A constitucionalidade do piso salarial paulista e sua repercussão nas relações de trabalho
Manoel Carlos Toledo Filho*
Raul de Mello Franco Júnior**
I. Aspectos constitucionais
Serviu de critério norteador dessa partilha a predominância do interesse a ser atendido ou regulado. Desse modo, é possível verificar entre as competências da União o signo do interesse geral e entre aquelas outorgadas aos Estados, o interesse regional. Também é de fácil constatação, por leitura direta do art. 30 do Texto Maior (clique aqui), que onde se destaca o interesse local emparelham-se as competências Municipais. Ao Distrito Federal permitiu-se cuidar de competências regionais e locais.
A técnica de que lançou mão o constituinte, nessa meticulosa tarefa, foi a de enumerar competências em extensas listas, estatuindo regra de fundo para colmatar as hipóteses sem expressa referência, o que se convencionou chamar de competência residual ou remanescente (outorgadas aos Estados-Membros).
As competências foram, por fim, distribuídas em dois grandes grupos: administrativas (exclusivas e comuns) e legislativas (privativas, concorrentes, suplementares e exclusivas).
Essa breve e necessária digressão acerca da repartição constitucional de competências (assentada, sobremaneira, nos arts. 21 a 30 da Constituição da República) parece-nos suficiente para compreender a constitucionalidade das leis que passaram a instituir pisos salariais no âmbito estadual, sendo do Estado de São Paulo a iniciativa mais recente.
A abordagem do tema obriga, preliminarmente, traçar a distinção entre salário mínimo e piso salarial. O salário mínimo (salário suficiência) e o piso salarial (salário profissional) são apontados na Constituição Federal como direito sociais dos trabalhadores urbanos e rurais. Nos termos da norma programática do art. 7º, inc. IV, o primeiro tem contornos de salário familiar. Deve ser fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender as necessidades vitais básicas desses trabalhadores e de suas famílias, considerando os dispêndios com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. A preservação de seu valor aquisitivo exige reajustes periódicos.
O piso salarial, por sua vez, deve ser proporcional à extensão e à complexidade do trabalho (art. 7º, inc. V, CF). A fixação do piso salarial depende de lei, convenção coletiva, acordo coletivo ou sentença normativa (sucedâneo heterônomo natural da negociação coletiva malfadada), sendo oportuno destacar que a utilização da lei para esse fim já foi objeto de calorosos debates no passado. Hoje, entretanto, é pacífico o entendimento de que o legislador, em iniciativa de caráter protetivo do trabalhador ou para atender certas políticas públicas, pode fixar o piso salarial das categorias profissionais que indicar.
A lei é (no caso do salário mínimo) ou pode ser (no caso do piso salarial), o instrumento formal de imposição de limites compulsórios à autonomia da vontade, no que tange à remuneração do trabalhador. E embora seja possível traçar outras substanciais diferenças entre o salário mínimo (para os trabalhadores em geral) e o piso salarial (para os trabalhadores de profissão, função ou categoria determinadas), é indiscutível que a lei fixadora de um ou de outro é de competência da União. Tal conclusão pode ser extraída da generalidade do interesse e, sobretudo, da inserção da matéria no âmbito do Direito do Trabalho, um dos focos da competência legislativa privativa da União, enumerada no art. 22, inc. I, da Constituição da República.
Mas não há que se confundir competências exclusivas e competências privativas. As últimas, diversamente do que ocorre com as primeiras, são delegáveis. Esta delegação, permitida exclusivamente em favor dos Estados (embora dela também possa usufruir o Distrito Federal, nos moldes do art. 32, parágrafo 1º, CF), depende de lei complementar federal. Tal diploma, espraiando autorização a todos os Estados (negar idêntico tratamento a qualquer deles significaria afrontar a vedação do art. 19, inc. III, do texto matriz), pode franquear-lhes o exercício de competência legislativa sobre questões específicas das matérias relacionadas no reportado art. 22. Esta é a dicção do parágrafo único do mesmo dispositivo, estuário do que se convencionou denominar "competência privativa delegada".
A lei complementar federal nº 103, de 14 de julho de 2000, (clique aqui) lavrou autorização expressa aos Estados e ao DF para "instituir, mediante lei de iniciativa do Poder Executivo, o piso salarial de que trata o inciso V do art. 7° da Constituição Federal para os empregados que não tenham piso salarial definido em lei federal, convenção ou acordo coletivo de trabalho". Pelo menos uma categoria profissional foi expressamente referida na lei autorizadora: a dos empregados domésticos, já anteriormente amparados, no texto constitucional, com a garantia do salário mínimo (art. 7º, parágrafo único, da CF).
