Esboço de uma teoria para dar, ao advogado, relevo na sociedade contemporânea: institucionalização da Sociedade Unipessoal como nova maneira de empreender
Jayme Vita Roso*
"... o conhecimento das grandes verdades somente surge com ação e trabalho".
Albert Schweitzer1
- I - O espírito de empresário no Anteprojeto e no Projeto do Código Civil de 2002
2 – José Carlos Moreira Alves, Coordenador da Comissão de Estudos Legislativos e colaborador da Parte Geral, na mensagem que remeteu ao Ministro da Justiça, reporta-se à longa exposição de motivos, enfatizando que Miguel Reale, seu autor, nela acentuou as diretrizes "que nortearam a elaboração do Anteprojeto, bem como descreve, em suas linhas fundamentais, o que de mais importante se pretende introduzir no sistema e nos princípios do direito privado pátrio"2.
Ressalto que Moreira Alves aborda, desde logo, que a obra ciclópica é inovadora, porque constrói um sistema jurídico, que, sabidamente, trata de noção controvertida para muitos estudiosos da ciência, que não admitem o uso de terminologia de outros ramos do conhecimento levados à antiga jurisprudência romana3, em que se sobressaem os princípios do direito privado brasileiro, como basilares para, ouso dizer, uma compreensão holística da fenomenologia que enfeixa as relações privadas.
3 – Aliás, corroborando o que esclarecera Moreira Alves, na mensagem dirigida ao Ministro da Justiça, datada de 23.5.1972, Reale enfatiza que cada autor da parte que lhe fora confiada redigiu sua própria exposição de motivos. A do próprio Reale (Parte Geral), Agostinho de Arruda Alvim (Direito das Obrigações), Sylvio Marcondes Machado (Atividade Negocial), Ebert Vianna Chamoun (Direito das Coisas), Clóvis do Couto e Silva (Direito de Família) e Torquato Castro (Direito das Sucessões). E às exposições de motivos, vaticinava Reale: "Quando esses estudos forem publicados, constituirão contribuição inestimável ao esclarecimento da obra levada a cabo, com a preocupação exclusiva de dotar a comunidade brasileira de uma estrutura jurídica adequada à experiência social contemporânea"4.
Ressalte-se que Reale dá relevo à experiência social contemporânea, pois, para ele, o substrato do direito está na experiência5. São suas diretrizes fundamentais as norteadoras das alterações que se procediam na época e Reale precisa que o objetivo desenvolvido foi "não dar guarida ao Código senão aos institutos e soluções normativas já dotados de certa sedimentação e estabilidade, deixando para a legislação aditiva a disciplina de questões ainda objeto de fortes dúvidas e contrastes, em virtude de mutações sociais em curso, na dependência de mais claras posições doutrinárias, ou quando fossem previsíveis alterações sucessivas para adaptações da lei à experiência social e econômica" 6. Na estrutura e linguagem do Código, obra coletiva, achar-se-ia, "reconhecendo-se cada vez mais que o Direito é social em sua origem e em seu destino, impondo a correlação concreta e dinâmica dos valores coletivos com os individuais, para que a pessoa humana seja preservada sem privilégios e exclusivismos, numa ordem global de comum participação..."7.
4 – Reale, em suas considerações, inspirou este trabalho em sua concepção e em suas mais profundas reflexões. Pela atualidade do seu pensamento, busquei não poupar os trechos mais esclarecedores do espírito do Código vigente, nas suas raízes fundantes. E assim é que, avançando sobre a proposta fincada em uma realidade, "o que se tem em vista é, em suma, uma estrutura normativa concreta, isto é, destituída de qualquer apego a meros valores formais abstratos". Esse objetivo de concretude impõe soluções que deixam larga margem de ação ao juiz e à doutrina, com freqüente apelo a valores como eqüidade, probidade, finalidade social do direito, equivalência de prestações etc., o que talvez não seja do agrado dos partidários de uma concepção mecânica ou naturalística do Direito, o qual, todavia, é incompatível com leis rígidas do tipo físico-matemático. A "exigência de concreção" surge exatamente da contingência insuperável dessa adequação criadora dos modelos jurídicos aos fatos sociais in fieri, pois a "Ciência do Direito, tal como se configura em nossos dias, isto é, como ciência da experiência social concreta" 8 assim o é.
5 – Recordando o lavor de Agostinho Alvim, que cuidou do Direito das Obrigações, dentre os vários pontos fundamentais, inovadores, por ele formulados, destaco:
"c) tornar explícito como princípio condicionador de todo o processo hermenêutico, que a liberdade de contratar só pode ser exercida em consonância com os fins sociais do contrato, implicando os valores primordiais da boa-fé e da probidade. Trata-se de preceito fundamental, dispensável talvez sob o enfoque de uma estreita compreensão positivista do Direito, mas essencial à adequação das normas particulares à concreção ética da experiência jurídica"9. Demarcou Reale, com ênfase, outra vez mais, desta feita, com vista aos títulos de crédito, a necessidade de serem cuidados, dentre as citadas anteriormente, leis aditivas, "por tratar-se de matéria em cujo âmbito são previsíveis alterações a curto prazo, em função das mutações econômicas em processo"10.
6 – Sobre a atividade negocial, o diálogo entre Reale e Sylvio Marcondes, ainda com as luzes de Oscar Barretto Filho, tornou-se frutuoso, com os modelos adaptados à experiência social concreta em um mundo já mutante.
