A competência para julgar ações sobre acidente do trabalho
Alexandre Simões Lindoso*
Em que pese os judiciosos argumentos, penso que a questão não pode ser tratada genericamente, de modo a se atribuir à Justiça Comum a competência para julgamento de toda e qualquer ação que gire em torno de acidente de trabalho. Em verdade, há que ser estabelecida uma divisão entre os feitos instaurados pelo segurado, contra a Previdência Social e aqueles embasados no artigo 7º, XXVIII, da Constituição.
E, de fato, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 7º, inciso XXVIII, incluiu, dentre os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, um “seguro contra acidentes do trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa”. Creio que as ações que tenham por objeto a indenização a que alude o dispositivo constitucional são da competência da Justiça do Trabalho, conforme a seguir se demonstra, com base no próprio texto constitucional em vigor.Com efeito, a Constituição de 1946, ao tratar da competência da Justiça do Trabalho, dispunha que, in verbis:
“Art. 123 - Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores, e as demais controvérsias oriundas de relações do trabalho regidas por legislação especial.
§ 1º - Os dissídios relativos a acidentes do trabalho são da competência da Justiça ordinária”.
O ordenamento constitucional de 1967, ao delimitar a competência da Justiça do Trabalho, igualmente preconizava que:
“Art. 134. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores e as demais controvérsias oriundas de relações de trabalho regidas por lei especial.
[...]
§ 2º - Os dissídios relativos a acidentes do trabalho são da competência da Justiça ordinária”.
Com o advento da Emenda Constitucional nº 1/69, referida situação em nada se alterou, ex vi de seu artigo 142:
“Art. 142. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregado e empregadores e, mediante lei, outras controvérsias oriundas da relação de trabalho.
[...]
§ 2º - Os litígios relativos a acidentes do trabalho são da competência da Justiça ordinária dos Estados, do Distrito Federal ou dos Territórios”.
Portanto, à luz dos ordenamentos constitucionais anteriores, a competência para apreciar e julgar todo e qualquer litígio, cujo objeto fosse acidente do trabalho, era da Justiça estadual comum, como decorrência de expressa limitação à competência da Justiça do Trabalho.
A Constituição em vigor, entretanto, não dispôs da mesma forma. De fato, ao cuidar da Justiça do Trabalho, o constituinte de 1988 atribuiu-lhe a competência para “conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias decisões”, sem afastar aqueles que tenham por objeto o acidente de trabalho.
Vale dizer, ao tratar da competência da Justiça do Trabalho, o legislador constituinte de 1988 não repetiu a ressalva relativa aos litígios pertinentes à acidente do trabalho, inovando em relação às Constituições anteriores. Assim, parece correto afirmar que, em se tratando de litígio entre empregado e empregador, o Judiciário trabalhista será o competente, ainda que a controvérsia gire em torno de questões relativas a acidente de trabalho.
Registre-se, por oportuno, que a norma inserta no artigo 109, inciso I, da Constituição em nada altera as conclusões acima lançadas, na medida em que, ao contrário do artigo 142, § 2º, da Constituição passada, não atribui à Justiça estadual comum a competência para dirimir todo e qualquer conflito envolvendo acidente do trabalho. Em verdade, o artigo 109, inciso I, da CF, preceitua apenas que aos juízes federais compete processar e julgar “as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes, ou oponentes, exceto as de falência, as de acidente de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;”.Vale dizer, trata pura e simplesmente da competência dos juízes federais, afastando de sua incidência as demandas relativas à acidente de trabalho, em que “a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes, ou oponentes”.
O dispositivo constitucional tem por alvo, portanto, apenas aquelas ações promovidas por segurado contra a Previdência Social. Não por acaso, aliás, é que todos os precedentes que embasaram a edição da Súmula nº 15 do c. Superior Tribunal de Justiça, que fixa a competência da Justiça estadual para dirimir os litígios decorrentes de acidentes do trabalho, têm por objeto demandas em que figura como réu o instituto previdenciário (CC-1057 RJ; CC-137 RJ; CC-196 RJ; CC-263 RJ; CC-377 RJ e CC-950 RJ).
No caso do artigo 7º, XXVII, da Lei Magna, entretanto, não se cuida de ação acidentária, mas de reparação de danos, movida por empregado contra seu empregador, e que se revolve à luz do Código Civil, e não com base na legislação previdenciária. Assim, ainda que a ação indenizatória em questão seja movida por empregado de empresa pública, por se tratar de dissídio individual, envolvendo empregado e empregador, a competência não será dos juízes federais, mas da Justiça do Trabalho, por força, aliás, do próprio inciso I do artigo 109 da Constituição, que inclui na ressalva ali prevista as causas sujeitas ao Judiciário trabalhista.
Registre-se, ainda, que o artigo 129, inciso II, da Lei nº 8.213/91, que dispõe que “os litígios e medidas cautelares relativos a acidentes do trabalho serão apreciados” “na via judicial dos Estados e do Distrito Federal[...]”, não tem o condão de infirmar as conclusões acima, por se tratar de dispositivo inserto na Lei de Benefícios da Previdência Social e que, por essa razão, obviamente se refere às demandas em que figura como réu o instituto previdenciário. O mesmo raciocínio se aplica ao disposto no artigo 643, § 2º, da CLT, que determina que “as questões referentes a acidentes do trabalho continuam sujeitas à justiça ordinária, na forma do Decreto nº 24.637, de 10 de julho de 1934, e legislação subseqüente”. E isso porque o Decreto nº 24.637/34 era o diploma legal que tratava de acidente do trabalho à época da edição da CLT (1943), matéria hoje é regida pela Lei nº 8.213/91.
Acrescente-se, ainda, que, dentre os precedentes que nortearam a edição da Súmula nº 736 do Supremo Tribunal Federal, destaca-se aquele prolatado na Petição nº 2.260-2/MG (DJ de 1/3/2002), em que o Excelentíssimo Ministro Sepúlveda Pertence deferiu medida cautelar para suspender os efeitos de acórdão atacado por recurso extraordinário, sob o fundamento de que "a solução dada na instância a qua, ao afirmar a competência da Justiça estadual para o caso – ação de indenização contra empregador por danos decorrentes de acidente do trabalho –, é contrária à orientação do Supremo Tribunal".
Fixadas essas premissas, penso que não há como se atribuir à Justiça estadual comum a competência para apreciar as demandas envolvendo a indenização decorrente de acidente do trabalho, prevista no artigo 7º, inciso XXVIII, da CF, na medida em que se trata, inequivocamente, de dissídio individual entre empregado e empregador, envolvendo direito dos trabalhadores urbanos e rurais e que, nos termos do artigo 114, caput, da Lei Maior, concerne à Justiça do Trabalho.
A sistemática constitucional anterior, que consolidou o entendimento quase que dogmático de que tudo o que se refere à acidente de trabalho concerne à Justiça Comum não mais subsiste e, por essa razão, não pode servir de parâmetro interpretativo para o tema ora em exame, que deve ser analisado à luz do sistema constitucional no qual se insere. Não há como se aceitar o que Luís Roberto Barroso com precisão denomina de “uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove em nada, mas ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo” .
Assim, sem embargos das doutas e judiciosas opiniões em contrário, conclui-se que a competência para dirimir os dissídios envolvendo a indenização prevista no artigo 7º, inciso XXVIII, da CF, é da Justiça do Trabalho.
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*Advogado do escritório Alino & Roberto e Advogados