions perdues balzaquianas são um livro que ele percorreu (LP), que ouviu falar (LE) e que o esqueceu (LO) e, rindo de si próprio, assinalou num dos ensaios como LO, ou obra esquecida4.
Melhor do que o crítico Sérgio Augusto, que apodou a obra de Bayard como "A falsa cultura ao alcance de todos", pois, disse ele sobretudo "na presença de um autor, o mais aconselhável é elogiar sua obra sem entrar <_st13a_personname w:st="on" productid="em detalhes. Detalhes">em detalhes. Detalhes diante dos elogios são irrelevantes. E, quanto mais vaidoso o autor, muitíssimos mais relevantes os elogios. Deixar o subconsciente expressar sua relação pessoal com a obra, nem que seja para discorrer apenas sobre a expressividade da capa e a elegância da tipologia, é outro conselho que Bayard oferece à sua clientela; refletir sobre ele é pertinente e necessário"5.
Ora, como na leitura sistemática se prioriza a obra a ser lida em função do tempo e/ou do interesse próximo ou remoto, a relação que se constrói ciência humana/cultura, passa a se inserir dentro do intervalo esboçado e construído do real, com a ficção, nesse determinado espaço.
As coordenadas espaço/tempo passam a ser fundamentais na construção do universo ficcional do leitor, quando esse universo passa a se mostrar aderente aos laços mais tangentes da realidade. E nesse espaço pós-moderno, em que se transita, constantemente, percebemos que a visão do real (=realidade) é, ou pode ser, empanada ou embaçada por uma visão do real, nem tanto real, ou de um simulacro daquele real que é aceito ou adotado ou consentido.
Daí, a ver deste escriba, a valiosa contribuição de Bayard para a construção de uma teoria literária, que seja uma nova leitura do mundo pois quando, provando que não lemos um livro, mas temos apenas percorrido o seu conteúdo, desde que compreendido, ele nos despertará para uma nova criatividade. E ela poderá acender a chama que irá despertar um interesse novo, que não se insulará no leitor, mas, comentado verbalmente ou transmitido pela escritura, será um novo foco de apreciação da mesma obra. Diríamos: re-visitar? re-ler? re-interpretar? re-situar? re-inserir em novo mundo ou, quem sabe, re-colocá-la numa geocrítica mais abrangente, como esboçou Bertrand Westphal, em uma cartografia do heterogêneo, "com as leituras cruzadas e interativas dos textos e de lugares"6.
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1 BAYARD. Pierre, Comment parler des livres que l’on n’a pas lus?, publicação original das Éditions de Minuit, 2007, mas, no mesmo tempo, para alcançar mais divulgação pela Le Grand Livre du Mois, também de Paris.
2 Idem, Balzac et le Troc de l’imaginaire –Lecture de <_st13a_personname w:st="on" productid="La Peau">La Peau de Chagrin, Lettres Moderns – Minard, 1978.
3 Idem, idem, Éditions de Minuit, Paris, 2004, 176p.
4 Catalogue 2007, Les Éditions de Minuit, p. 90.
5 O Estado de São Paulo, Caderno 2, D 4, 30.11.07.
6 Tiphaine Samayault, Cartographie de l’hétérogène (artigo), a propósito da obra de Bertrand Westphal, Géocritique. Réel. Fiction .Space, Éditions Minuit, Paris <_st13a_metricconverter w:st="on" productid="2007, in">2007, in <_st13a_personname w:st="on" productid="La Quinzaine Littéraire">La Quinzaine Littéraire (1.10.07) (lidos apenas comentários e críticas pelo escriba no mencionado artigo a respeito da obra).
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*Advogado do escritório Jayme Vita Roso Advogados e Consultores Jurídicos
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