Os Contratos em Moeda Estrangeira ou Indexados à Variação Cambial no Ordenamento Jurídico Brasileiro
Walter Douglas Stuber*
A questão ora analisada deve ser examinada à luz das disposições aplicáveis do Novo Código Civil (NCC), instituído pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, cuja vigência deverá iniciar-se a partir do dia 11 de janeiro de 20031, quando tiver sido empossado o novo Presidente da República. A matéria é disciplinada pelos artigos 315 a 318 e 478 a 480 do NCC, disposições essas que não encontram paralelo no Código Civil de 1916.
Como regra geral, o NCC estipula que as dívidas em dinheiro devem ser pagas em moeda corrente, ou seja, em reais, e pelo valor nominal, na respectiva data de vencimento2. No caso do pagamento ser realizado em prestações sucessivas, as partes podem adotar a cláusula de escala móvel, convencionando que as referidas prestações serão aumentadas progressivamente mediante atualização monetária3. Para evitar as injustiças que ocorreram no passado, por força da desvalorização da moeda, o legislador adotou a teoria da imprevisão, prevendo expressamente que, quando ocorrer desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o valor do momento de sua execução, por motivos imprevisíveis, a parte prejudicada poderá recorrer ao Poder Judiciário, solicitando a correção desse montante, de modo a refletir, na medida do possível, o valor real da prestação4. Reiterando o princípio que já era reconhecido no ordenamento jurídico anterior, o NCC estabelece que são nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, bem como para compensar a diferença entre o valor da moeda estrangeira e sua contrapartida em moeda nacional (variação cambial), observadas as exceções admitidas na legislação especial5.
Ao consagrar a teoria da imprevisão, o NCC permite a resolução dos contratos de execução continuada ou diferida em caso de desequilíbrio entre a prestação e a contraprestação, isto é, se e quando o cumprimento da obrigação originalmente pactuada tornar-se excessivamente oneroso para uma das partes e extremamente vantajoso (enriquecimento sem causa) para a outra parte, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. Obviamente, essa resolução deve ser pleiteada em juízo. Para evitar a resolução do contrato, o réu poderá oferecer-se a modificar as condições de maneira eqüitativa, ou seja, restabelecendo o equilíbrio contratual. Se as obrigações contratuais couberem apenas a uma das partes, a parte prejudicada poderá pleitear que sua prestação seja reduzida ou que seja alterado o modo de execução dessas obrigações, a fim de evitar a onerosidade excessiva6.
Muito se discutirá nos tribunais os contornos e limites da expressão "extrema vantagem" propugnada pelo já referido artigo 478. Entretanto, a Lei de Defesa do Consumidor7 possui dispositivos8 que podem ser utilizados subsidiariamente, nesse trabalho de delimitação. Além da "extrema vantagem" o artigo 478 também exige para caracterização da teoria da imprevisão a ocorrência de "acontecimentos extraordinários e imprevisíveis". Em geral, nossos tribunais não tem entendido, eventos de natureza econômica como sendo extraordinários e imprevisíveis.
A legislação especial atualmente em vigor, a que se refere o NCC em seu artigo 318, é a seguinte:
Decreto-Lei nº 857, de 11 de setembro de 1969 (DL 857/1969), que consolida a legislação sobre moeda de pagamento de obrigações exequíveis no Brasil, cujo teor será por nós comentado mais adiante;
Lei nº 8.880, de 27 de maio de 1994, que dispõe sobre o Programa de Estabilização Econômica, o qual introduziu as medidas necessárias para a adoção do Plano Real. Em seu art. 6º, a Lei 8.880/94 determina que é nula de pleno direito a contratação de reajuste vinculado à variação cambial, exceto quando expressamente autorizado por lei federal e nos contratos de arrendamento mercantil celebrados entre pessoas residentes e domiciliadas no País, com base em captação de recursos provenientes do exterior9;
Lei nº 10.192, de 14 de fevereiro de 2001, que dispõe sobre medidas complementares ao Plano Real. Segundo o art. 1º da Lei 10.192/2001, as estipulações de pagamento de obrigações pecuniárias exeqüíveis no território nacional deverão ser feitas em real, pelo seu valor nominal, e o parágrafo único do aludido art. 1º veda, sob pena de nulidade, quaisquer estipulações de: (a) pagamento expressas em, ou vinculadas a ouro ou moeda estrangeira, ressalvado o disposto nos arts. 2º e 3º do DL 857/1969, e na parte final do art. 6º da Lei 8.880/1994; (b) reajuste ou correção monetária expressas em, ou vinculadas a unidade monetária de conta de qualquer natureza; e (c) correção monetária ou de reajuste por índices de preços gerais, setoriais ou que reflitam a variação dos custos de produção ou dos insumos utilizados nos contratos com prazo inferior a um ano10.
