Migalhas de Peso

O IOF e a inflação

Quem escreve, com certa regularidade, para jornais, revistas ou internet, sempre fica na dúvida sobre o eterno dilema: devo redigir o artigo com um máximo de clareza e simplificação — com isso conseguindo a aprovação de alguns, mas o desprezo de outros — ou, pelo contrário, devo dificultar a compreensão, torturando a ordem usual das palavras, de modo a deixar claro que o autor não é "um qualquer", nem está "ao alcance de todas as inteligências" — como dizia, na capa, cretinamente, um antigo livrinho ensinando inglês para iniciantes. Lendo a destinação do livro muitos deixavam de comprá-lo. A aquisição seria uma admissão de burrice.

16/1/2008


O IOF e a inflação

Francisco César Pinheiro Rodrigues*

Quem escreve, com certa regularidade, para jornais, revistas ou internet, sempre fica na dúvida sobre o eterno dilema: devo redigir o artigo com um máximo de clareza e simplificação — com isso conseguindo a aprovação de alguns, mas o desprezo de outros — ou, pelo contrário, devo dificultar a compreensão, torturando a ordem usual das palavras, de modo a deixar claro que o autor não é "um qualquer", nem está "ao alcance de todas as inteligências" — como dizia, na capa, cretinamente, um antigo livrinho ensinando inglês para iniciantes. Lendo a destinação do livro muitos deixavam de comprá-lo. A aquisição seria uma admissão de burrice.

Todas as profissões gostam de se valorizar pela sofisticação da particular nomenclatura. Isso é bem humano e, em certa medida necessário — em países de medíocre nível cultural —, porque "quem não se valoriza se desvaloriza". Somente aqueles poucos que atingiram o topo das profissões podem se dar ao luxo da comunicação simplificada, sem correrem o risco de passar por "primários". Não mais precisam provar que conhecem a matéria que discutem. Certa vez, um profissional qualquer, que timbrava em ser demasiado modesto, foi censurado por um colega: "Você não é tão importante assim para ser tão modesto!".

Por vezes, autoridades policiais, magistrados, promotores e advogados estão conversando informalmente numa reunião social da qual participam também pessoas completamente fora da área jurídica. Todos se entendem. Apenas um ou outro leigo pede uma explicação jurídica complementar. De repente, aproxima-se um repórter, portando ameaçadora arma, digo, um microfone. Decide fazer algumas perguntas, em linguagem corrente, a um determinado membro do grupo, escolhido ao acaso. Ocorre, então, no entrevistado, uma súbita incorporação, própria de sessão espírita. Ele se converte no mais puro José Frederico Marques, ou outro jurista que mais freqüente. Não fala como minutos antes. Expressa-se só em termos de "juízo de admissibilidade", "pretensão punitiva", "agente", "persecução penal". Preocupa-se tremendamente em não dar o menor escorregão técnico, como se o repórter, embasbacado, fosse membro de uma banca examinadora em busca de um titular. E se o repórter está acompanhado de um cinegrafista em ação é ainda maior a inibição da vítima, atacada de "trismo de maxilar" — contorção involuntária dos músculos da mandíbula, reação usual nos casos de tétano. Toda essa sintomatologia decorre do medo de desapontar, de parecer menos culto. Não se trata tanto de pernosticismo. É mais uma reação — ou inibição — de defesa da reputação profissional.

Na área da Economia, sempre me pareceu cômica a sofisticação expressa nos "dois dígitos". Quando a inflação ainda grassava no país, os economistas de TV costumavam dar enorme ênfase ao perigo de a inflação passar de um para "dois dígitos". Ora, "dois dígitos" de inflação tanto pode significar 10% quanto 99%, Há, obviamente, uma brutal diferença entre ambas. E mínimo é, em qualquer coisa, o aumento de 9% para 10%. Engraçados são também os prognósticos de crescimento da economia, do país ou do mundo, e também outras projeções relacionadas com a riqueza.

