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O novo trabalho noturno (Convenção 171 Da OIT / D. 5005/04)

Por Decreto (5.005, de 08/03/04) foi incorporada ao ordenamento jurídico nacional, sem qualquer ressalva, a Convenção n. 171 da OIT, que traz novas diretrizes para o trabalho noturno.

2/4/2004

 

O novo trabalho noturno

 

(Convenção 171 Da OIT / D. 5005/04)

 

 

Mário Gonçalves Júnior*

Por Decreto (5.005, de 08/03/04) foi incorporada ao ordenamento jurídico nacional, sem qualquer ressalva, a Convenção n. 171 da OIT, que traz novas diretrizes para o trabalho noturno.

 

Não veio em boa hora, politicamente falando, quando ainda não se definiu no País a agenda da tão esperada reforma trabalhista no Congresso Nacional. Melhor seria que toda a legislação trabalhista fosse revista num só momento, ou em etapas (mas em blocos), a começar pelo Direito Coletivo do Trabalho (depois o Direito Individual do Trabalho etc.), como, aliás, era a intenção do Governo Federal, apoiada nas discussões do Fórum Nacional do Trabalho.

 

Isto poderá gerar, na melhor das hipóteses, algum desconforto quando chegar finalmente o momento de se rever a legislação do trabalho, porque os itens “1” e “2” do artigo 14 da COnvenção 171 da OIT estabelecem que, uma vez ratificada pelos Estados-membros, só poderá ser denunciada passados “dez anos da entrada em vigor mediante comunicado ao Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho e por ele registrado”, ainda assim, essa denúncia surtirá efeito um ano após o registro.

 

Isto significa que a pauta da futura reforma trabalhista no país, qualquer que venha a ser, não poderá contrariar as novas disposições da referida Convenção Internacional. Antes mesmo de atualizar a legislação, de certa forma, portanto, acabamos por estabelecer e admitir, por assim dizer, algumas “cláusulas pétreas decenais” na legislação ordinária do trabalho.

 

Por sorte, pela redação de alguns dispositivos, tudo indica que essa Convenção, embora já integralmente vigente entre nós, não terá eficácia imediata em qualquer de suas normas.

 

Com efeito, as regras da Convenção 171 da OIT, que versam sobre a tutela do trabalho noturno, foram incorporadas integralmente à legislação brasileira por força do artigo 1o. do Decreto Federal 5.005 de 08/03/04: “A Convenção n. 171 da Organização Internacional do Trabalho relativa ao Trabalho Noturno, adotada em Genebra em 26 de junho de 1990, apensa por cópia ao presente Decreto, será executada e cumprida tão inteiramente como nela se contém”.

 

O legislador nacional, portanto, não exerceu as duas faculdades de flexibilização do alcance da Convenção 171, previstas nos seus artigos 2, item 2, e 3, item 2: nem a exclusão de outras categorias profissionais, além das já afastadas na própria Convenção (agricultura, pecuária, pesca, transportes marítimos e navegação interior), nem a possibilidade de implementação progressiva das medidas e direitos protecionistas contidos nos itens 4 a 10.

 

Certamente há muitos aspectos que merecerão exame profundo, não apenas em relação ao conteúdo em si dos novos direitos dos trabalhadores noturnos, como, também, a sua acomodação à legislação nacional até então vigente. Não é uma tarefa para uma primeira e apressada análise, nem se poderia ter a pretensão de esgotá-la aqui, quando a comunidade jurídica ainda aguarda o posicionamento da melhor doutrina trabalhista, as decisões da Justiça Especializada sobre a legislação ordinária, e do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional, que virão bem mais tarde.

 

Mas, como dizíamos, o primeiro aspecto, o mais importante da Convenção 171, encontra-se no item 2 do artigo 11: “Quando as disposições desta Convenção forem aplicadas por meio da legislação, deverão ser previamente consultadas as organizações mais representativas de empregadores e de trabalhadores”.

