O Direito do Trabalho de volta ao futuro
Márcia Novaes Guedes*
A iniciativa da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho) através de sua Diretoria Cultural, representada pela incansável Juíza Maria de Fátima Stern e a Presidente do Conselho de Escolas de Magistratura do Trabalho CONEMAT, Graça Maria Freitas e a Escola de Aperfeiçoamento de Magistrados representada pelo Ministro Carlos Alberto de Paula, mobilizou cerca de 200 operadores do direito trabalhista de todos os cantos do país e sem patrocínio, pagando do próprio bolso as despesas com viagem e estadia com entusiasmo de quem sabe que está fazendo história, aprovaram cerca de 90 propostas de enunciados. O evento contou com o decisivo apoio do TST o que reforça a perspectiva das proposições serem acolhidos pelos Juízes e Tribunais trabalhistas na uniformização da súmula da jurisprudência.
Durante 90 dias, a Anamatra recebeu cerca de 300 propostas de enunciados que foram selecionados por uma comissão científica e agrupados em temas que resultaram na formação de sete Comissões:
1. Direitos Fundamentais e Relações de Trabalho;
2. Contrato de Emprego e Outras Relações de Trabalho;
3. Lides Sindicais __ Direito Coletivo;
4. Responsabilidade Civil <_st13a_personname w:st="on" productid="em Danos Patrimoniais">em Danos Patrimoniais e Extra-patrimoniais;
5. Acidente do Trabalho e Doença Ocupacional;
6. Penalidades Administrativas e Mecanismos Processuais Correlatos;
7. Processo na Justiça do Trabalho.
Os interessados tiveram a liberdade de encaminhar propostas para as diversas Comissões, posteriormente escolhendo participar dos debates daquela que melhor conviesse.
No discurso de abertura, tecido nos delicados fios do humanismo, o Ministro aposentado Luciano de Castilho lembrou que nas proposições vazadas pelos arautos do liberalismo econômico encontra-se o desejo da liberdade de contratar, na esfera do trabalho subordinado, contra a lei, e advertiu: no Brasil não se pode falar nem pensar o direito sem se desligar da trágica realidade ainda vergada sob o peso de 4 séculos de escravidão, impregnada pela visão do "mazombo", colonizador que entrou de costas, desejoso de fazer riqueza fácil e rapidamente retornar à metrópole. E, invocando a famosa ilação de Santiago Dantas entre Dom Quixote, o personagem de Miguel de Cervantes e seus moinhos de ventos, recordou que o Brasil precisa da visão quixotesca para enfrentar a desigualdade social. Nesse sentido, a norma jurídica, em especial a trabalhista, deve ser interpretada na sua dimensão mais ampla, como a variante na formação do consenso, indispensável para a sobrevivência das relações sociais democráticas.
Os dois dias que se seguiram à abertura da Jornada foram de intenso trabalho das Comissões reunidas nas salas onde funcionam as turmas do TST, e o resultado é de alta qualidade jurídica e social. A Comissão de Direitos Humanos e Relações de Trabalho contou com a participação de João Humberto Cesário, Jorge Souto Maior, Leonardo Wandelli e Grijalbo Fernandes Coutinho, Juízes conhecidos no cenário nacional notadamente por suas posições em defesa dos direitos humanos, e, também, dos professores/doutores, convidados, Aldacy Rachid Coutinho e Cristiano Paixão. Essa Comissão levou à apreciação da plenária e obteve aprovação de enunciados balizadores do direito legislado e aplicado, começando pela questão essencial da colisão de direitos fundamentais que envolva matéria patrimonial e dignidade humana. Ficou decidido que na solução do conflito, o Juiz deve interpretar e aplicar a norma fazendo prevalecer a dignidade, vez que, os direitos constitucionais trabalhistas inspiram relações de precedência condicionadas em face de direitos de ordem patrimonial ou econômica.
A partir daí, a equação foi invertida, o ser humano é o valor-fonte da experiência jurídica e tem precedência sobre o capital. Assim, a Constituição de 1988 (clique aqui), que, rompeu com o pacto liberal (pacta sunt servanda) e adotou a fraternidade da justiça, a valorização do trabalho e a dignidade humana como paradigmas do ordenamento jurídico, parece que, finalmente, vai entrar <_st13a_personname w:st="on" productid="em vigor. Todas">em vigor. Todas as demais propostas de enunciados aprovados na seqüência pela Comissão de direitos fundamentais têm a dignidade humana como categoria e critério de precedência. O que, talvez, para a grande maioria das pessoas possa ser o óbvio ululante, para juristas toma feições (quase) de revolução. Assim, no que toca ao direito à intimidade, a revista íntima ou não (aquela feita aos objetos pessoais, bolsas e bolsos) foi abolida.