A distinção entre sociedade empresária e sociedade civil é que aquela modalidade de atividade empresarial é espécie do gênero atividade negocial (Livro II, do Anteprojeto).
Considerando as sociedades de maneira global, como um todo diversificado, mas orgânico, levou o autor em conta a flexibilidade propiciada aos empreendedores de se estabelecerem, porque "assiste razão ao elaborador do Anteprojeto em estabelecer regras indispensáveis a assegurar às empresas, de um lado, o seu papel de instrumento essencial à política de desenvolvimento, mas com plena garantia dos interesses e dos direitos das minorias. Nesse ponto, em lugar de normas, que poderiam ensejar a progressiva burocratização das empresas, preferiu-se um sistema que permitirá às autoridades responsáveis pela fiscalização das atividades negociais, estabelecer as exigências reclamadas pelo estágio de nossa evolução econômica"11.
7 – Se o artigo n°. 1.027 do Anteprojeto prescreveu que "considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços", limitou-se, no art. n°. <_st13a_metricconverter productid="1.031, a" w:st="on">1.031, a dispensar de inscrição "e das restrições e deveres impostos aos empresários inscritos", o pequeno empresário (art. n°. 1.031, II), ou aquele que é ou será definido por decreto, à vista de elementos fundantes da sua atividade, isolado ou em conjunto considerados, tais como natureza artesanal da atividade; predominância do trabalho próprio e de familiares; capital efetivamente empregado; renda bruta anual e o preenchimento de condições peculiares à atividade, reveladoras da exigüidade da empresa exercida.
Explicitamente, a sociedade unipessoal não surge no âmbito do Anteprojeto. De qualquer forma, não considero antitética a noção de empresário (art. n°. 1.027) com a de sociedade (art. n°. 1.042), porque o Anteprojeto consagra a possibilidade de serem criadas leis aditivas para se efetivarem, concretamente, as experiências sociais e econômicas necessárias ao desenvolvimento do país, além de que propicia ao Executivo a possibilidade de criar o tipo de pequeno empresário (art. n°. 1.031). Ora, obedecendo a certas e precisas condições, a sociedade unipessoal pode ser institucionalizada, como adiante demonstraremos.
8 – O Projeto de Lei do Código Civil ingressou no Parlamento com a Mensagem n°. 160/75, recebendo o protocolo do Projeto de Lei n°. 634, de 1975 (clique aqui), tendo sido publicado no Diário do Congresso Nacional, como Suplemento (B) n°. 11, em 13.6.1975 (clique aqui).
Entre a entrega do Anteprojeto e a mensagem presidencial, decorreram três anos. Nesse intervalo, não foram modificados, alterados ou suprimidos os artigos n°. 1.027, 1.031 e 1.042 do Anteprojeto.
O Ministro da Justiça Armando Falcão, então encaminhando o Projeto ao Presidente da República, em 6.6.1975 (GM 212-B), sintetizou a mensagem de Reale, elaborada com o Anteprojeto, ressaltando sobretudo a unificação dos direitos das obrigações; materializando o anseio do Código das Obrigações de 1941 e o Anteprojeto de 1965; propiciando matérias que reclamam disciplina especial autônoma para serem cuidadas fora do âmbito do Código; mantendo os princípios gerais; acatando a promulgação de legislação aditiva para questões ainda objeto de fortes dúvidas e contrastes, em virtude das mutações sociais em curso; dispensando a formalidade excessiva e "dando ao Código um sentido mais operacional do que conceitual, procurando configurar os modelos jurídicos à luz do princípio da realizabilidade, em função das forças sociais operantes no país, para atuarem como instrumento de paz social e do desenvolvimento"12. Retirou Falcão do Anteprojeto o texto que cuidava das sociedades anônimas da atividade empresarial, que seriam objeto de lei especial, como ocorreu com a edição da Lei n°. 6.404, em 1976 (clique aqui).
No texto definitivo encaminhado ao Congresso, realçou o Ministro da Justiça que foram acolhidas, no intervalo em que o Anteprojeto quedou-se à disposição para debates, inúmeras sugestões, emendas e proposições, que, assim como a própria Comissão, de motu proprio, o fez com algumas, decorrentes de investigação própria.
E, consequentemente, passados trinta anos, tivemos lei: muito boa por sinal.
_______________
1 SCHWEITZER, Albert. Essential writings. Selected with an Introduction by James Brabazon. New York: Orbis Books, 2005. p. 9.
2 D.O.U., 12/6/72, p.1.
3 A noção de sistema já é bastante controversa no campo doutrinário, sobretudo em razão das diversas teorias que versam sobre o tema, originárias de elegantes discussões filosóficas. As mais recorrentes noções de sistema jurídico procuram conduzir debates em torno de que o sistema jurídico seja operativo. Valiosa contribuição sobre o conceito encontra-se no verbete sistema giuridico, de Giorgio Lazzaro. AZARA, Antonio; EULA, Ernesto. Novissimo Digesto Italiano. Torino: VTET, 1970, vol. 17, p.459-464.
4 D.O.U., idem, p.2.
5 REALE, Miguel. O direito como experiência. São Paulo: Saraiva, 1968, 294 p.
6 D.O.U., 12.6.72, p.2.
7 D.O.U., idem, p.3.
8 Idem.
9 D.O.U., 12.6.72 , p.5.
10 Idem.
11 Idem, p.6.
12 Idem, p.106.
_____________
*Advogado do escritório Jayme Vita Roso Advogados e Consultores Jurídicos
_______________