Os bancos lucram, mas os bancários padecem straining
Márcia Novaes Guedes*
Segundo a imprensa, o lucro recorde dos bancos se deve ao aumento espetacular de 250% nas tarifas. Levantamento da agência de classificação de riscos Austin Rating, mostra que a participação dos serviços no crescimento bancário atingiu 19,7%, contra 19,1% dos títulos e valores imobiliários. Dessa forma, os serviços hoje compõem a segunda fonte de receita dos bancos, perdendo apenas para as receitas de crédito, que respondem por 47,6%. Para se ter uma idéia do tamanho do crescimento dos serviços bancários basta lembrar que a receita com serviços dos dez bancos que apresentaram balanço, na semana que passou, somou 13,8 bilhões, um acréscimo de 22,8% em relação a igual período do ano passado. Já as receitas com títulos e valores mobiliários ficaram em 13,6%.
Os bancos são potentados econômicos que ditam as transformações em curso, separam o poder da política, e, por meio do auto-atendimento, obrigam todos a trabalhar para eles de graça e pagar tarifas antes inimagináveis, e, ainda, fazem crer que estamos evoluindo on line! A sensação que temos ao ler os jornais é a de que os bancos compõem um império fabuloso, e funcionam, crescem, e lucram como que por magia, virtualmente, e independentemente do trabalho vivo. É, Já vai longe o tempo em que jornalistas se ocupavam com sondagens sociais ou pesquisas no mundo do trabalho comum. Diante das sensacionais reportagens sobre as atrocidades bélicas, o sofrimento no andar de baixo, dos comuns mortais que mourejam atrás do pão-de-cada-dia não tem expressão, e quando aparece na imprensa é em caráter excepcional.
Semelhante indignação, porém, no século passado, levou o gênio de Bertolt Brecht a elaborar um conjunto de indagações reunidas num poema desconcertante: "Quem construiu a Tebas das Sete Portas ? Nos livros constam os nomes dos reis. Os reis arrastaram os blocos de pedra ? E a Babilônia tantas vezes destruída, quem a ergueu outras tantas ? Em que casa de Lima moravam os construtores ? Para onde foram os pedreiros na noite em que ficou pronta a muralha da China ? A grande Roma está cheia de arcos de triunfo, quem os levantou ? Sobre quem triunfaram os cézares ?" Por detrás das vitrines iluminadas dos palácios de vidro e cimento, um exército de seres invisíveis trabalha, produzindo mais-valia, vendendo as mercadorias dessa estranha rede de supermercado de papéis em que os bancos se transformaram.
Em menos de vinte anos, os bancos realizaram uma revolução irreversível, modernizando-se pelo emprego das novas técnicas e com a flexibilização das relações de trabalho. Fusões e incorporações facilitaram o processo de privatização dos bancos estatais, mas com grande sacrifício dos bancários. Trabalhadores que fizeram carreira profissional, ingressando no serviço através de concurso público e acalentavam o sonho de uma cômoda aposentadoria, se encontraram, de repente, no olho do furacão aterrador da flexibilização, e foram obrigados a aderir aos PDV ("planos de demissão voluntária"). A expressão é uma tautologia, a demissão é um ato volitivo do empregado, portanto, não tem sentido um plano.
A modernização banalizou a gestão por estresse. Nos bancos estatais, pessoas que não conheciam nem mesmo a capital do estado onde trabalhavam, eram forçadas a viajar quase todo o país, transferidas para estados longínquos e sem uma explicação razoável (quem trabalhava no Norte mudava para o Sul e quem estava no Sul era transferido para o Nordeste). A contínua redução do quadro de pessoal, as doenças pelo excesso de trabalho, a fadiga muscular e mental decorrentes do esforço repetitivo com a digitação, piorada por um mobiliário inadequado e obsoleto do ponto de vista ergométrico, aliada à exploração intensiva do trabalho pela sistemática violação dos controles de jornada, demonstram que a modernização dos bancos se fez sob a degradação das condições e do ambiente de trabalho.
A era inaugurada pelo domínio das novas técnicas se caracteriza pela descontinuidade, pela ruptura com um processo de evolução social e moral que se vinha fazendo nos séculos precedentes. Vem daí que a experiência se torna um fardo a se desembaraçar. Não é por outro motivo que os trabalhadores com mais de 40 anos se tornaram as vítimas preferenciais do assédio moral: ele ou ela guarda não apenas a memória do "modus fasciendi" passado, mas, sobretudo, da história dos direitos e garantias sociais, e não estão dispostos, muito menos disponíveis, a aceitar a desregulamentação dos contratos que se configura numa verdadeira regulamentação perversa.
O cancelamento da memória consiste precisamente em afastar as provas e testemunhas de um tempo em que os direitos humanos eram sinais de evolução. De modo geral, para livrar-se dos trabalhadores mais velhos, ou que deram o azar de adoecer, ou, simplesmente, eram considerados inadequados aos olhos da direção, o setor financeiro público e privado empregou o assédio moral, fenômeno socialmente desconhecido e ignorado na esfera jurídica, até o lançamento do meu livro "Terror Psicológico no Trabalho" [LTr, 2003].
