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Empresa de trabalho intelectual - A atividade intelectual exercida pelo advogado

Inicialmente, os romanos dividiam o direito basicamente em três espécies, quais sejam, obrigacional, real e pessoal. Ocorre que passado algum tempo, essa classificação originária não conseguia mais regular de forma eficaz todos os direitos existentes, de forma que a doutrina e a jurisprudência acabaram por consagrar os direitos da personalidade e os direitos intelectuais que, posteriormente, passaram a ser regulados pelos ordenamentos jurídicos existentes em cada país.

26/4/2004

Empresa de trabalho intelectual

 

A atividade intelectual exercida pelo advogado

 

Daniela Vasconcelos Lemos de Melo Borges*

 

Inicialmente, os romanos dividiam o direito basicamente em três espécies, quais sejam, obrigacional, real e pessoal. Ocorre que passado algum tempo, essa classificação originária não conseguia mais regular de forma eficaz todos os direitos existentes, de forma que a doutrina e a jurisprudência acabaram por consagrar os direitos da personalidade e os direitos intelectuais que, posteriormente, passaram a ser regulados pelos ordenamentos jurídicos existentes em cada país.

 

Apesar das disposições próprias que cada um desses direitos possui, seja através de Convenções Internacionais ratificadas pelo Brasil, seja através de leis ordinárias, esses direitos estão incluídos no rol das garantias e direitos fundamentais de nossa Constituição Federal de 1988, mais especificamente no seu artigo 5º, não podendo, de forma alguma, serem negados.

 

Com relação aos direitos intelectuais, Carlos Alberto Bittar os classificou como “aqueles referentes às relações entre as pessoas e as coisas (bens) imateriais que cria e traz a lume, vale dizer, entre os homens e os produtos de seu intelecto, expressos sob determinadas formas, a respeito dos quais detém verdadeiro monopólio”1 .

 

Não obstante a atual divisão dos direitos intelectuais os elencar em três espécies, a saber, direitos de autor, de propriedade intelectual e de criação e utilização de software, existem determinadas profissões consideradas exclusivamente de natureza intelectual, como por exemplo, o trabalho advocatício.

 

O novo Código Civil, lei nº 10.406 de 10 de janeiro 2002, trouxe em seu artigo 966 a definição de empresário e conseqüentemente das sociedades consideradas empresárias (art. 982, do novo Código Civil), excluindo, desse conceito, em seu parágrafo único, aquele que exerce profissão de natureza intelectual, científica, literária ou artística.

 

Muito embora não existam correspondências legislativas anteriores do Código Comercial com o novo Código Civil nesse aspecto, tais definições já se encontravam presentes em nosso ordenamento, sendo que o artigo 4º do Código Comercial já definia comerciante como “aquele que faz da prática dos atos de comércio profissão habitual”.

 

De qualquer forma, a profissão exercida pelo advogado já estava definida pelo próprio Estatuto da OAB, lei 8.906/94, como uma atividade eminentemente intelectual pela própria natureza da atividade exercida, haja vista que o seu artigo 1º define como sendo privativas dos advogados a postulação ao Poder Judiciário, a consultoria, assessoria e direção de atividades jurídicas. Ademais, o artigo 16 desse mesmo diploma legal veda à sociedade de advogados revestir-se de características mercantis.

 

Para que possa exercer tais atividades, depende o advogado da escrita e da palavra. Em trabalho publicado pela Revista Forense, J. Guimarães Menegale argumenta que “afora o uso de seu cabedal científico, tem o advogado de afazer e consubstanciar o material de seu ofício; ora – podemos resumir, - seu ofício é o verbo. Com o manejo da palavra, o advogado expõe, postula, pleiteia e convence. A palavra é para ele, o mais dútil e o mais plástico dos meios de trabalho; mas é, ao mesmo passo, o de mais difícil utilização”2 .

 

Ora, para que possa o aplicador do direito postular, pleitear e convencer, precisa não só de técnica, precisa ainda tecer uma construção científica baseada na lei e nos fatos capaz de ser aceita perante nossos Tribunais, pressupondo, certamente, uma riqueza de fundamentação.

 

Ocorre que, não obstante serem criadas verdadeiras teses jurídicas por esse profissionais, estes, muitas vezes, não conseguem ter aceito o seu direito autoral sobre a obra criada, ainda que o artigo 7º, inciso I, da Lei 9.610/96 proteja como obra intelectual os textos de obras literárias, artísticas ou científicas, “expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível”.