 

Pelo teor taxativo dessa norma (“deverão ser”), uma primeira interpretação possível é no sentido de que todas as normas dessa Convenção não são autoaplicáveis. Ou seja, a Convenção 171, mesmo incorporada à legislação nacional, teria eficácia contida, dependente de acordos ou convenções coletivos de trabalho. Para as categorias que não aderirem ou disciplinarem as medidas e direitos da Convenção 171 em suas normas coletivas, permaneceriam em vigor as normas sobre trabalho noturno da legislação posta, integralmente.

 

O artigo 1 da mesma Convenção, ao conceituar “trabalho noturno” (letra “a”) e “trabalhador noturno” (letra “b”) também remete o tema para uma espécie de prévio referendo sindical, utilizando-se novamente da expressão “mediante consulta prévia com as organizações mais representativas de empregadores e de trabalhadores, ou através de convênios coletivos” (a estranheza dessas expressões em relação à linguagem técnica que costumamos utilizar em Direito Coletivo do Trabalho provavelmente se deve mais à tradução do texto original da Convenção do que a eventuais discrepâncias com institutos nomeados tradicionalmente no Brasil por “negociação coletiva” ou “acordos e convenções coletivas de trabalho”). Vale ressaltar, ademais, que o texto da convenção neste particular afina-se com nosso ordenamento, pois o Ministério do Trabalho não pode, desde a Constituição de 1988, interferir no conteúdo das convenções coletivas de trabalho, sendo obrigado a depositá-las uma vez presentes seus requisitos formais.

 

A segunda interpretação possível para esse dispositivo é a de que a consulta às entidades representativas deve ser prévia em relação à legislação que incorpora a Convenção ao ordenamento jurídico de cada país, o que, além de não parecer coerente, seria inócuo no exemplo brasileiro, cujo processo legislativo não contém, em seu iter, essa etapa ou condição (prévia consulta a entidades sindicais) para a validade e eficácia de nossas normas jurídicas. A única hipótese prevista na Constituição Federal de referendo ou plebiscito (art. 14, I e II), mediante prévia autorização do Congresso Nacional (art. 49, XV), regulamentada pela Lei 9.709/98 não prevê a submissão de projetos de lei ou atos legislativos a determinados grupos organizados (como sindicatos), mas a todo o povo (Art. 2o.: “Plebiscito e referendo são consultas formulares ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa”).

 

Enfim, essa é a questão mais importante, porque dela depende a eficácia (plena ou contida) de todas as normas da Convenção 171. Em nossa opinião, as disposições da Convenção 171 da OIT só terão eficácia se forem adotadas expressamente em convenções ou acordos coletivos de trabalho, prevalecendo as normas legais ou contratuais que vêm sendo obedecidas enquanto negociações coletivas não se consumarem (ou prevalecendo os instrumentos coletivos eventualmente já existentes e que versem sobre a matéria).

 

Note-se que a Constituição Federal brasileira não só “reconhece” as convenções e acordos coletivos de trabalho (art. 7o., XXVI), como foi inspirada, dentre outros princípios, pelo da flexibilização das condições de trabalho, que só é temperado pelo princípio da melhoria das condições do trabalhador. Assim, a expectativa mais factível (fosse possível arriscar com um mínimo de segurança um prognóstico para a jurisprudência que interpretará esta Convenção) é no sentido de que serão aplicadas as normas da Convenção 171 somente se houver acordo ou convenção coletiva de trabalho, ainda assim, respeitando o que vier a ser negociado, até porque categoria a categoria não só é permitido como é de se esperar (é necessário) que seja adaptada a implementação de um novo trabalho noturno.

 

Aliás, o item “1” do artigo 2 da própria Convenção deixa transparecer que a implementação deverá mesmo ser adequada categoria a categoria (utilizando, mais uma vez, a expressão “consulta prévia às organizações representativas dos empregados e dos trabalhadores interessados”), “quando essa aplicação apresentar (...) problemas particulares e importantes”.

 

Não vemos, concluindo, qualquer alteração do regime de trabalho noturno ditada direta e imediatamente pela Convenção 171 da OIT, tudo dependendo, ainda, de acordos e convenções coletivas de trabalho, caso a caso.

 

A interpretação do conteúdo e alcance das novas normas sobre o trabalho noturno em si demandará outras tantas reflexões, a seu tempo.

 

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* Advogado do escritório Demarest e Almeida Advogados

 

 

 

 

 

 

 

 

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