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Abusividade da limitação de sessões terapêuticas pelos planos de saúde

O artigo analisa a jurisprudência consolidada do STJ que considera abusiva a limitação de sessões terapêuticas por planos de saúde com base no rol da ANS.

13/3/2025

1. Introdução

A saúde, enquanto direito fundamental previsto no art. 196 da CF/88, encontra na saúde suplementar um importante complemento ao sistema público. Contudo, a relação entre beneficiários e operadoras de planos de saúde frequentemente se torna conflituosa quando há restrição de coberturas essenciais ao tratamento adequado de doenças, especialmente as de natureza crônica ou que demandam acompanhamento contínuo.

Um dos pontos mais controversos nessa seara refere-se à limitação de sessões terapêuticas pelas operadoras com base no rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar. Essa prática tem sido reiteradamente enfrentada pelo Poder Judiciário, que vem consolidando entendimento pela abusividade dessas limitações quando comprometem a eficácia do tratamento prescrito pelo profissional médico.

O art. 10, §4º, da lei 9.656/1998 estabelece que a amplitude das coberturas, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será definida por normas editadas pela ANS. Esse dispositivo fundamenta a competência normativa da agência para estabelecer as coberturas mínimas obrigatórias, materializada no rol de procedimentos. Contudo, é crucial compreender que, apesar de sua relevância normativa, o rol não pode ser interpretado como uma lista taxativa e imutável, mas como um conjunto de coberturas mínimas a serem garantidas pelas operadoras.

A discussão sobre a natureza jurídica do rol da ANS - se taxativa ou exemplificativa - ganhou novos contornos com a lei 14.307/22, que alterou a lei 9.656/1998. Contudo, mesmo antes dessa alteração legislativa, o STJ já havia consolidado entendimento no sentido de que o rol não poderia ser utilizado como instrumento de negativa de cobertura para tratamentos necessários à saúde do beneficiário, especialmente quando prescritos por médico assistente.

2. A jurisprudência do STJ sobre a limitação de sessões terapêuticas

A análise da jurisprudência recente do STJ revela uma sólida orientação no sentido de considerar abusiva a limitação do número de sessões terapêuticas quando tal restrição compromete a eficácia do tratamento prescrito pelo médico assistente.

A 3ª turma do STJ tem reiteradamente se posicionado contra a limitação de sessões terapêuticas. No julgamento do REsp 2096898/PE, relatado pela ministra Nancy Andrighi e julgado em outubro de 2023, o colegiado afirmou categoricamente que considera abusiva qualquer cláusula contratual ou ato da operadora de plano de saúde que resulte na interrupção de tratamento por esgotamento do número de sessões anuais previstas no rol de procedimentos da ANS, quando não alcançados os objetivos terapêuticos estabelecidos pelo médico que acompanha o paciente.

Este entendimento foi reafirmado no AgInt no REsp 2.117.195/PB, relatado pelo ministro Moura Ribeiro e julgado em abril de 2024, onde se destacou que o STJ possui entendimento pacífico considerando abusiva a cláusula contratual que limita o número de sessões terapêuticas necessárias para o restabelecimento da saúde do usuário do plano, independentemente do tipo de terapia, seja ela fonoaudiológica, fisioterápica, psicológica ou ocupacional.

Em consonância com a 3ª turma, a 4ª turma do STJ também tem decidido pela abusividade da limitação de sessões terapêuticas. No AgInt no AREsp 2.559.559/RJ, relatado pelo ministro Raul Araújo e julgado em agosto de 2024, o colegiado assentou que a jurisprudência da Corte considera abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita o número de sessões de tratamento sem justificativa técnica adequada, por restringir direito essencial ao restabelecimento da saúde do consumidor.

Esse posicionamento já havia sido consolidado em julgamentos anteriores, como no AgInt no AREsp 2021667/RN, relatado pela ministra Maria Isabel Gallotti (julgado em novembro de 2022), e no AgInt no AREsp 1.958.875/MS, relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão (julgado em março de 2022).

3. Fundamentos jurídicos para a consideração da abusividade

A relação entre beneficiários e operadoras de planos de saúde é indiscutivelmente uma relação de consumo, submetida às normas protetivas do CDC, conforme pacificado pela súmula 608 do STJ, que estabelece a aplicação do CDC aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão.

Nesse contexto, o art. 51, IV, do CDC estabelece que são nulas de pleno direito as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade. A limitação arbitrária de sessões terapêuticas, sem considerar a real necessidade do paciente conforme prescrição médica, configura cláusula que coloca o consumidor em desvantagem exagerada e compromete a finalidade essencial do contrato de plano de saúde: garantir assistência adequada à saúde do beneficiário.

