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Cirurgia de redesignação sexual e sua cobertura pelos planos de saúde

A jurisprudência pátria já estabeleceu parâmetros mínimos quanto à obrigatoriedade de cobertura da cirurgia de redesignação sexual pelos planos de saúde

3/4/2025

A transexualidade é definida pela OMS - Organização Mundial de Saúde como um tipo de transtorno de identidade de gênero, em que a pessoa se apresenta socialmente por gênero diverso daquele que lhe foi atribuído quando do nascimento.

Recebe, na lista de classificação internacional de doenças, a classificação CIM-10. Já no Brasil, o processo transexualizador decorre do diagnóstico de transtornos da identidade sexual, recebendo a classificação CID10 F.64.

No âmbito jurídico, o STJ, acolhendo parecer do Ministério Público Federal, estabeleceu, recentemente, que ¨É descabida a preponderância, tal qual se deu no acórdão impugnado, de um fator meramente biológico sobre o que realmente importa para a incidência da Lei Maria da Penha1, cujo arcabouço protetivo se volta a julgar autores de crimes perpetrados em situação de violência doméstica, familiar ou afetiva contra mulheres. (...) A vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos não pode ser resumida tão somente à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas e o Direito não se deve alicerçar em argumentos simplistas e reducionistas. (...) Por outro lado, sexo refere-se às características biológicas dos aparelhos reprodutores feminino e masculino, bem como ao seu funcionamento, de modo que o conceito de sexo, como visto, não define a identidade de gênero. Em uma perspectiva não meramente biológica, portanto, mulher trans mulher é.¨ ( REsp n. 1.977.124/SP2, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 5/4/2022, DJe de 22/4/2022 - grifei).

Nessa mesma linha, o TJ/SP estabeleceu que a ¨transexualidade é fenômeno social, assistindo a seus portadores o direito de inserção na sociedade, protegidos de preconceitos e discriminações¨ (TJSP; Apelação Cível 1006613-44.2022.8.26.01003; Data do Julgamento: 19/01/2023). Decidiu, também, que o processo transexualizador relaciona-se com o preceito fundamental da dignidade da pessoa humana, bem como com a proteção à saúde mental, sendo que a regulamentação de tal processo pelo SUS afasta qualquer tentativa de qualificar a transgenitalização como de natureza meramente estética ( Apelação Cível n. 1012897-45.2019.8.26.05624 - 23/01/2020).

No campo específico da saúde suplementar, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) garante a ¨cobertura de alguns dos procedimentos que se encontram listados no rol vigente e não possuem diretriz de utilização, uma vez indicados pelo seu médico assistente. Neste sentido, procedimentos como MASTECTOMIA; HISTERECTOMIA; OOFORECTOMIA OU OOFOROPLASTIA; TIROPLASTIA, dentre outros, que constam listados no rol sem Diretriz de Utilização e não possuem qualquer restrição de cobertura expressa no nome do procedimento, nos termos do Art. 6º, § 1º, inciso I, da RN nº 465/2021, serão de cobertura obrigatória quando solicitados pelo médico assistente, ainda que no âmbito do processo transexualizador¨ (PARECER TÉCNICO Nº 26/GEAS/GGRAS/DIPRO/2021).

Reforçando a garantia de cobertura do processo transexualizador pelos planos de saúde, o Superior Tribunal de Justiça fixou os seguintes parâmetros jurídicos:

1.Ilegalidade da exclusão contratual de cobertura de cirurgia de redesignação sexual: AgInt no AREsp n. 1.713.875/SP5

2.Reembolso integral de cirurgia de redesignação sexual realizada fora da rede credenciada do plano de saúde nos casos de negativa abusiva de cobertura de cirurgia urgente: REsp n. 1.840.515/CE6.

3.Cabimento de dano moral nos casos de negativa de cobertura de cirurgia urgente de redesignação sexual: AgInt no AREsp n. 1.865.767/PE7

4.É o médico assistente quem define e decide acerca da necessidade de realização da cirurgia de redesignação sexual e não o plano de saúde: AgInt no AREsp 1.658.454/SP8.

5.Cabe aos planos de saúde garantir o custeio de materiais ligados diretamente ao ato cirúrgico de redesignação sexual: AgInt no REsp n. 1.962.073/SP9.

6.Cabe aos planos de saúde garantir o custeio de medicamentos relacionados à cirurgia de redesignação sexual: AgInt no REsp n. 2.004.990/SP10.

Da mesma forma, a jurisprudência recente dos Tribunais de Justiça tem refutado as teses utilizadas pelos planos de saúde para negar a cobertura da cirurgia de transgenitalização, principalmente as teses de que tal procedimento teria natureza meramente estética, sem funcionalidade e de que estaria fora do rol de procedimentos da ANS:

APELAÇÃO CÍVEL – Plano de saúde – Cobertura assistencial – Cirurgia transexualizadora – Paciente com indicação médica – Cirurgia que não possui caráter meramente estético, mas funcional – Parecer favorável do NatJus/SP para a realização da cirurgia nas condições do autor – Alegada ausência de previsão expressa no rol da ANS - Irrelevância – Aplicação da Súmula 10211 deste Egrégio Tribunal – Precedentes – RECURSO DESPROVIDO. (TJSP; Apelação Cível 1000406-60.2020.8.26.056512; Relator (a): Fernando Reverendo Vidal Akaoui; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Privado; Foro de São Caetano do Sul - 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 20/03/2023; Data de Registro: 20/03/2023)