 

O que efetivamente se exige é que a obra seja original, que contenha uma manifestação criativa do seu autor para que possa ser protegida. Por conseguinte, não estão protegidas “as idéias, procedimentos normativos, sistemas, métodos, projetos ou conceitos matemáticos como tais” e “os textos de tratados ou convenções, leis, decretos, regulamentos, decisões judiciais e demais atos oficiais” (incisos I e IV, artigo 8º, Lei 9.610/96), dentre outros.

 

O argumento utilizado por aqueles que não consideram o trabalho feito pelo advogado como passível de sujeitar-se à proteção dada pela lei de direitos autorais é de que a petição, por ser dirigida ao Tribunal, passa a constituir um documento público, feito única e exclusivamente com a finalidade de defender o cliente.

 

Exatamente nesse sentido foi o acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 351.358/DF, no qual decidiu-se que:

 

“O fato praticado no exercício de uma atividade profissional e, assim, com propósito nitidamente utilitário, hipótese em que se restringe a possibilidade de reconhecimento da criação literária, pois o redator está preso aos fatos, à doutrina e à jurisprudência, do que faz simples relato, seja porque elaborou a própria pesquisa, seja porque a encontrou feita por outrem, em livros, bancos de dados, revistas e outras fontes de informações hoje tão divulgadas”3 .

 

Corroborando esse entendimento encontra-se ementa proferida pelo Tribunal de Ética e Disciplina Seção I da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo, aprovada na 443ª sessão de 18 de abril de 2002 que assim está redigida:

I) JUSTIÇA GRATUITA – PROVA DA NECESSIDADE – RESPONSABILIDADE – DESPESAS – A questão suscitada não é de ordem ética, mas meramente processual, devendo as situações simuladas pelo consulente ser estudadas sob a ótica da jurisprudência judicial pertinente, que neste campo é abundante. II) TRABALHOS FORENSES – MODELOS DE PETIÇÕES – DIREITOS AUTORAIS – Trabalhos forenses de advogados, tais como textos legais, pareceres do Ministério Público, sentenças e acórdãos, não são trabalhos literários suscetíveis de proteção jurídica como direito autoral. São obras que, uma vez apresentadas em Juízo, pelo princípio da publicidade do processo, caem no domínio público. Advertências colocadas ao pé das petições, como a sugerida, sobre serem importunas, não inibem a extração de cópias e eventual reprodução. O que se copia não são os textos, mas as idéias jurídicas, que não soem ser patenteadas”4.

Em que pesem tais argumentos, o que se verifica é uma certa confusão de conceitos, e isto porque a publicidade dada ao trabalho forense feito pelo advogado em decorrência de princípio processual não significa, em hipótese alguma, domínio público. Os conceitos são absolutamente distintos, haja vista que a razão do princípio da publicidade dos atos processuais é garantir aos mesmos, como às decisões proferidas, o conhecimento público.

 

O domínio público, por outro lado, refere-se à utilização da obra por qualquer pessoa sem necessidade de autorização, em virtude da mesma não estar mais sujeita à proteção ou pelo decurso do prazo (artigo 41, Lei 9.610/96), ou então nos casos do autor ter falecido sem deixar herdeiros, ou tratar-se de autor desconhecido (artigo 45, Lei 9.610/96).

 

Em razão disto, o que na realidade se veda, neste caso, não é a extração de cópias reprográficas, eis que esta é permitida em virtude do princípio da publicidade dos atos processuais, e sim a reprodução do texto por outrem, conforme vedação contida no artigo 29, inciso I, da lei de direito autoral, de forma que aquele que reproduz assume indevidamente a autoria do texto.

 

Em realidade, o que se observa em muitos casos é que o advogado, exatamente por se prender a fatos concretos, acaba por criar verdadeiras teses jurídicas, sendo muitas vezes o responsável direto pela transformação da jurisprudência de nossos Tribunais. E nesse sentido, a atividade que desempenha é típica de criação e, portanto, deve merecer a proteção constitucional dada aos direitos de autor.

 

Logicamente que nem sempre haverá manifestação de criação por parte do advogado, vez que em certos casos se restringirá a dizer o direito aplicável àquele fato, nos exatos termos codificados pelas leis em vigor, de forma que estarão ausentes a originalidade exigida para a proteção da obra.