O CC, em seus arts. 421 e 422, estabelece que a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato e que os contratantes são obrigados a guardar, tanto na conclusão do contrato como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. A limitação de sessões terapêuticas de forma arbitrária viola a função social do contrato de plano de saúde, que deve primordialmente garantir a assistência adequada à saúde do beneficiário. Além disso, frustra a legítima expectativa do consumidor que contrata um plano de saúde esperando receber cobertura para tratamentos necessários ao restabelecimento ou manutenção de sua saúde.

A saúde é direito fundamental previsto no art. 196 da CF/88, que estabelece a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Embora esse dispositivo estabeleça primordialmente um dever do Estado, a jurisprudência reconhece que o direito fundamental à saúde irradia seus efeitos também para as relações privadas, especialmente nos contratos de planos de saúde, que possuem relevância pública reconhecida pela própria CF em seu art. 197.

4. Especificidades das terapias frequentemente limitadas

Tratamentos como psicoterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional são frequentemente alvo de limitações por parte das operadoras de planos de saúde. Conforme entendimento consolidado no TJ/DFT, as sessões desses tratamentos não podem ser limitadas quantitativamente, pois devem perdurar enquanto houver indicação médica, sendo considerada abusiva qualquer cláusula contratual que estipule o contrário.

No caso de fisioterapia e tratamentos para condições crônicas ou degenerativas, como autismo, paralisia cerebral, entre outras, a limitação de sessões revela-se ainda mais prejudicial, pois frequentemente esses tratamentos precisam ser mantidos por períodos prolongados ou até mesmo indefinidamente.

No AgInt no AREsp 1.575.837/SP, relatado pelo ministro Marco Aurélio Bellizze e julgado em fevereiro de 2021, o STJ reafirmou que a limitação de sessões de tratamento viola o CDC, não apenas por impedir o restabelecimento da saúde do paciente, mas também por transferir ao consumidor, considerado o elo mais fraco da relação, os riscos da atividade econômica assumida pelo fornecedor.

Para os beneficiários, o entendimento consolidado do STJ representa uma importante garantia de acesso continuado a tratamentos essenciais para sua saúde. Quando o médico assistente prescreve um número de sessões terapêuticas superior ao previsto no rol da ANS, e a operadora nega a cobertura com base nessa limitação, o beneficiário pode recorrer ao Judiciário com significativa probabilidade de êxito.

Para as operadoras, a jurisprudência pacificada sinaliza a necessidade de revisão de práticas de gestão e de cláusulas contratuais que estabeleçam limitações rígidas de sessões terapêuticas. A adequação dessas práticas ao entendimento judicial pode reduzir a judicialização e seus custos associados, além de promover melhor relacionamento com os beneficiários.

5. Conclusão

A jurisprudência do STJ consolidou-se no sentido de considerar abusiva a cláusula contratual ou o ato da operadora de plano de saúde que interrompe terapias por esgotamento do número de sessões anuais previstas no rol da ANS. Esse entendimento fundamenta-se na aplicação conjunta do CDC, dos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato, e da proteção ao direito fundamental à saúde.

A continuidade do tratamento prescrito pelo médico assistente, sem limitações quantitativas arbitrárias, é essencial para a efetividade do contrato de plano de saúde, cuja finalidade precípua é garantir assistência adequada à saúde do beneficiário. Qualquer restrição que comprometa essa finalidade revela-se abusiva e sujeita à intervenção judicial para restabelecimento do equilíbrio contratual e proteção do consumidor.

As operadoras de planos de saúde devem adaptar suas práticas a esse entendimento jurisprudencial, reconhecendo que a cobertura integral do tratamento necessário, conforme prescrição médica, é parte essencial de sua obrigação contratual. Essa adaptação não apenas reduzirá a judicialização da saúde suplementar, mas também contribuirá para a efetividade do sistema de saúde brasileiro como um todo.

Por fim, cabe aos beneficiários conhecerem seus direitos e, quando necessário, buscarem a tutela judicial para garantir o acesso ao tratamento adequado, fundamental para o pleno exercício do direito à saúde constitucionalmente assegurado.

Otavio Ribeiro Coelho
Advogado em São Paulo/SP. Mestre em Processo Civil pela PUC/SP. Especialista em Processo Civil pela USP. Especialista em Direito Civil pela PUC/MG. Bacharel em Direito pelo Mackenzie/SP.

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