O DL 857/1969 trata diferentemente os contratos internos e os contratos internacionais. Aos contratos internos, aplica-se a regra geral, contida no art. 1º, segundo a qual são nulos de pleno direito os contratos, títulos e quaisquer documentos, bem como as obrigações que exeqüíveis no Brasil, estipulem pagamento em ouro, em moeda estrangeira, ou, por alguma forma, restrinjam ou recusem, nos seus efeitos, o curso legal do real, que é a unidade do Sistema Financeiro Nacional utilizada como meio de pagamento dotado de poder liberatório em todo o território nacional11. Uma das maneiras de restringir, nos seus efeitos, o curso legal do real seria corrigir os contratos internos de acordo com a variação cambial, como por exemplo adotar-se a cotação do real em relação ao dólar norte-americano como cláusula de reajuste do valor pactuado em moeda corrente nacional (moeda de conta12).
As exceções a essa regra geral são representadas pelos contratos internacionais e estão relacionadas nos arts. 2º e 3º do DL 857/6913, podendo ser classificadas da seguinte forma:
contratos objetivamente internacionais, assim considerados em decorrência do seu objeto, compreendendo os contratos de compra e venda internacional (contratos e títulos referentes a importação ou exportação de mercadorias); os contratos de financiamento ou de prestação de garantias relativos às operações de exportação de bens de produção nacional, vendidos a crédito para o exterior; e os contratos de câmbio (contratos de compra e venda de câmbio em geral); contratos subjetivamente internacionais, em que uma das partes contratantes (o sujeito do contrato) é uma pessoa física ou jurídica residente, domiciliada ou com sede no exterior, abrangendo os empréstimos e quaisquer outras obrigações cujo credor ou devedor seja pessoa residente ou domiciliada fora do Brasil. Todavia, os contratos de locação de imóveis situados no território nacional são sempre considerados contratos internos, ainda que ambas as partes sejam pessoas residentes ou domiciliadas no exterior, e estão sujeito à regra geral; e contratos acessoriamente internacionais, que inclui os contratos que tenham por objeto a cessão, transferência, delegação, assunção ou modificação das obrigações referidas no item (ii) acima, ainda que ambas as partes contratantes sejam pessoas residentes ou domiciliadas no Brasil. Para melhor ilustrar, citemos como exemplo de contrato internacional por acessoriedade o contrato de repasse de empréstimo externo. O contrato de repasse é celebrado entre duas pessoas residentes ou domiciliadas no Brasil (um banco brasileiro, como credor, e uma empresa brasileira, como devedora), mas preserva a sua característica internacional porque se origina de um contrato de empréstimo externo firmado entre uma instituição financeira estrangeira, como credora, e esse banco brasileiro, como devedor. O contrato de empréstimo externo é um contrato subjetivamente internacional. Nessa modalidade de operação, o banco brasileiro capta os recursos em moeda estrangeira da instituição financeira internacional, exclusivamente com a intenção de transferir esses recursos já convertidos em reais ao mutuário final, que é a empresa brasileira, e a empresa brasileira assume o ônus inerente à variação cambial que vier a ocorrer até a data do efetivo pagamento do empréstimo externo (cláusula de paridade cambial).