O volume de ações trabalhistas em curso contra os bancos, demonstra que a modernização se fez, mas o padecimento dos bancários não acabou, pelo contrário, aumentou. Enquanto os bancos lucram, os bancários padecem de straining. De uma sentença recentemente proferida pela Juíza Claudia Reina Pinheiro da 28ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, lemos o seguinte depoimento: "O Banco Itaú possui um sistema de Bank Fone. Que esse trabalho é realizado aos sábados, domingos e feriados, através de escalas; que existem metas a serem atingidas; que é constrangedor quando as metas não são ultrapassadas; que é constrangedor não apenas em relação aos colegas, mas também porque existe a cobrança da chefia, e porque atingir as metas é uma forma de manter o emprego; que a cobrança dos superiores é feita através de reuniões, relatórios, e supervisão no local; que trabalha atualmente no Bank Fone e sente preocupação constante em não atingir a meta; que a preocupação lhe incomoda (...); que quando o pessoal não atinge as metas são "orientados" para atingi-las; que em reuniões chegou a escutar de superiores que deviam atingir a meta para manterem o emprego’; que, de certa forma, trabalham em constante pressão; que tal pressão também ocorria com a reclamante Gilciane".
Outra testemunha afirma: "que além de ter que atender telemarketing receptivo, tinham que realizar as vendas de produtos; que trabalhavam com vendas e atendimentos por telefone (...); que após a mudança da política do Banco, passaram também a vender produtos, e, dessa data em diante iniciaram as pressões; que havia reuniões onde funcionários eram avisados que a política do Banco havia mudado, e que se não atingissem as metas existiam outras pessoas fora do Banco para serem contratadas; que eram feitas rondas pelos gerentes e supervisores enquanto estavam trabalhando e se a quantidade das vendas do dia não fosse satisfatória, eles questionavam: perguntando "se o empregado havia trabalhado naquele dia"; que existia pressão sobre as metas a serem alcançadas; tal pressão gerava ansiedade (...) que as pressões sofridas, eram contínuas."
"No Bradesco, os funcionários trabalham sob pressão psicológica para vender papéis e serviços, sob a ameaça de perder o emprego", afirma categoricamente em Juízo a testemunha Raimunda Rosa Rego de Oliveira. “Para minimizar o grave problema das filas e da aglomeração de clientes do lado de fora da agência, o banco abre as portas uma hora antes do expediente" _ esclarece outra testemunha.
Os bancos contratam escriturário, todavia, os bancários, com ou sem vocação, são obrigados a acumular a função de escriturário e vendedor de papéis e serviços. E, para aumentar seu já fabuloso lucro, os bancos empregam a pressão psicológica e a ameaça da dispensa. À medida que o volume de papéis aumenta e se diversifica as metas fixadas também vão sendo ampliadas, as pressões vão crescendo e as ameaças se confirmando com as demissões programadas, sob a irônica justificativa de «excesso no quadro de pessoal».
Os depoimentos indicam que os trabalhadores são vítimas de uma estratégia cruel que tem por objetivo leva-los a acreditar que trabalhando à exaustão teriam seus empregos garantidos, o que não é verdade. Acontece que essa estratégia, assentada na pressão psicológica para o cumprimento de metas de produtividade cada vez mais rigorosas, aliada a exploração intensiva do trabalho vivo, pelas freqüentes violações do sistema de controle eletrônico dos horários de entrada e saída, combinada com as constante ameaças da perda do emprego, implica em violação do direito fundamental ao trabalho saudável, e revela a face perversa da gestão por estresse, conhecida por straining.
Derivado do termo inglês strain, que significa tensionar, peneirar, coar, puxar, esticar, straining é a tensão decorrente do estresse forçado pelo excesso de trabalho. Diferentemente do assédio moral, cuja vítima é individualizada, isolada do convívio dos demais colegas, e forçada à inatividade moralmente demolidora, no straining a vítima é um grupo de trabalhadores de um determinado setor ou repartição, que é obrigado a trabalhar exaustivamente, produzir e obter resultados, sob grave pressão psicológica e ameaça de sofrer castigos humilhantes, e ser despedido do emprego. Diante do assédio moral e do straining, a já vulnerável situação dos trabalhadores brasileiros é agravada ante a aplicação de uma legislação que permite ao empregador dispensar, sem pagar, e discutir o caso na justiça.
O straining, do qual padecem os bancários, é também o móvel do fabuloso lucro dos bancos. Os políticos, porém, tentam capitanear o sucesso dos bancos: o Ministro das Relações Institucionais, Mares Guia, comemorou o crescimento recorde nos lucros dos bancos, alegando que isso reflete "o bom momento da economia brasileira". Já o Presidente LULA afirmou que assim não precisava criar um novo PROER e atribuiu tudo ao crédito popular. Não temos dúvidas que os elementos convergem positivamente para uma mudança: a taxa do crescimento da indústria atingiu 4.8% no último mês, as previsões são de fechar o ano com crescimento do PIB em torno de 5%, os índices de popularidade do Presidente se mantém estáveis, mesmo com a grave crise do setor aéreo. O Governo, portanto, tem poder e popularidade suficientes para usar de sua denodada experiência sindical, e diferente do que fez seu antecessor, criar um PROSOL __ Programa de Solidariedade Social, que permita aos trabalhadores erguerem uma barreira contra a devastadora banalização do mal no trabalho.
____________________________
*Juíza do Trabalho integrante da Associação Juízes para Democracia e Doutora em Direito Trabalhista pela Universidade de Roma
_____________