Mesmo Alan Greenspan, o grande "mago" que comandou o Federal Reserve — com isso influenciando todas as Bolsas de Valores —, não resiste, em seu recente best-seller, à tentação de fazer prognósticos de longo prazo. "Em tantos anos" ocorrerá isso ou quilo. Diz que previsões são possíveis tendo em vista o que ocorreu no passado, forja do futuro. De fato, se o mundo e os países continuarem os mesmos, as coisas se passarão, em tese, como antes. Ocorre que o mundo altera-se continuamente. Se o planeta, na parte física, ambiental, se modifica — e isso ocorrerá de forma crescente, com as modificações climáticas — a economia, que não é uma ciência exata, também se altera, jogando as projeções no lixo.

Mesmo permanecendo estável o clima, os homens mudam. São mais imprevisíveis que os ventos. E não é necessário que isso ocorra em grande escala. Mesmo um único homem — por exemplo Bush, Bin Laden, Ehud Olmert, Chávez, Mahmoud Ahmadinejad — pode, com uma simples ordem precipitada — "Fomos atacados! Ou pelo menos insultados! Revidem!" —, desencadear um conflito local — em seguida mundial —, de resultado devastador, anulando todas as previsões econômicas. Um pensador já chegou a negar o status de "ciência" à Economia, considerada, oficialmente, uma "ciência social". Dizia ele que ciência implica previsibilidade, relação rigorosa de causa e efeito. E como dizer que a Economia, dependente do imprevisível ser humano, obedeça à qualquer relação rígida de causa e efeito? Há muito "chute" — com perdão pelo termo — nessa área, embora com chuteiras impregnadas de erudição.

Dito tudo isso, confessada aqui a opção pela simplificação — recomendável porque a atenção das pessoas é tão curta quanto sua paciência, seja qual for sua inteligência — vejamos o que ocorre, no Brasil, no momento, a respeito do IOF como parcial substituto da CPMF. Teria ela função arrecadadora ou seria apenas "instrumento de política monetária".

Em termos "estritamente" técnicos — ou "estreitamente" técnicos, conforme o interesse de cada um, contribuinte ou governo (vide art. n°. 65 do Código Tributário Nacional - clique aqui -) — o IOF teria como missão precípua, ou talvez exclusiva, o exercício de uma "política monetária". Juridicamente, não seria função do IOF, Imposto sobre Operações Financeiras, arrecadar impostos; transferir parcela da riqueza privada para os cofres públicos. Sua finalidade teórica seria outra, de estrita intervenção política relacionada com fenômenos financeiros de rápida evolução, exigindo pronta intervenção governamental (câmbio, combate à inflação ou deflação e outros problemas urgentes. O IOF poderia, teoricamente, ser utilizado até mesmo para o governo perder dinheiro, se com isso resultasse um proveito maior que a perda desse dinheiro. Não é, o IOF, um instrumento para extrair riqueza do setor privado, tanto assim que pode ser aumentado sem aprovação do Congresso Nacional, o que contraria a norma geral das democracias de que os impostos dependem, para serem exigíveis, da aprovação do povo, isto é, do Poder Legislativo. E no caso do recente aumento das alíquotas do IOF não houve tal aprovação, nem mesmo mera consulta. Se prevalecer esse entendimento — ou "estreita" hermenêutica, na opinião do governo — no STF, a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) Nº. 4002, movida pelo DEM tem alta probabilidade de sair vencedora.

Se isso eventualmente ocorrer, o atual Ministro da Fazenda se arrependerá da sua impulsividade na escolha do percentual de 0,38 % de "alíquota adicional", o mesmo e exato percentual que existia quando da vigência da CPMF. Como o referido Ministro — um homem inegavelmente honrado e preocupado com o país —, nas suas declarações logo após a não-prorrogação da CPMF se mostrava inconformado com a perda da contribuição, prometendo voltar à carga, embora por outros meios, será fácil aos juristas da oposição argumentar que a “alíquota adicional’ de 0,38% nada mais é que, junto com outras medidas, a recuperação dos mesmos 0,38% contidos na CPMF. Em suma, a alteração do IOF visaria apenas aumentar a arrecadação, mera teimosia sem apoio legal.

