Ainda o caso Cunha Lima
Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues*
Como amplamente divulgado, o réu decidiu renunciar ao mandato às vésperas de seu julgamento, que ocorreria poucos dias atrás, em 5.11.07. Com essa súbita mudança de competência o processo, possivelmente, teria que recomeçar da estaca do zero, na primeira instância — desaparecido o foro privilegiado —, o que traria inúmeros benefícios ao réu, na hipótese de uma condenação. Mesmo com o eventual, discutível, aproveitamento da instrução perante o STF, o tribunal do júri, composto de leigos que não têm que justificar seu voto — decidindo por pura simpatia — seria uma solução que atenderia aos interesses do acusado. Não esquecer que o filho do réu é Governador do Estado em que ocorreu a tentativa de homicídio. A vítima levou três tiros em um restaurante, à vista de todos, mas sobreviveu, vindo a morrer anos depois de causas naturais.
A manobra da renúncia, pouco antes do julgamento, foi encarada pelo relator do processo como uma autêntica chicana. À míngua de um dispositivo expresso na legislação — que raramente pode tudo prever, e não só no Brasil — o relator e alguns ministros que o apoiaram, encontraram, na analogia, ou na jurisprudência, um solução para neutralizar a óbvia e natural busca da impunidade por parte do réu, que certamente se auto perdoou pelo gesto impensado depois de pedir desculpa — pelo que dizem os jornais — à vítima e seus familiares. A vítima, no seu leito de morte, teria perdoado o agressor, mas a viúva diz que isso ocorreu em razão da insistência deste e especial fragilidade do moribundo.
Depois do adiamento, pelo relator, do julgamento, e antes de uma decisão coletiva do STF, o réu argumentou que pedira, em setembro último, seu julgamento pelo Tribunal do Júri da Paraíba. Frisou — como se isso fosse detalhe importante —, que seu pedido foi apresentado mais de um mês antes da data marcada para seu julgamento no STF, a demonstrar, segundo ele, que não pretendia a impunidade, mas sim ser julgado pelo povo de sua terra. Ao leitor cabe avaliar se a pequena diferença quanto à data do pedido tem qualquer importância, no caso, considerando-se que o processo demorou cinco anos. É óbvio que essa mudança de competência, pertíssimo do julgamento, só traria vantagens ao acusado. Se assim não fosse, não renunciaria ao mandato.
Diz a imprensa de hoje, 9.11.07, que houve algumas críticas quanto ao pronunciamento do relator, que teria ficado "entusiasmado" com o apoio da opinião pública à suas manifestações como julgador. Seria — pergunta-se — lícito aos ministros do STF procurar na analogia e nos princípios gerais de Direito um "neutralizador" de manobras claramente visando a impunidade? Penso que sim. Ressalvado o réu e seus amigos, a comunidade apóia todo esforço interpretativo visando coibir manobras destinadas a "tapear" a justiça. No caso, se o réu quisesse mesmo ser julgado pelo Tribunal do Júri, deveria ter expressado esse desejo logo após a tentativa de homicídio, ou pouco depois; não 14 anos depois, quando percebeu que não teria escapatória de um julgamento justo, por juízes altamente qualificados, como é o caso do STF.
Santo "entusiasmo", esse, do ministro relator. Muito mais apreciado pela população ordeira que a total indiferença de algum julgador quanto ao que pensa o cidadão comum sobre o desempenho da justiça do país. E não se trata, no caso, de um tribunal decidir um caso importante conforme o julgamento — passional e precipitado —, da opinião pública. A comunidade somente pede que ocorra um julgamento conforme inicialmente pretendido pelo próprio réu, que nunca renunciou antes ao foro privilegiado, dele desfrutando. O súbito desejo de ser julgado pelo "povo", no Júri, é tardio e estranhável.
A se aceitar a manobra do acusado, poderiam, em tese, ocorrer as seguintes hipóteses, não fosse o réu tão idoso: recomeçando o processo na primeira instância, o acusado, percebendo, alguns anos depois, que as chances de absolvição pelo Tribunal do Júri seriam mínimas, e estando eventualmente reeleito — isso não lhe seria difícil —, poderia exigir novamente o foro privilegiado. E, novamente, na véspera de outro julgamento pelo STF poderia, de novo, renunciar ao mandato, pedindo para ser julgado pelo Tribunal do Júri. E assim sucessivamente, um verdadeiro jogo de "esconde-esconde". Como o STF aceitar isso sem uma desmoralização perante o judiciário de outros países?
Nada tenho contra o réu, que, no caso, agiu sob forte emoção, "vingando ofensas contra seu filho". Ocorre que pessoas menos influentes, em casos semelhantes — ou até menos graves —, pagam pelos seus atos na justiça. A coletividade não entende o porquê do tratamento diferenciado, a "dança das cadeiras", conforme os caprichos do réu, conforme as perspectivas dos resultados.
Depois de 14 anos, após a tentativa de homicídio, é possível que a pena esteja prescrita. E o réu tem mais de setenta anos, com todas as vantagens que isso implica, conforme a legislação. Cadeia, propriamente dita, não ocorrerá, provavelmente, porque nossa legislação é benevolente. Seu julgamento, porém, terá um valor simbólico. Que se salve, pelo menos, o simbolismo.
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*Desembargador aposentado do TJ/SP e Associado Efetivo do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo
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