 

Em sendo admissível que os pareceres dados por juristas renomados diante de fatos concretos e da lei constituam expressões da atividade intelectual e científica que independe de censura e licença, constituindo verdadeiras manifestações abraçadas pelo direito de autor, porque restringir essa aplicação às peças apresentadas aos tribunais quando estas constituírem verdadeiras manifestações científicas?

 

Aliás, insista-se, o artigo 7º, inciso I, da Lei 9.610/96 protege como obra intelectual os textos de obra científica expressos por qualquer meio ou fixados em qualquer suporte, tangível ou intangível.

 

É inegável, por outro lado, que muitas peças processuais são obras científicas, de cunho eminentemente jurídico. Porque lhes negar a proteção do direito autoral apenas por ser expressas em processo judicial (se manifestadas através de artigo, livro ou parecer mereceriam tal proteção), quando a lei proíbe a distinção de qualquer meio de expressão, entre eles, obviamente também os processos judiciais? Porque excepcionar quando a lei não permite exceção?

 

Aceitando-se essas manifestações intelectuais como sujeitas às garantias asseguradas pela Constituição e pela própria Lei 9.610/96, que regula os direitos autorais, cumpre tecer algumas considerações sobre os direitos da sociedade de advogados na criação de uma obra individual.

 

E isso porque, em inúmeras vezes, aquele que fez a construção jurídica se utilizou do acervo da sociedade, como arquivos, equipamentos, discussões técnicas sobre a matéria com outros integrantes da sociedade, dentre outros elementos, não sendo possível, por conseguinte, atribuir o trabalho científico formulado única e exclusivamente a esse profissional.

 

Nesse caso, diante da falta de regulamentação específica, aplicar-se-ia, por analogia, o artigo 91, parágrafo 2º, da Lei 9.279/96 (Código de Propriedade Industrial), que dispõe ser “garantido ao empregador o direito exclusivo de licença e exploração e assegurado ao empregado a justa remuneração”.

 

Por óbvio que essa remuneração não pode ser considerada como sendo a remuneração já paga pela sociedade ao advogado, não integrando, da mesma forma, verba trabalhista em sentido estrito, mas sim, participação na eventual exploração da própria obra autoral.

 

E tal solução é a mais plausível, haja vista que, em razão da própria natureza da atividade advocatícia, que é intelectual, no momento em que uma sociedade contrata certo advogado, ou o chama para figurar como um de seus sócios, o faz em razão das qualidades intelectuais apresentadas. Um dos fins buscados pela sociedade é exatamente a criação de teses científicas, para que elas possam servir de teses empíricas para outros casos.

 

De outro lado, na hipótese da tese ter sido criada sem qualquer intervenção da sociedade, ou seja, sem qualquer auxílio material e intelectual, os direitos decorrentes de sua exploração, bem como a sua remuneração, caberá única e exclusivamente àquele que a criou, seguindo os mesmo ditames do Código da Propriedade Industrial (artigo 90).

 

Constata-se, por conseguinte, que muito mais importante do que o imóvel em que se localiza a sociedade e demais bens corpóreos lá presentes, o verdadeiro elemento valorativo da sociedade é a própria atividade intelectual exercida por seus sócios, associados ou empregados, ou seja, o bem incorpóreo trazido pelo profissional através de seu intelecto que, juntamente com os outros bens maiores da sociedade, os clientes, possam resultar num perfeito equilíbrio, através do qual poderá ser atendida a função social da advocacia e da sociedade de advogados.

 

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1Carlos Alberto Bittar, “Direito de Autor”, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2000, 3ª edição revista e ampliada por Eduardo C. B. Bittar, p. 2.

2J. Guimarães Menegale, “A Advocacia Como Arte” in Revista Forense , p.493.

3Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 351.358/DF, 4ª Turma, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, julgado em 04.06.2002, publicado no DJ em 16.09.2002.

4Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP, Seção I, Processo nº E-2.433/01, v.u., parecer e ementa do Relator Dr. Carlos Aurélio Mota de Souza, Revisora Dra. Maria do Carmo Whitaker, Presidente Dr. Robison Baroni.

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Artigo publicado na Revista do Advogado da AASP (12/03).

 

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*Advogada do escritório Ceglia Neto, Advogados

 

 

 

 

 

 

 

 

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