PLANO DE SAÚDE – Beneficiária mulher transgênero – Indicação médica para tratamentos cirúrgicos para fins de redesignação sexual - Sentença de procedência - Insurgência da ré - Não acolhimento - Recusa fundada na ausência de cobertura contratual e de previsão no rol da ANS – Abusividade - Recusa indevida – Incidência da Súmula 10213 deste E. Tribunal de Justiça - Procedimentos que constam expressamente do Anexo I do rol de procedimentos e eventos em saúde, previstos na resolução nº 465/202114 da ANS - Parecer da própria ANS que determina a cobertura de procedimentos relacionados à transgenitalização - Precedentes desta E. Câmara - Sentença mantida - Recurso desprovido. (TJSP; Apelação Cível 1114264-72.2021.8.26.010015; Relator (a): Marcus Vinicius Rios Gonçalves; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 31ª Vara Cível; Data do Julgamento: 21/11/2022; Data de Registro: 21/11/2022)

APELAÇÃO – PLANO DE SAÚDE – Ação de indenização por danos materiais morais – Pretensão de reembolso de despesas do procedimento de mastectomia masculinizadora e condenação da ré em danos morais – Sentença de parcial procedência – Insurgência da operadora de saúde – Rejeição – Abusividade da negativa – Mastectomia que se encontra prevista no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS, inclusive quando indicada como parte de processo transexualizador – Inteligência dos Pareceres Técnicos nº 26/GEAS/GGRAS/DIPRO/2019, e nº 9/GEAS/GGRAS/DIPRO/2019 – Obrigação de reembolso reconhecida – Impossibilidade de reembolso nos limites do contrato ou limitado ao que seria pago aos prestadores credenciados – Reconhecimento da necessidade de reembolso integral, ante a desídia da operadora de saúde – Sentença mantida – NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO. (TJSP; Apelação Cível 1018955-27.2021.8.26.000216; Relator (a): Alexandre Coelho; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional II - Santo Amaro - 14ª Vara Cível; Data do Julgamento: 04/11/2022; Data de Registro: 04/11/2022)

APELAÇÃO - PLANO DE SAÚDE – Segurada diagnosticada com desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e com tendência à automutilação – Indicação médica para cirurgia de transgenitalização, do tipo neoconvulvoplastia – Negativa de cobertura – Impossibilidade – Havendo a cobertura da doença não poderá o plano de saúde limitar seu tratamento, negando-se ao custeio ou restringindo-se o número de sessões – A eleição da melhor terapêutica está sob a responsabilidade do médico e não do plano de saúde – Aplicação da Súmula 10217 deste Tribunal de Justiça – Precedentes dessa Corte de Justiça. Sentença mantida. Recurso desprovido. (TJSP; Apelação Cível 1004673-24.2020.8.26.029118; Relator (a): Hertha Helena de Oliveira; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Foro de Jaboticabal - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 29/03/2022; Data de Registro: 30/03/2022)

AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER COMBINADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – Plano de assistência à saúde – Autor transexual masculino que pretende realizar mastectomia bilateral – Procedimento negado pelo plano - Sentença que julgou a ação procedente em parte, condenando a requerida ao fornecimento do tratamento e ao pagamento de indenização por danos morais fixada em R$ 25.000,00 – Insurgência de ambas as partes – Negativa de cobertura – Ausência de previsão do tratamento no rol de agência reguladora (ANS) – Irrelevância – Abusividade manifesta (Súmula nº 10219 desta C. Corte de Justiça) – Danos morais devidos e fixados em valor adequado e atender aos parâmetros deste Tribunal em casos análogos. RECURSO DO AUTOR E DA REQUERIDA IMPROVIDOS. (TJSP; Apelação Cível 1005619-75.2019.8.26.066420; Relator (a): Miguel Brandi; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Privado; Foro de Votuporanga - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 21/02/2020; Data de Registro: 21/02/2020)

Conclusão

Ante o exposto, constata-se que a jurisprudência pátria já estabeleceu parâmetros mínimos quanto à obrigatoriedade de cobertura da cirurgia de redesignação sexual pelos planos de saúde, razão pela qual eventual negativa é passível de revisão judicial.

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1 https://www.jusbrasil.com.br/legislacao/95552/lei-maria-da-penha-lei-11340-06

2 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1473961621

3 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-sp/1741004246

4 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-sp/886190472

5 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1264591070

6 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1135140646

7 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1266152814

8 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1101094444

9 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1674049257

10 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1922820039

11 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-sp/sumulas/sumula-n-102-do-tj-sp/1571912978

12 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-sp/1100983877

13 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=sumula+102

14 https://www.jusbrasil.com.br/legislacao/1277694818/resolucao-465-2021-rio-de-janeiro-rj

15 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-sp/1704896934

16 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-sp/1679481737

17 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=sumula+102

18 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-sp/1442084241

19 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=sumula+102

20 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-sp/813811695

Amanda Fonseca Perrut
Advogada com mais de 20 anos de experiência, é fundadora da Fonseca Perrut Advocacia, com atuação em todo o Brasil.

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