Fontes do Direito Penal: necessária revisão desse assunto (Parte 1)
Luiz Flávio Gomes*
A doutrina clássica distingue a fonte de produção ou substancial ou material (quem pode criar o conjunto de normas que integra o Direito; quem é o sujeito competente para isso) das fontes formais (fontes de cognição ou de conhecimento ou de exteriorização desse Direito), que se dividem em fontes formais imediatas (lei etc.) e mediatas (costumes, jurisprudência, princípios gerais do Direito etc.). Essa classificação deve ser revisada. De qualquer modo, parece certo que os tratados e convenções internacionais configuram fontes imediatas, na medida em que exprimem normas de criação do Direito.
No âmbito específico do Direito penal o assunto fontes deve partir de uma premissa muito relevante que é a seguinte: é fundamental distinguir o Direito penal incriminador (que cria ou amplia o ius puniendi, ou seja, que cuida da definição do crime, da pena, das medidas de segurança ou das causas de agravamento da pena) do Direito penal não incriminador (conjunto de normas penais que cuidam de algum aspecto do ius puniendi, sem se relacionar com o crime, a pena, as medidas de segurança ou com o agravamento das penas). O primeiro (Direito penal incriminador), no que se refere à sua origem (isto é, à sua fonte), é muito mais exigente (e restrito) que o segundo.
No que diz respeito ao Direito penal incriminador (conjunto de normas que cuidam do delito, da pena, da medida de segurança ou do agravamento das penas) somente o Estado está autorizado a legislar sobre Direito penal. Em outras palavras: ele é o único titular da criação ou ampliação do ius puniendi, logo, cabe a ele a produção material do Direito penal objetivo (ou seja: cabe ao Estado a criação das normas que compõem o Direito penal incriminador).
Capacidade legislativa dos Estados membros: por meio de lei complementar federal os Estados membros (quando concretamente autorizados) podem legislar sobre Direito penal, porém, somente em questões específicas de interesse local (CF, art. 22, parágrafo único) (clique aqui).
No que diz respeito às fontes formais (como se exterioriza formalmente o Direito penal) faz-se mister distinguir as fontes formais do Direito penal em geral da fonte formal e única do Direito penal incriminador (que é a lei).
As fontes formais (ou imediatas) do Direito penal em geral são: a Constituição e seus princípios, o Direito Internacional dos Direitos Humanos e seus princípios, a legislação escrita e seus princípios e o Direito Internacional não relacionado com os direitos humanos e seus princípios. A fonte formal (ou imediata) do Direito penal incriminador (que cria ou amplia o ius puniendi) é exclusivamente a lei. Os costumes, nesse contexto, são fontes informais do Direito penal. A doutrina e a jurisprudência, por último, configuram fontes formais mediatas.
A diferença entre fontes imediatas e mediatas é a seguinte: enquanto as primeiras revelam o direito vigente (Constituição, Tratados, leis) ou tido como tal (costumes), as segundas explicam ou interpretam e aplicam as primeiras.
A lei como fonte formal única, exclusiva e imediata do Direito penal incriminador: no que diz respeito às normas que criam ou ampliam o ius puniendi a única e exclusiva fonte de exteriorização é a lei formal (lei ordinária ou complementar), escrita, cujo conteúdo é discutido, votado e aprovado pelo Parlamento. Por força do nullum crimen, nulla poena sine lege nenhuma outra fonte pode criar crimes ou penas ou medidas de segurança ou agravar as penas (ou seja: nenhuma outra fonte pode criar ou ampliar o ius puniendi).
O que acaba de ser dito expressa o conteúdo do chamado princípio da reserva legal ou princípio da reserva de lei formal. Reserva legal é um conceito muito mais restrito que legalidade (que é um conceito amplo). A única manifestação legislativa que atende ao princípio da reserva legal é a lei formal redigida, discutida, votada e aprovada pelos Parlamentares. Essa lei formal é denominada pela Constituição brasileira de lei ordinária, mas não há impedimento que seja uma lei complementar que exige maioria absoluta (CF, art. 69).
Constituição Federal: a Constituição Federal constitui fonte imediata ou direta do Direito penal (em geral), mas ela não pode definir crimes ou penas ou agravar as existentes. Essa função, por força do nullum crimen, nulla poena sine lege é exclusiva da lei ordinária ou complementar.
Os Tratados e Convenções internacionais tampouco podem cumprir esse papel. Recorde-se (como vimos acima) que os Tratados internacionais são firmados pelo Chefe do Executivo (Presidente da República). O Parlamento apenas referenda o Tratado, mas não pode alterar o seu conteúdo. Ou seja: não se trata de conteúdo que seja redigido, discutido e votado pelo Parlamento. Admitir que Tratados internacionais possam definir crimes ou penas significa, em última instância, conceber que o Presidente da República possa desempenhar esse papel. Com isso ficaria esvaziada a garantia política e democrática do princípio da legalidade (da reserva legal).
Medidas provisórias: no que concerne às normas penais incriminadoras (as que definem crimes, penas, medidas de segurança ou que agravam as penas), exclusivamente a lei penal formalmente redigida, discutida e aprovada pelo Parlamento (garantia da lex populi) é que serve de instrumento para essa finalidade. Em relação às normas penais não incriminadoras, conseqüentemente, admite-se a medida provisória como fonte formal do Direito penal. Em conclusão: a lei, por emanar do poder que encarna a soberania popular, conta com um plus de legitimidade política, diante de outras fontes. Sendo norma escrita, retrata uma segurança jurídica frente à arbitrariedade e ao ius incertum.
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*Fundador e Coordenador Geral da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes
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