Com base na legislação vigente, concluímos que os contratos internacionais podem estipular pagamento em moeda estrangeira ou serem indexados à variação cambial, desde que observados os postulados da legislação cambial vigente para fins de remessa ao exterior. Os contratos internos devem ser sempre expressos em reais e somente podem estipular correção monetária ou reajuste por índices de preços gerais, setoriais ou que reflitam a variação dos custos de produção ou dos insumos utilizados, se o prazo de duração for igual ou superior a um ano. Logo, os contratos internos com periodicidade inferior a um ano não podem ter o respectivo valor corrigido ou atualizado, devendo ser executados pelo seu valor nominal. Consequentemente, os contratos internos não podem ser expressos em moeda estrangeira, nem ser indexados à variação cambial, a menos que tenham custos de produção ou dos insumos utilizados cotados em moeda estrangeira e uma periodicidade igual ou superior a um ano. As mesmas regras aplicam-se aos contratos em que uma das partes é órgão ou entidade da Administração Pública direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios14.
Acreditamos que a situação cambial ora enfrentada é temporária e atípica e deverá melhorar substancialmente, tão logo sejam superados os fatores internos e externos acima mencionados. Todavia, se esse cenário anômalo continuasse a deteriorar-se e ficasse caracterizado como acontecimento extraordinário e imprevisível, afetando toda a atividade econômica do País, as empresas devedoras poderiam ter os elementos necessários para comprovar que o cumprimento das prestações originalmente pactuadas em moeda estrangeira ou indexadas à variação cambial seria excessivamente oneroso. Nessa hipótese, as empresas devedoras poderiam renegociar as condições financeiras com os seus respectivos credores, para restabelecer o equilíbrio do contrato ou, em caso de impasse, tais empresas teriam o direito de recorrer à esfera judicial para pleitear a resolução do contrato, a redução da prestação ou o modo de execução da obrigação, a fim de evitar a onerosidade excessiva, com fundamento na teoria da imprevisão reconhecida pelo NCC. Alternativamente, as partes, de comum acordo, também poderiam submeter a questão à arbitragem.
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1 - Conforme dispõe o art. 2.054 do Novo Código Civil, publicado em 11 de janeiro de 2002: "Este Código entrará em vigor um ano após a sua publicação, ficando, desde então, revogados o Código Civil, de 1º de janeiro de 1916, a Parte Primeira do Código Comercial, de 25 de junho de 1850, e toda a legislação civil e mercantil por esta Lei abrangida, ou com ela incompatível, ressalvado o disposto no presente Livro".
2 - "Art. 315. As dívidas em dinheiro deverão ser pagas em moeda corrente e pelo valor nominal, no vencimento, salvo o disposto nos artigos subseqüentes."
3 - "Art. 316. É lícito convencionar o aumento progressivo de prestações sucessivas."
4 - "Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, o juiz poderá corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quando possível, o valor real da prestação."
5 - "Art. 318. São nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, bem como para compensar a diferença entre o valor desta e o da moeda nacional, excetuados os casos previstos na legislação nacional."
6 - Nesse sentido, os artigos 478 a 480 do Novo Código Civil dispõem que:
"Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar, retroagirão à data da citação."
"Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato."
"Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva."
7 - Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990.
8 - "Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços:
Parágrafo 1º. Presume-se exagerada a vantagem que: I – Ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence; II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual; III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato; o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.
9 - A regulamentação aplicável permite a indexação do contrato de arrendamento mercantil ao dólar norte-americano ou a qualquer outra moeda estrangeira, desde que sejam atendidos três requisitos básicos: (i) os recursos destinados à operação devem ter sido captados no exterior em moeda estrangeira; (ii) com a finalidade específica de adquirir o bem arrendado; e (ii) a dívida ainda não pode ter sido quitada junto ao credor estrangeiro. O art. 38 do Regulamento anexo à Resolução nº 980, de 13 de dezembro de 1984, do Conselho Monetário Nacional, emitida pelo Banco Central do Brasil, estabelece que:
"Art. 38. As sociedades de arrendamento mercantil e as instituições financeiras autorizadas a realizar operações de arrendamento mercantil somente podem transferir às arrendatárias a responsabilidade pela paridade cambial, no caso de os bens arrendados serem adquiridos com recursos provenientes de empréstimos contraídos, direta ou indiretamente, no exterior."