A revista sempre foi aceita e defendida pela maioria dos Juízes e Tribunais trabalhistas como legítimo exercício do poder disciplinar do empregador. O direito de propriedade, portanto, prevalecia sobre a dignidade humana e o princípio da boa fé presente nos contratos aplicava-se apenas ao empregado, sempre sob suspeita de estar surrupiando algo da empresa. Os argumentos em defesa desse impudico poder de "vigiar e punir" do proprietário, mal encobrem sua própria origem, enraizada no sistema escravocrata, onde o sinhô dominava seres e coisas e os escravos eram mercadorias no processo produtivo. E mesmo com os mais modernos recursos criados pela tecnologia de controle e segurança sem constranger a pessoa, o Judiciário, ainda, não tinha se dado conta que a senzala e a casa grande subsistiam na revista que submete, humilha e constrange diariamente, na saída do trabalho, milhares de trabalhadores que agem de boa fé. A prevalecer o novo entendimento, aprovado na plenária da histórica Jornada, a revista, que é violação da intimidade, se realizada, torna passível de condenação em danos morais o infrator.
Todas as formas de discriminação além daquelas já constitucionalmente previstas como a intolerância por raça, sexo, idade, bem como o sofrimento no trabalho foram vigorosamente condenadas. A plenária aprovou um enunciado que recebeu o maior número de propostas apensadas e abarcou também a discriminação decorrente de doença, assédio moral e assédio sexual. Dessa forma, toda vez que a dispensa do empregado dissimular violação da dignidade, constituindo-se em ato arbitrário ou abuso de direito, deve ser decretada sua nulidade assegurando-se o direito de reintegração ao emprego. Em seguida, aliviou-se sobremaneira o encargo da vítima de provar os fatos em juízo, abrindo-se a possibilidade de inversão do ônus da prova, devolvendo ao empregador a obrigação de provar que com a sua conduta não violou direito fundamental, desde que as alegações da vítima estejam fundadas em indícios razoáveis.
Depois de um século de lutas, finalmente, a conduta anti-sindical, considerada crime em vários países da Europa, recebeu tratamento adequado com a aprovação da proposta de enunciado defendida pelo Juiz Grijalbo Fernandes Coutinho, importante liderança do movimento associativo dos magistrados. Vencendo as ponderações contrárias, a plenária aprovou que as greves atípicas e políticas, realizadas por trabalhadores, são constitucionais, pois a constituição não reduziu a definição da greve, ao contrário, conferiu aos trabalhadores a mais ampla liberdade para deliberarem acerca da oportunidade da manifestação e dos interesses a serem defendidos. Assim, a greve não se esgota com a paralisação das atividades, mas na sua execução envolve piquetes, ocupação do local de trabalho, a "operação tartaruga" e, até mesmo, a defesa de bandeiras mais amplas ligadas à democracia e à justiça social.
A terceirização e o vigente enunciado 331 do TST que a chancela, sofreram um golpe fatal. A nova orientação recomenda que a Justiça do Trabalho, vocacionada para a proteção do ser humano, deve rejeitar o modelo de relação social que transforma o trabalhador em mercadoria, a coisificação do ser humano, declarando nula toda e qualquer forma de intermediação de mão-de-obra e mantendo--se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, seja na atividade-fim, seja na atividade-meio da empresa. A nova proposta de enunciado, portanto, restringe a terceirização àquela velha e legítima possibilidade prevista na Lei n°. 6.019, de 3.1.<_st13a_metricconverter w:st="on" productid="1974, a">74 (clique aqui), a qual permite a contratação temporária para fins de atender necessidade transitória da empresa urbana de substituição de seu pessoal regular e permanente (férias, licença gestante) ou a acréscimo extraordinário de serviço (vendas de Natal e de final de ano), mantendo-se em todo caso, a equidade da remuneração e a responsabilidade solidária entre as empresas.
