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O Rio São Francisco e o fato consumado

No Supremo Tribunal Federal tramitam pelo menos quatorze ações questionando a transposição do rio São Francisco. A Bahia iniciou representação naquela Corte, requerendo suspensão da licitação para a obra, de iniciativa do Ministério da Integração Nacional; apontava várias irregularidades no procedimento licitatório.

16/1/2008


O Rio São Francisco e o fato consumado

Antonio Pessoa Cardoso*

No Supremo Tribunal Federal tramitam pelo menos quatorze ações questionando a transposição do rio São Francisco. A Bahia iniciou representação naquela Corte, requerendo suspensão da licitação para a obra, de iniciativa do Ministério da Integração Nacional; apontava várias irregularidades no procedimento licitatório.

Todas as ações judiciais estavam sob a relatoria do ministro Sepúlveda Pertence; com sua aposentadoria, foram redistribuídas para o ministro Menezes Direito. Obtiveram-se várias liminares nesses processos e, durante dois anos, as obras de transposição ficaram paralisadas, até que em dezembro/2006, o Supremo Tribunal Federal avocou para si a competência para processar e julgar os processos em curso; no último dia de funcionamento desse ano, o ministro Sepúlveda Pertence revogou todas as medidas liminares e autorizou o início das obras de transposição. Indeferiu-se tutela <_st13a_personname w:st="on" productid="em Ação Ordinária">em Ação Ordinária sob o argumento de que o favor legal não importava em intervenção no meio ambiente. Esta decisão provisória de Pertence foi mantida recentemente pelo plenário da Corte, apesar do descumprimento de condições impostas, tal como as audiências públicas.

Em certo trecho o relator original diz que:

"somente após o atendimento pelo emprendedor dessas condicionantes, no decorrer do procedimento referente a Licença de Instalação – com a devida rodada de audiências públicas -, poderá o Órgão ambiental federal autorizar a realização de obras (LI), que, só elas, poderão afetar o meio ambiente".

A Corte julgou agravos regimentais de iniciativa do Ministério Público Federal, da OAB e de grupos ambientalistas que questionavam a decisão do ministro Sepúlveda Pertence. Não se observou o princípio da prevenção nas causas que envolvem o ambiente.

O único ministro nordestino, Ayres de Brito, disse que o rio São Francisco está morrendo e precisa ser recuperado antes de se fazer a transposição: "Se formos aplicar o princípio da precaução, as obras teriam que ser paralisadas. Se uma pessoa está doente, não pode doar sangue", assegurou o ministro no seu voto pela suspensão da obra. Entende o ministro que "decisões de tal envergadura deveriam ser discutidas pelo Congresso Nacional", conforme exigência constitucional.

Outro ministro que votou contra a continuidade da obra, Cezar Peluso, alegou que a concessão da liminar não causaria dano ao meio ambiente, porque, se ao final, a ação for julgada improcedente, nada do que foi feito será perdido, diferentemente do que acontece com a continuidade da obra, passível de causar prejuízo irreparável ao meio ambiente.

O terceiro ministro a se posicionar pela preservação do meio ambiente, Mauro Aurélio disse que: "Ou caminhamos no sentido de congelar a situação atual, ou caminhamos no sentido de julgar improcedente a ação desde já".

Na abertura do ano judiciário, em fevereiro/2007, o Fórum Permanente de Defesa do São Francisco, na Bahia, ingressou com recurso no STF contra o entendimento do ministro Sepúlveda Pertence; neste mesmo mês, o Procurador Geral da República recorreu e pediu cassação da licença ambiental concedida; em março/2007, representantes do Acampamento, baseados nos pareceres do Tribunal de Contas da União, ajuizaram Ação Popular no STF contra a transposição; esse órgão fiscalizador dizia que "as graves razões, de lesão ao erário, sobretudo, que impelem a interrupção imediata do processo de licenciamento e do próprio Projeto de Integração"; ainda assim, no mesmo mês, o presidente do IBAMA, concedeu a Licença de Instalação do Projeto de Integração das bacias do São Francisco com o Nordeste Setentrional; em julho/2007, novamente o Ministério Público, através do Procurador Geral da República, requereu em nome do Ministério Público Federal e dos Ministérios Públicos dos Estados da Bahia, Sergipe e Minas Gerais, a paralisação das obras, alicerçado no argumento de que foram descumpridas as condições impostas pelo ministro Sepúlveda Pertence, em dezembro/2006.

