O Princípio da Isonomia e sua correlata aplicação nas relações jurídicas entre o Fisco e o contribuinte
Luciana Portinari*
Reza o artigo 5º, caput, da Constituição Federal vigente que: "todos são iguais perante a Lei sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes(...)". Depreende-se do mencionado dispositivo constitucional que é assegurada a igualdade a todos os cidadãos, sem distinção alguma.
No sistema tributário nacional, o aludido princípio constitucional possui papel de grande relevo, podendo-se afirmar que constitui a base, o alicerce do conjunto de normas e princípios que regem o direito tributário, estando intimamente relacionado à segurança jurídica que deve experimentar o contribuinte perante o ente tributante, de modo que seja propiciada uma relação jurídica justa e igualitária.
Daí emergem inúmeros princípios que disciplinam o direito tributário, que, reunidos, são denominados "as limitações ao poder de tributar", preconizado pelo artigo 150 da Constituição Federal (clique aqui).
A obrigação de recolher tributos é imposta pelo Poder Público sob o argumento da necessidade de assegurar aos cidadãos os serviços públicos, sendo uma obrigação tão essencial como a que é consagrada à habitação, à alimentação, e à saúde. Afinal de contas, a tributação é veículo pelo qual as finalidades são garantidas por nossa Carta Magna, são financeiramente instrumentalizadas.
Ocorre que é vedado ao Poder Público utilizar o poder de tributar como uma penalidade ao contribuinte, limitando os seus direitos subjetivos, porquanto inexiste qualquer subordinação nesta relação jurídica. Ambos possuem direitos e obrigações recíprocas, livre de qualquer arbitrariedade.
O jurista Roque Antonio Carrazza1 comunga deste entendimento na medida em que ensina: "As pessoas políticas, enquanto tributam, não podem agir de maneira arbitrária e sem obstáculo algum, diante dos contribuintes. Muito pelo contrário: em suas relações com eles, submetem-se a um rígido regime jurídico. Assim, regem suas condutas de acordo com as regras que veiculam os direitos fundamentais e que colimam, também, limitar, o exercício da competência tributária, subordinando-o à ordem jurídica. Vale lembrar, por exemplo, que, por força do art. 5º, XIII, da CF, as leis tributárias não podem criar embaraços abusivos ao livre exercício do trabalho. Também não podem, ainda que por via oblíqua, compelir os contribuintes a se associarem ou a permanecerem associados (art. 5º, XX, da CF). Estes são outros obstáculos que tolhem o exercício das competências tributárias".
Nesta esteira, é o entendimento do jurista Celso Antonio Bandeira de Mello2 que: "a lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos. Este é o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral, ou de modo assimilado pelos sistemas normativos vigentes".
Não obstante, não é o que tem ocorrido nos últimos anos, onde se verifica uma notória desigualdade de tratamento entre o Fisco e o Contribuinte. As violações são incontáveis. Observam-se verdadeiras atrocidades em desfavor dos direitos dos contribuintes, colocando-os em posição absolutamente inferior à Fazenda Pública, que detém alguns privilégios, especialmente em ações de execução fiscal.
Hodiernamente, observa-se um sem número de juristas abordarem o princípio da isonomia no tocante à capacidade contributiva, ou seja, instituição de tratamento desigual entre contribuintes que se encontre em situações equivalentes, proibindo-se qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, nos termos do artigo 150, II da Constituição Federal. No entanto, muitos se esquecem da questão da igualdade, que deve adquirir uma maior relevância em virtude do aumento crescente das situações onde se observam privilégios do Fisco em detrimento dos contribuintes.
Assim, deve-se atribuir outra repercussão ao princípio da isonomia em matéria tributária, a fim de que sejam evitadas situações que caracterizem penalidades arbitrárias aos contribuintes que não estejam em dia com suas obrigações.
Essa visão, com muita felicidade, foi captada pelo jurista Arruda Alvim que afirma: "a igualdade das partes diz-se precipuamente, ou, pelo menos, há de ser formalmente respeitada, no sentido de que sempre aos autores cabem os mesmos direitos e deveres (ônus), e aos réus, da mesma forma". E assim não pode ser diferente quando se tratar de execuções fiscais. Não importa que o sujeito ativo da demanda se trate de pessoa pública que represente um ente público, o contribuinte não pode ser prejudicado por se tratar da parte mais sensível da relação jurídica. Ademais, o Poder Judiciário jamais pode conferir privilégios ao sujeito ativo desta relação por se tratar este de ente vinculado à Administração Pública.