O mundo mudou. Organizar empresa para fornecer mão-de-obra à outra, de modo permanente, alugando gente como se fosse coisa, era conduta ética e juridicamente reprovada. Juristas consideravam nociva essa prática porque frustrava, de modo fraudulento, o direito assegurado pela legislação do trabalho. Daí que a reputavam crime contra a Organização do Trabalho, previsto no art. n°. 203 do Código Penal brasileiro (clique aqui). A partir dos anos oitenta, no entanto, teve início um violento processo de reestruturação das organizações, onde o assédio moral foi empregado como expediente eficaz para o enxugamento e modernização das empresas e implantar a terceirização. A primeira onda, para usarmos a linguagem escorregadia da mentalidade a breve tempo, terceirizou os serviços gerais (limpeza, manutenção de prédios e refeitórios). A segunda onda englobou os serviços de apoio (departamento de pessoal e a informática). A terceira onda começou com a produção, abraçou a logística e já atingiu o cérebro das organizações, que, delegaram sua estratégia para consultores. Do enxugamento, salvaram-se alguns gerentes, venceu a esperteza, a mesma que também salvou a maioria dos sobreviventes de Auschwitz, onde quem era temido era ipso facto um candidato a sobreviver.
Com a terceirização, criou-se um "mundo dos gerentes", minoria de poderosos privilegiados que contratam, demitem e controlam as terceirizadas, e, muitas vezes, empregam o psicoterror no trabalho para livrar-se dos indesejados e mostrar o modelo a ser seguido. Até ontem, conhecíamos as razões técnicas que fomentaram a terceirização: focar todos os esforços na atividade-fim da organização Mãe, deixando para outras as atividades-meio e de apoio, driblar a legislação trabalhista e, de quebra, enfraquecer o movimento reivindicatório dos trabalhadores com a fragmentação das atividades. Mas, coincidentemente no dia de abertura da histórica Jornada ficamos sabendo por um irreverente cronista de Carta Capital (21.11.07), que, um colunista do The New York Times descobriu o que realmente está por detrás do movimento de terceirização, e, inacreditavelmente nada tem a ver com a racionalidade econômica. A verdade é que a terceirização seria fruto de uma busca espiritual, cujo objetivo é atingir o nirvana, a libertação, a transcendência, portanto, as novas tecnologias estariam nos fazendo passar da individualidade para a "consciência universal".
Conforme nos detalha o cronista de Carta Capital, Thomaz Wood Jr, tudo teria começado com uma sedutora e romântica relação iniciada com a compra de um GPS, dessa forma, sua orientação geográfica foi terceirizada de sua mente, sem qualquer esforço, para um poderoso sistema de satélites. Bem, essa percepção, que acreditamos derivar da teoria da diferenciação de Niklas Luhmann, conhecida como autopoiesi na qual as organizações pensam, se auto-reproduzem e são auto-comunicantes, o fez compreender, também, que era possível terceirizar todo tipo de atividade mental e realizar a grande mágica da tecnologia de informação, ou seja, substituir o cérebro humano por sistemas, algoritmos e redes. Bloqueio para escrever? Basta copiar a Wikipedia. Dificuldades para desenvolver o gosto musical? Conecte o iTunes. Indecisão para escolher um livro? Consulte a Amazon. Faltam amigos? Entre no Orkut.
Com a eficiência cibernética, prossegue o cronista, a memória tornou-se supérflua, desnecessária mesmo, já que com o sistema de pesquisa google basta digitar a palavra-chave e a verdade jorra da fonte inesgotável como coelhos da cartola. Autonomia, independência de opinião e pensamento, além de muito complicados, perderam a importância e o valor que tinham, pois a cada dia ficamos mais próximos do tempo em que todos estarão "unidos por uma única mente coletiva" a nos orientar sobre os nossos gostos, preferências, desejos, repulsa e ódio. O novo mundo está a dois passos, conclui o cronista, o trabalho, o gosto e as decisões, tudo terceirizado. Sai de cena Adam Smith com a sua economia política com vínculos ético-filosóficos que contaminam a pureza científica, com valores morais; é o fim da era do "Homo economicus" e entra Paulo Coelho, inaugurando a era do "Homo tertius".
Os Juízes fundamentalistas e quixotescos que movimentam moinhos de vento com decisões orientadas pelos direitos fundamentais da pessoa humana, voltados para o futuro, acertaram um golpe decisivo na avançada "meditação" do capital em busca do nirvana pela via da terceirização. E, com as recentes descobertas dos novos campos de petróleo no país, que o colocam em posição privilegiada e o transformam em destino preferencial de investimentos globais, esses Juízes deverão fazer tesouro do arrependimento que hoje padecem as maiores petroleiras privadas do mundo, por terem enxugado sua força de trabalho em um total de 500 mil trabalhadores nos últimos 20 anos, pois levarão cerca de 10 anos para reverter essa situação.
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*Juíza Federal do Trabalho. Doutora em DT pela Universidade de Roma - Tor Vergata. Membro da AJD - Associação Juízes para a Democracia
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