A suspensão das obras só aconteceu um ano depois, em dezembro/2007, quando a Justiça Federal, em processo que tramitava na 1ª região, determinou a paralisação, não admitindo decisão do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, responsável pela aprovação do projeto de transposição; todavia, logo depois, ainda em dezembro último, o Supremo Tribunal Federal cassou a tutela concedida pela Justiça Federal; alegava-se que o governo não cumpriu determinações indispensáveis para o prosseguimento da obra, a exemplo das audiências públicas; o próprio relator assegurou que o IBAMA cumpriu "quase que na sua totalidade" as trinta e uma condicionantes de Pertence, deixando de cumprir apenas seis.

As medidas judiciais, uma delas, Ação Cível Originária, contesta o licenciamento ambiental concedido pelo IBAMA e assegura a prática de atos ilegais e lesivos ao erário, ao meio ambiente, à moralidade e ao patrimônio cultural. Outras ilegalidades são enumeradas nas petições judiciais: ausência de consulta às populações, falta de autorização do Congresso Nacional para aproveitamento de recursos hídricos em terras indígenas, inexistência das audiências públicas, de licenças das Prefeituras dos municípios atingidos, falhas e omissões no Estudo de Impacto Ambiental e no Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA).

Fato Consumado

A legislação brasileira assegura às comunidades ribeirinhas o direito de decidir sobre a viabilidade de projetos das bacias hidrográficas. A Lei n°. 9.433/97 (clique aqui), art. n°. 38, admite retirada de água da bacia do rio São Francisco para fora somente se destinada ao consumo humano e animal, ainda que comprovada sua escassez. A Constituição Federal (clique aqui) estabelece competência do Congresso Nacional para aprovar o aproveitamento de recursos naturais de terras indígenas e a obra corta suas terras que nem foram ouvidos, em obediência ao art. n°. 231 da Constituição. Eméritos juristas afirmam que eventual modificação no escoamento de rios, que banham vários Estados, bens da União (é o caso do São Francisco), deve ser definida pelo Congresso Nacional com a sanção do Presidente da República, na forma do inc. V, art. n°. 48 da Constituição.

O tratamento da matéria através de decreto presidencial viola a Constituição, porque altera o patrimônio do povo brasileiro, sem consultá-lo.

O princípio da precaução recomenda paralisação das obras, até que sejam estudadas e avaliadas todas as conseqüências para o meio ambiente, evitando desta forma danos irreversíveis à natureza e aos cofres públicos.

A decisão do STF implicará, futuramente, na aplicação da absurda teoria do fato consumado, definido como resultado de situação excepcional verificada com a incapacidade do Judiciário na entrega, em tempo hábil, da prestação jurisdicional, provocando, neste caso, solução extralegal; esta teoria é demonstração exposta da incompetência do sistema na dicção do direito da parte, situação criada com a concessão de liminar sem observância da irreparabilidade dos danos. Os tribunais entendem que não podem desconstituir situações jurídicas consolidadas pelo tempo, porque não convém a modificação, "sob pena de afrontar valores". Na verdade, é estranha tal prática de poder, pois a morosidade, como justificativa para aplicação da teoria do fato consumado, não se justifica. Ademais, a liminar, normalmente, tem prazo de vigência. Como então se servir da teoria do fato consumado para manutenção de liminar um, dois, cinco anos depois? Clara a incompetência e a falta de gerenciamento da questão pelos tribunais, em nítido descaso com os preceitos legais aplicáveis à espécie.

Assim poderá acontecer com a transposição do rio São Francisco, como já aconteceu com a privatização do sistema Telebrás, com construções de obras públicas, como pontes, portos, aeroportos feitas ao arrepio da lei e mantidas pela aplicação dessa indecorosa teoria.

O uso desta teoria depõe contra a seriedade e eficiência da prestação jurisdicional, mas já se torna lugar comum no dia-a-dia das decisões judiciais sobre educação, concursos, licitação e construção de obras públicas.

O Judiciário viola a lei, porque concede à parte direito sem ter; num segundo momento o Judiciário desrespeita a lei para cicatrizar a situação proibida pela lei.

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*
Desembargador do TJ/BA






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