O problema, para o STF, em termos jurídicos, se complicou um pouco quando o mesmo Ministro da Fazenda, depois de já em vigor a "alíquota adicional", prestou declarações dizendo que o aumento da IOF estaria é de olho na inflação, não na recuperação da arrecadação perdida. Como as pessoas têm, cada vez mais, comprado, a crédito, bens de consumo durável, isso estimula os fabricantes e lojistas a aumentar seus preços — gerando um certo acréscimo de inflação. Assim — prossegue o Ministro —, levando em conta o fator "elevação dos preços", haveria, no aumento do IOF, como que "embutida", uma consideração de "política monetária" que daria legitimidade jurídica ao aumento <_st13a_personname w:st="on" productid="em referência. Além">em referência. Além do mais — argumentará o governo na ADI n°. 4002 —, como separar, com absoluta nitidez, o exercício da "política monetária" da tarefa de bem administrar o país? Administrar significa também gastar.

De minha parte, como mero opinante desautorizado da área tributária, diria que a real motivação do aumento do IOF foi a de reaver a arrecadação perdida com a não-prorrogação da CPMF. O percentual de 0,38% foi uma coincidência sintomática. Note-se que quando vigorava a CPMF o governo nunca falou em prevenir a inflação via IOF.

Como simples cidadão, porém, distante de considerações técnico-jurídicas, não me oponho a que prevaleça o aumento do IOF, porque a perda da arrecadação foi traumática, súbita, e trará prejuízos ao nosso país, um tanto desorganizado em tudo, inclusive na área financeira e tributária. Um orçamento foi montado contando (?!) com a CPMF. Será problemático, muito pior que a ilegalidade — e altamente inflacionário —, se o governo se vir obrigado a emitir moeda para compensar o grande rombo causado pela perda da CPMF. E o corte na ajuda mensal aos pobres incentivará a criminalidade de rua. Isso sem falar no velho problema da imensa disparidade de renda existente no Brasil. Quando o governo, desde os tempos de Fernando Henrique Cardoso, resolve diminuir um pouco essa disparidade de ganho os mais abonados, indignados, caem em cima do governo desferindo golpes com um exemplar da Constituição Federal (clique aqui). Os mais afortunados concordam, e até pregam contra essa desigualdade excessiva, mas com uma condição: que o dinheiro não saia do bolso deles. Sairiam, então, de onde? Dos mais pobres? Do governo? Governo, todos sabem, não produz riqueza, apenas a encaminha, administra. E dizer que o problema da perda da arrecadação deve ser solucionado com cortes de despesas é problemático. Em quase tudo isso implica em problemas legais.

Encerrando, e aproveitando a fala do Ministro da Fazenda — que argumenta com a necessidade de conter a inflação, via IOF, onerando o crédito —, cabe insistir, aqui, na tecla, hoje totalmente "fora de moda", de que inflação também se combate com redução na imissão de moeda. Será que a "teoria quantitativa da moeda" perdeu totalmente a validade? A "moda", hoje, é só se falar nos juros, como se tudo se comprasse a crédito, o que não é verdade. Havendo uma restrição na emissão de moeda (cédulas e mesmo moeda metálica), a moeda fica mais valorizada, com um efeito anti-inflacionário que neutralizaria, pelo menos em parte o efeito inflacionário da maior procura de bens compráveis pelo crediário com juros baixos. Uma coisa compensaria a outra.

Juros baixos estimulam o consumo de bens duráveis. Fábricas produzem mais, contratam mais, pagam mais impostos. Se não pagam, que se aperfeiçoe a fiscalização, tanto quanto possível dispensando-a, o principal mérito da CPMF. O país cresce mais depressa com juros baixos. Tudo é "mais". O vice-presidente José Alencar está certo desde o começo. Se a euforia consumidora e produtiva causa um pequeno aumento de preços a emissão mais reduzida de moeda, ou diminuição do meio circulante, contrabalançará esse efeito inflacionário. Não há porque dificultar o consumo e, conseqüentemente a produção.

Se estou errado, perdão. Mas que se comprove, com fortes argumentos, a vantagem da pasmaceira, do desemprego e da imobilidade produtiva.

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*Desembargador aposentado do TJ/SP e Associado Efetivo do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo








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