Um inconveniente episódio tem se repetido com muita freqüência no Poder Judiciário, principalmente em primeira instância, qual seja, a forma ilegal como vem sendo adotada a penhora via "Bacen-Jud". Este sistema foi introduzido no ordenamento jurídico com o fito de apresentar mais eficácia nas ações de execução, onde o devedor ou executado, muitas vezes utilizavam-se das lacunas da Lei para protelarem o cumprimento de suas obrigações. Com a denominada "penhora on line", o credor pode acelerar o procedimento e obter a eficaz prestação jurisdicional, todavia, dentro dos limites legais estipulados. É de suma relevância se ater à expressão “dentro dos limites legais estipulados”, já que não é isso que se constata, por vezes, na área tributária.
É cediço que a carga tributária tem aumentado dia após dia, e muitas vezes, os empresários não conseguem, ao fim do exercício, aferir lucro da atividade que desempenham, cumprir suas obrigações trabalhistas, demais obrigações, honrar com a subsistência familiar e pontualmente recolher os tributos, enfim, acabam por inadimplentes com o Fisco, estando sujeitos ao ajuizamento de uma execução fiscal. Daí surgem os grandes problemas que podem perseguir o empresário por um longo período.
As conseqüências de uma ação desta natureza podem ser drásticas ao empresário, seja em relação à pessoa jurídica da qual faça parte, seja como pessoa física, justamente por haver essa disparidade de tratamento entre o Exeqüente (Fisco) e o Executado (contribuinte).
O exemplo acima mencionado, qual seja, a penhora pelo sistema "Bacen-Jud" poderia, de fato, ser muito eficaz nos processos de execução, contudo, o seu modus operandi reveste-se de patente arbitrariedade. Em que pese a ilegalidade não referir-se ao procedimento per si, conquanto a penhora de dinheiro, encontra-se elencada preferencialmente na relação contida no artigo 11, I, da Lei de Execuções Fiscais, Lei nº 6.830/80, a forma como se tem adotado não é a forma adequada, pois pressupõe quebra de sigilo bancário.
A "penhora on line", através do sistema "Bacen Jud" fere frontalmente os princípios da utilidade, da limitação e da dignidade humana, de modo que toda execução tem por finalidade apenas a satisfação do direito do credor, não devendo atingir senão uma parcela do patrimônio do devedor, porquanto muitos Juízos tem admitido referido procedimento, sem antes exaurir outros meios de se obter a garantia necessária à execução fiscal. É inadmissível que o credor empregue a execução para imputar simples castigo e sacrifício do devedor, e ainda é intolerável que os meios adotados se incompatibilizem com a dignidade humana.
É incompreensível que os magistrados concordem com exorbitantes penalidades que causam conseqüências econômicas extremamente prejudiciais, eis que o devedor restará impedido de dispor do patrimônio que excede a sua dívida efetiva, ferindo frontalmente o direito de propriedade, do cidadão dispor livremente de seus bens.
É de suma importância que, especificamente nestes casos da penhora on line, se observe o artigo 620 do Código de Processo Civil, que estabelece que a execução deve ocorrer da maneira menos gravosa ao devedor. Deve o Fisco, antes de tomar qualquer medida drástica, diligenciar a busca de bens do devedor para garantir as dívidas fiscais. É este o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, ao proclamar expressamente que o preceito sobre gradação dos bens sujeitos à penhora é "norma que há de ser interpretada em consonância com o princípio geral que se acha consagrado no artigo 620 do CPC" (STJ, RMS nº 28-SP, 2ª T., Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU, 25.6.90).
Desta forma, a constrição de numerário em valor superior à dívida do contribuinte via "Bacen Jud", caracteriza notoriamente prática de ato ilícito nos ditames do artigo 187 do Código Civil vigente, in verbis: "Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".