O exercício dessa competência, que é facultativo, sofre ainda algumas limitações expressas: a lei estadual não pode ser produzida no segundo semestre do ano em que se verificar eleição para os cargos de Governador dos Estados e do Distrito Federal e de Deputados Estaduais e Distritais e também não pode alcançar a remuneração de servidores públicos municipais. Válidas as cautelas da lei autorizadora, seja como forma de obstar o uso eleitoral da normatização, seja para preservar a autonomia administrativa dos Municípios. É necessário acrescentar, ainda, que o piso remuneratório estabelecido para qualquer categoria indicada na lei não poderá ser inferior ao salário mínimo estabelecido pela legislação federal, sob pena de evidente inconstitucionalidade da regra, haja vista que a idéia norteadora da fixação do piso salarial é ampliar o arco de proteção do trabalhador.
Nesse espaço criado pela autorização federal é que veio a lume, no Estado de São Paulo, a lei nº 12.640, de 11 de julho de 2007 (clique aqui), instituindo, no âmbito estadual, pisos salariais para os trabalhadores de diversas categorias, e cujos efeitos, no âmbito específico das relações de trabalho, serão objeto de análise a seguir.
II. Aspectos trabalhistas
Dentro da órbita das relações de trabalho subordinado – vale dizer, das relações de emprego – não pode haver dúvida de que, o seu ponto mais importante, o seu eixo central, está diretamente relacionado à remuneração devida pelo empregador àquele que lhe presta serviços.
Remuneração é um termo equívoco. Costuma ser utilizado tanto para significar o conjunto de prestações pecuniárias devidas ao empregado, sejam elas fixas ou variáveis, e sujeitas ou não à implementação de condições especiais (horas extras, comissões, gratificações, gorjetas, adicionais), quanto para expressar a contrapartida direta e elementar a ser paga ao laborista (o seu salário, ou ainda, o seu salário-base).
De todo modo, é irrefragável que o pagamento feito ao empregado funciona como justificativa política e jurídica do estado de sujeição fática em que este se coloca. As limitações que o contrato naturalmente estabelece à sua liberdade pessoal - obediência a horários, observância de regras ditadas pelo ambiente patronal, acatamento de uma disciplina mais ou menos rígida de mourejo, inclusive, por vezes, com drástica redução dos momentos de lazer e convivência familiar – somente poderão ser reputadas legítimas na exata medida em que o prestador de serviços seja devidamente remunerado por elas. Do contrário, não se estará diante de uma relação de índole contratual, mas de uma mera exploração abusiva de mão de obra, apta inclusive a sofrer reprimenda penal.
Do exposto acima facilmente se extrai que, se pagar é importante, mais ainda o será o valor mínimo a ser pago. Remunerar menos do que se deve, adimplir um importe insatisfatório, concretizar uma contraprestação pecuniária insuficiente, representa um comportamento que pode ocasionar efeitos tão deletérios quanto nada pagar. E, como corolário, sobressai deste contexto a pertinência e a relevância da referida lei estadual paulista nº. 12.640, que criou três diferentes pisos salariais nesta unidade da Federação (R$ 410,00, R$ 450,00 e R$ 490,00).
Seu objetivo é claro: busca proteger certas categorias específicas de trabalhadores os quais, porque supostamente menos organizados no plano institucional (esfera heterônoma de regulação) ou sindical (esfera autônoma de regulação), necessitariam de uma postura mais pró-ativa do ente federado no resguardo de seus interesses, notadamente do maior deles, a saber, o seu salário (com evidente destaque para os empregados domésticos, uma categoria historicamente desprotegida e, por isto mesmo, sem dúvida a principal beneficiada pela inovação). Daí o motivo, igualmente, da ressalva expressa feita aos servidores públicos, mercê da presunção de que estariam os mesmos desde logo amparados por um arcabouço suficiente de proteção ao conteúdo de sua relação laboral. Tal é o quanto dimana do teor de seu artigo 2º, que ademais apenas reproduz a limitação contida no artigo 1º da supra examinada lei complementar nº. 103 (valendo assinalar que a menção ao contrato de aprendizagem seria inclusive desnecessária, visto que sua disciplina, como ali mesmo se esclarece, é inteiramente regida por lei federal).
E aqui emerge um aspecto bastante importante do novel diploma: ele tem sua eficácia restrita, exclusivamente, àqueles segmentos que, nesta dimensão particular, não possuam normas estatais ou convencionais que lhes sejam específicas. Sem a prévia consecução desta circunstância, o piso salarial estadual não terá incidência. Ou seja, se uma determinada classe de trabalhadores possuir um patamar mínimo remuneratório previsto em Lei, convenção coletiva, acordo coletivo ou sentença normativa, estará, ipso facto, afastada a possibilidade de aplicação do preceito estadual. Em outros termos, a disposição estadual atua somente no vácuo das demais fontes jurígenas que a esta temática sejam correlativas.
Este ponto, porém, é mais complexo do que à primeira vista possa parecer.