10 - Nos termos do caput do art. 2º da Lei nº 10.192, de 14 de fevereiro de 2001, admite-se a estipulação de correção monetária ou de reajuste por índices de preços gerais, setoriais ou que reflitam a variação dos custos de produção ou dos insumos utilizados nos contratos de prazo de duração igual ou superior a um ano. O § 1º do referido art. 2º esclarece que é nula de pleno direito qualquer estipulação de reajuste ou correção monetária de periodicidade inferior a um ano.
11 - O art. 1º do Decreto-Lei nº 857, de 11 de setembro de 1969, ainda se refere ao cruzeiro, que na época era a moeda corrente nacional:
"Art. 1º. São nulos de pleno direito os contratos, títulos e quaisquer documentos, bem como as obrigações que exequíveis no Brasil, estipulem pagamento em ouro, em moeda estrangeira, ou por alguma forma, restrinjam ou recusem, nos seus efeitos, o curso legal do cruzeiro."
12 - Conforme a doutrina, moeda de conta é a escolhida pelas partes para determinar o quantitativo da prestação pecuniária, ou seja, é a unidade de medida da obrigação a pagar. Moeda de pagamento é aquela na qual o pagamento deve ser realizado, independentemente da espécie monetária em que o débito se encontra expresso, ou seja, é a modalidade de execução da obrigação. Em um mesmo contrato, moeda de conta e moeda de pagamento podem não coincidir entre si. Assim, as partes poderiam convencionar o dólar norte-americano (moeda estrangeira) como moeda de conta e o real (moeda nacional) como moeda de pagamento.
13 - Os arts. 2º e 3º do Decreto-Lei nº 851, de 11 de setembro de 1969, estabelecem que:
"Art. 2º. Não se aplicam as disposições do artigo anterior:
I – aos contratos e títulos referentes a importação ou exportação de mercadorias;
II – aos contratos de financiamento ou de prestação de garantias relativos às operações de exportação de bens de produção nacional, vendidos a crédito para o exterior;
III – aos contratos de compra e venda de câmbio em geral;
IV – aos empréstimos e quaisquer outras obrigações cujo credor ou devedor seja pessoa residente e domiciliada no exterior, excetuados os contratos de locação de imóveis situados no território nacional;
V – aos contratos que tenham por objeto a cessão, transferência, delegação, assunção ou modificação das obrigações referidas no item anterior, ainda que ambas as partes contratantes sejam pessoas residentes ou domiciliadas no País.
Parágrafo único. Os contratos de locação de bens móveis que estipulem pagamento em moeda estrangeira ficam sujeitos, para sua validade a registro prévio no Banco Central do Brasil."
"Art. 3º. No caso de rescisão judicial ou extrajudicial de contratos a que se refere o item I do artigo 2º deste Decreto-lei, os pagamentos decorrentes do acerto entre as partes, ou de execução de sentença judicial, subordinam-se aos postulados da legislação de câmbio vigente."
14 - Consoante o art. 3º da Lei nº 10.192, de 14 de fevereiro de 2001:
"Art. 3º. Os contratos em que seja parte órgão ou entidade da Administração Pública direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, serão reajustados ou corrigidos monetariamente de acordo com as disposições desta Lei, e, no que com ela não conflitarem, da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.
§ 1º. A periodicidade anual nos contratos de que trata o caput deste artigo será contada a partir da data limite para apresentação da proposta ou do orçamento a que essa se referir.
§ 2º. O Poder Executivo regulamentará o disposto neste artigo."
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* advogado especializado em direito financeiro e mercado de capitais e sócio-fundador do escritório Amaro, Stuber e Advogados Associados.