É notório que há muito se discute no Judiciário os limites da multa fiscal qualificada, aplicada em casos de sonegação, fraude ou conluio, e a sua incidência sobre a totalidade ou a diferença do tributo não pago, não recolhido, não declarado ou declarado incorretamente.
É nesta esteira que, considerando a necessidade de concretização da norma constitucional que veda o confisco em matéria tributária (art. 150, IV, da CF), o STF fixou, em 30/10/15, a repercussão geral desta matéria (Tema 863). Referido tema foi julgado pela corte no dia 3/10/24, tendo o acórdão sido publicado no dia 29/11/24, onde, por unanimidade, fixou-se o limite de 100% do débito tributário para a multa qualificada, aplicada em caso de fraude, sonegação ou conluio, podendo chegar a 150% em caso de reincidência.
Inicialmente, considerando a complexidade da matéria e suas inúmeras nuances e miríades de classificações, há que se fixar a premissa de que as multas tributárias também devem obediência ao princípio do não confisco previsto no art. 150, IV, da CF/88, ressalvando, portanto, respeitáveis entendimentos no sentido contrário.1 2
De mesmo modo, é salutar verticalizar quanto às espécies de multas tributárias, pois, para fins de verificação do montante que é ou não confiscatório, será necessário traçar breves conceitos sobre a distinção entre a multa moratória, a multa isolada e a multa punitiva.
Quanto às multas moratórias, estas decorrem do simples atraso no pagamento do tributo, isso é, por falta de seu pagamento na época apropriada. Segundo Paulsen3, elas incidem de modo automático, sendo devidas independentemente de lançamento. Atualmente, o princípio do não confisco aplicado às multas moratórias é debatido no Tema 816 do STF.
Lado outro, a multa isolada é aquela decorrente do descumprimento de obrigação acessória. Aqui não há inadimplemento de tributo ou prática de ilícito tributário, mas simples descumprimento de um dever instrumental. Atualmente, existe o Tema 487, onde o STF decidirá com repercussão geral qual é o percentual razoável a ser aplicado como multa, isoladamente considerada, quando a conduta do contribuinte por si só não gera um débito tributário.
Por fim, temos a multa punitiva, ou multa de lançamento de ofício, que é aplicada pela autoridade competente por meio de auto de infração nos casos em que o contribuinte deixa de pagar o tributo, geralmente devido à omissão de receitas associada ao descumprimento de obrigações acessórias, seja por culpa ou dolo.
Diferentemente das multas moratórias e das multas isoladas, a conduta que enseja a multa punitiva é mais grave, justificando sua maior severidade. Assim, os critérios de razoabilidade e proporcionalidade devem ser mais amplos, e o princípio do não confisco só deve ser considerado aplicável em patamares mais elevados em comparação às multas moratórias e isoladas. Daí pois a necessidade da breve diferenciação de suas espécies.
Pois bem, no voto condutor do relator, que foi seguido a unanimidade pelos eminentes ministros, o ministro Dias Toffoli destacou que a abordagem tradicional da legislação tributária brasileira é insuficiente para lidar com a complexidade da realidade atual. Ele observou que, em regiões com fiscalização menos rigorosa, muitos contribuintes cumprem suas obrigações tributárias, mas que maior fiscalização ou aplicação de penalidades nem sempre resulta na recuperação da receita fiscal ou na conformidade esperada.
Para o ministro relator, a visão contemporânea é mais eficaz na definição de critérios para multas punitivas em casos de sonegação, dolo e fraude. Inspirada nos modelos do Australian Tax Office4 e do Inland Revenue Authority of Singapore5, essa abordagem, grosso modo, utiliza uma pirâmide de conformidade. No topo, estão os contribuintes que cumprem a legislação voluntariamente, aos quais a administração tributária deve apoiar e orientar. Abaixo, estão os que desconhecem a legislação, que devem ser educados e prevenidos. Em seguida, vêm os negligentes, cuja conduta precisa ser corrigida. Na base, estão os infratores, para os quais se aplicam punições e estratégias de dissuasão.
Neste sentido, é importante destacar que a lei 14.689/23 antecipou-se ao STF e modificou o § 1º do art. 44 da lei 9.430/96, reduzindo em 1/3 o valor da multa qualificada, garantindo, ainda, a aplicação retroativa da legislação mais favorável. Ou seja, nos casos de prática dolosa (comprovada e individualizada) de sonegação, fraude ou conluio, e desde que não haja sentença penal absolutória, a penalidade será reduzida de 150% para 100% do crédito tributário apurado.
Desta forma, em resumo, até o surgimento de LC que regule expressamente a matéria, podemos obter as seguintes afirmações da tese fixada:
1. Nos casos de multa punitiva aplicada nos casos de falta de pagamento ou recolhimento, de falta de declaração e nos de declaração inexata, será utilizado o percentual de 75% sobre a totalidade ou a diferença do tributo;
2. Nos casos de falta de pagamento ou recolhimento, de falta de declaração e nos de declaração inexata, onde fora apurado SONEGAÇÃO DOLOSA, FRAUDE DOLOSA E CONLUIO DOLOSO, será utilizado o percentual de 100% sobre a totalidade ou a diferença do tributo;
3. Nos casos de reincidência do item ‘2’, sendo a reincidência entendida quando, no prazo de 2 (dois) anos, contado do ato de lançamento em que tiver sido imputada as condutas DOLOSAS, será utilizado o percentual de 150% sobre a totalidade ou a diferença do tributo;
4. Não será aplicado o percentual de 100% ou de 150% quando não restar configurada a SONEGAÇÃO DOLOSA, FRAUDE DOLOSA E CONLUIO DOLOSO.
Por fim, houve consenso pela modulação de efeitos da decisão. Foi estabelecido que ela vale a partir da vigência da lei 14.689/23, mantidos os patamares fixados pelos Estados e municípios, desde que não ultrapassem o teto definido pelos ministros, sendo ressalvados desses efeitos (i) as ações judiciais e os processos administrativos pendentes de conclusão até a referida data; (ii) os fatos geradores ocorridos até a referida data em relação aos quais não tenha havido o pagamento de multa abrangida pelo presente tema de repercussão geral.
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1 “(...) tributo não é multa e o princípio da não confiscatoriedade proclamado pelo art. 150, IV da Constituição reporta-se àquele e não a esta”. HORVATH, Estevão. O princípio do não-confisco no direito tributário. São Paulo: Dialética, 2002, p.114.
2 “(...) a vedação do confisco é atinente ao tributo. Não à penalidade pecuniária, vale dizer, à multa. O regime jurídico do tributo não se aplica à multa, porque tributo e multa são essencialmente distintos. O ilícito é pressuposto essencial desta, e não daquele” MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 41
3 PAULSEN, Leandro. Curso de direito tributário completo. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 226.
4 https://www.ato.gov.au/aboutato/managing-the-tax-and-super-system/strategic-direction/how-we-help-and-influencetaxpayers/compliance-model
5 https://www.iras.gov.sg/who-we-are/what-we-do/taxes-in-singapore/encouraging-tax-compliance