Com efeito: um dos princípios universais informadores do direito do trabalho, é o princípio de proteção, em cujo contexto se insere a regra da norma mais favorável, segundo a qual, em havendo dois dispositivos potencialmente incidentes sobre uma determinada relação de emprego, prevalecerá, sempre, aquele que se demonstre mais vantajoso para o empregado. Assim, havendo, por exemplo, uma norma convencional prevendo um adicional de periculosidade da ordem de 30%, e uma norma do regulamento da empresa prevendo este mesmo adicional à razão de 50%, incidirá o último, justamente porque mais favorável ao obreiro.
A regra da norma mais favorável se sedimenta, outrossim, na premissa de que a legislação estatal representa, a rigor, um patamar mínimo, um núcleo pétreo; diante dele, por conseguinte, se poderiam estabelecer mais direitos, ou os mesmos direitos, mas com magnitude superior; nunca menos direitos, ou direitos com magnitude inferior. E, neste passo, cabe então formular a seguinte indagação: se houver, por exemplo, uma convenção coletiva, concernente a uma das categorias profissionais identificadas pela lei n°. 12.640, estabelecendo um piso salarial menor do que aquele garantido pela norma estadual, qual deverá prevalecer ? Vale dizer: a norma incidente, nesta hipótese concreta, poderá ser a menos vantajosa ao trabalhador? Estaríamos aqui, enfim e ao cabo, diante de uma exceção à regra da norma mais favorável?
A rigor, duas linhas de raciocínio podem ser desenvolvidas, em ordem a responder a esta perquirição.
Por primeiro, pode-se argumentar que, na verdade, a regra da norma mais favorável não estaria <_st13a_personname productid="em questão. E" w:st="on">em questão. E isto porque, como já esclarecido, ela necessita, para a sua aplicação, da existência de pelo menos duas normas potencialmente incidentes sobre a relação jurídica de trabalho, o que não se verificaria aqui, na medida em que a lei paulista explicitamente dispõe que seu âmbito de aplicação não atinge relações que já estejam protegidas pela ação de outra fonte legiferante. Logo, em se fazendo presente esta, não ocorreria a potencialidade de incidência do piso estadual, vale dizer, não haveria duas normas em conflito.
A nosso ver, todavia, a conclusão acertada é outra: como a lei 12.640 se vincula à lei complementar federal nº. 103, e como esta, por sua vez, se vincula ao artigo 7º da Constituição Federal, não há como perder de vista o que esclarece o caput deste preceito: "são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social" (destacamos). Ou seja, o constituinte deixou patenteado que qualquer direito que viesse a ser inserido ou criado pela legislação infraconstitucional, deve, impreterivelmente, propiciar um incremento ao patrimônio jurídico do trabalhador. Assim, tendo vigência uma norma prevendo um determinado nível salarial, ela somente poderá ser afastada da relação jurídica que discipline pelo advento de outra norma que, proveniente embora de fonte distinta, aumente o nível salarial <_st13a_personname productid="em questão. Em" w:st="on">em questão. Em suma: a regra da norma mais favorável representa, na realidade, a própria matriz institucional da Lei n°. 12.640.
Por tudo isto, o artigo 2º deste diploma somente pode ser interpretado no sentido de que, os pisos nele previstos, não se aplicam aos trabalhadores que tenham outros pisos definidos em lei federal, convenção coletiva, acordo coletivo ou sentença normativa, desde que, em todos estes casos, os empregados atingidos disponham de níveis salariais mínimos superiores àqueles estabelecidos pelo legislador paulista.
III. Conclusões
1. A lei estadual nº. 12.640 consubstancia um exemplo típico de exercício, pelo legislador federado, da figura da competência privativa delegada;
2. Tal competência, nesta situação específica, tem sua origem e legitimidade calcadas na lei complementar federal nº 103 de 2000, a qual, por sua vez, dimana da autorização contida no parágrafo único do artigo 22 da Constituição Federal, que representa, destarte, sob o aspecto constitucional, a matriz formal de ambos os diplomas;
3. Já a matriz constitucional material de ambas as Leis reside no artigo 7º da Constituição Federal, cujo caput incorpora o princípio universal de proteção, na sua vertente interpretativa de aplicação da norma mais favorável ao trabalhador;
4. Disto resulta que os patamares remuneratórios criados no âmbito estadual, somente poderão ser afastados da esfera jurídica de incidência de seus destinatários, quando os mesmos já possuam ganhos salariais superiores por força de fonte legislativa distinta, seja ela de natureza autônoma ou heterônoma.
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*Juiz do Trabalho, Mestre e Doutor em Direito pela USP e professor da Escola Paulista de Direito Social.
**Promotor de Justiça no Estado de São Paulo, Professor de Direito Constitucional da UNIARA e Mestre em Direito pela UNESP.
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