Muitas vezes se constata um enorme esforço por parte da Fazenda Pública em levantar bens passíveis de garantir o procedimento da execução fiscal, contudo, sem a obtenção de êxito. Porém, outras vezes, com maior freqüência, se observa que ao invés de diligenciar em todos os órgãos onde possam se encontrar bens do executado passíveis de garantir o procedimento executivo, a Fazenda Pública, por absoluta inércia, pleiteia ao Juízo competente a inclusão do sócio, administrador ou gerente da empresa executada no pólo passivo da demanda executiva, mesmo sem haver comprovação de que este agiu com dolo ou excesso de poderes que justificassem a inclusão (nos termos do artigo 135 do Código Tributário Nacional), e pasmem, obtém a tutela jurisdicional para tanto, restando o sócio, administrador ou gerente com seu nome incluído no feito, sem possuir efetivamente, qualquer responsabilidade tributária.
A prática vem sendo adotada com a finalidade de coagir os sócios, administradores e gerentes a garantir o débito fiscal, já que a inclusão de seus nomes nas execuções ficais, inequivocadamente, macula a imagem e o bom conceito tido perante terceiros. O que mais causa perplexidade é que na grande maioria das vezes os magistrados concordam com a medida e acabam por deferir a inclusão sem averiguar se realmente estes se tratam dos responsáveis tributários da suposta dívida, em que pese o entendimento jurisprudencial predominante do Superior Tribunal de Justiça, que já pronunciou o entendimento de que a prática é ilegal, em decisão pacificada pela 1ª Seção, cuja relatoria coube ao Ministro José Delgado, conforme o Acórdão proferido em Embargos de Divergência processo nº 2003/0150650-4, publicado no DJ em 19.04.2004, vejamos:
"TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. EXECUÇÃI FISCAL. RESPONSABILIDADE DE SÓCIO-GERENTE. LIMITES. ART. 135, III, do CTN.
PRECEDENTES.
1. Os bens do sócio de uma pessoa jurídica comercial não respondem, em caráter solidário, por dívidas fiscais assumidas pela sociedade. A responsabilidade tributária imposta por sócio - gerente, administrador, diretor ou equivalente só se caracteriza quando há dissolução irregular da sociedade ou se comprova infração à lei praticada pelo dirigente.
2. Em qualquer espécie de sociedade comercial é o patrimônio social que responde sempre e integralmente pelas dívidas sociais. Os diretores não respondem pessoalmente pelas obrigações contraídas em nome da sociedade, mas respondem para com esta e para com terceiros, solidária e ilimitadamente, pelo excesso de mandato e pelos atos praticados com violação do estatuto ou da lei (art. 158, I e II, da Lei nº 6.404/76).
3. De acordo com o nosso ordenamento jurídico-tributário, os sócios (diretores, gerentes ou representantes da pessoa jurídica) são responsáveis, por substituição, pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes da prática de ato ou fato eivado de excesso de poderes ou com infração de lei, contrato social ou estatutos, nos termos do art. 135, III, do CTN.
4. O simples inadimplemento não caracteriza infração legal. Inexistindo prova de que se tenha agido com excesso de poderes, ou infração de contrato social ou estatutos, não há falar-se em responsabilidade tributária do ex-sócio a esse título ou a título de infração legal. Inexistência de responsabilidade tributária do ex-sócio.
5. Precedentes desta Corte Superior.
6. Embargos de divergência rejeitados."
O que se tem observado junto aos advogados que militam na área tributária, é que cada vez mais aumenta a dificuldade na batalha em defesa dos contribuintes, pois estes, ainda que sejam devedores, jamais podem ser penalizados por estarem impossibilitados do cumprimento das obrigações tributárias, considerando a alta carga tributária a que está exposto. Observa-se que o Fisco vem adquirindo cada vez mais privilégios e consequentemente poderes ao executar seus créditos judicialmente, e infelizmente o Poder Judiciário, muitas vezes, se omite e acolhe as arbitrárias e absurdas pretensões da Fazenda Pública em desfavor do contribuinte, ferindo flagrantemente o princípio da isonomia ao qual todos os cidadãos estão expostos. É de suma importância que a nossa Suprema Corte se pronuncie a respeito dessa afronta ao dispositivo constitucional da isonomia entre o Fisco e o contribuinte.
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1 In "Curso de Direito Constitucional Tributário", 20ª Edição, ed. Malheiros.
2 In "Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade", p. 14
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*Advogada Tributarista do escritório Erik Bezerra Advogados
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