A Instrução Normativa 88/22, pelo DREI - Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração, trouxe à tona um debate relevante para o Direito Societário brasileiro: a possibilidade de integralizar capital social por meio da prestação de serviços. O tema, abordado no item 4.3.6 do manual da norma, sugere que sócios de sociedades limitadas podem colaborar com a sociedade prestando serviços, o que gera questionamentos sobre sua compatibilidade com o CC, especialmente o art. 1.055, §2º, que veda expressamente essa prática.
Aparentemente, o objetivo da norma do DREI é modernizar e ajustar o regramento societário às dinâmicas do mercado, reconhecendo que, em muitos casos, os sócios participam ativamente na execução do objeto social. No entanto, o CC é claro ao determinar que a integralização do capital social em sociedades limitadas deve ocorrer exclusivamente por meio de bens ou valores mensuráveis economicamente. Essa restrição visa preservar a segurança jurídica e garantir proteção aos credores, uma vez que serviços, por sua natureza subjetiva, são de difícil valoração e não oferecem garantia patrimonial. Nesse contexto, o item 4.3.6 do manual de registro de sociedade limitada reitera:
"4.3.6. Contribuição ao capital social com prestação de serviços”
Essa disposição pode ser interpretada como um reconhecimento da contribuição prática dos sócios, embora não altere a exigência de que a integralização de quotas se dê em bens ou valores patrimoniais.
A distinção entre sociedades simples e empresárias
A disposição da IN 88/22, ao tratar da prestação de serviços pelos sócios, parece ter maior aplicabilidade às sociedades simples, em que a contribuição de serviços é não apenas permitida, mas constitui parte essencial do modelo contratual. De acordo com o art. 981 do CC, a sociedade simples permite que sócios contribuam com bens ou serviços para o exercício de atividade econômica e a partilha dos resultados. Nesse modelo, é comum que sócios desempenhem funções operacionais que sustentam a atividade-fim, como ocorre frequentemente em sociedades de profissionais liberais.
Por outro lado, a sociedade empresária, regulada pelo mesmo Código, segue uma lógica distinta. O art. 1.055, §2º, veda expressamente a integralização do capital social com serviços, reforçando sua natureza patrimonial. Essa vedação se justifica pela necessidade de preservar a integridade do capital social como uma garantia para credores e investidores, o que não seria viável com contribuições subjetivas e imensuráveis. Assim, a norma do DREI, ao abordar a prestação de serviços em sociedades limitadas, parece conflitar com a legislação que rege as sociedades empresárias.
No entanto, a IN 88/22 também introduz regras para situações de retirada de sócios, que podem impactar na interpretação dessas disposições. Por exemplo, o item 4.4.3 estabelece:
"Salvo disposição contratual em contrário, ocorrida a resolução da sociedade limitada em relação a um sócio em decorrência da retirada, motivada ou imotivada, a sociedade deverá apurar e pagar os haveres do sócio retirante em até 90 (noventa) dias contados da data da resolução."
Essa distinção é crucial para entender os limites e as possibilidades que cercam a colaboração dos sócios em diferentes tipos societários. Enquanto a contribuição com serviços é plenamente válida em sociedades simples, nas empresárias ela deve ser tratada como uma obrigação acessória, desvinculada do capital social, para evitar interpretações que violem o CC.
Possíveis leituras e implicações práticas
Uma interpretação mais conciliadora da IN 88/22 poderia entender o dispositivo como um reconhecimento de que sócios podem atuar em prol da sociedade por meio da prestação de serviços, sem que isso substitua sua obrigação de integralizar o capital social com bens ou valores econômicos. Nesse sentido, o item 4.3.6 seria uma orientação prática, refletindo a realidade de mercado em que sócios frequentemente desempenham papéis operacionais relevantes, ainda que isso não se traduza em capital social.
Essa leitura é particularmente relevante em sociedades de natureza profissional, como escritórios de advocacia ou clínicas médicas, onde a colaboração ativa dos sócios é essencial para o sucesso do negócio. Embora essas contribuições não possam ser tratadas como capital social, elas são fundamentais para a execução do objeto social e podem ser formalizadas em cláusulas acessórias do contrato social, sem contrariar o ordenamento jurídico.
Contudo, a redação da norma do DREI poderia ser aprimorada para evitar interpretações equivocadas. Uma alternativa seria reforçar que a prestação de serviços pelos sócios é legítima, mas não pode ser utilizada como forma de integralização de quotas do capital social. Esse ajuste traria maior alinhamento com o CC e evitaria conflitos interpretativos.
Além disso, o item 4.8 da IN 88/22 aborda a renúncia de administradores, o que reflete a preocupação com a regularização de informações cadastrais e de gestão:
"A renúncia de administrador torna-se eficaz, em relação à sociedade, desde o momento em que esta toma conhecimento da comunicação escrita do renunciante; e, em relação a terceiros, após o arquivamento da carta de renúncia."
Para situações em que a contribuição de serviços é essencial, há alternativas previstas no ordenamento jurídico brasileiro que podem ser mais adequadas. A sociedade simples, conforme o art. 997 do CC, permite que sócios contribuam tanto com capital quanto com serviços, sendo uma opção viável para sociedades em que a atuação direta dos sócios é central. Outra possibilidade seria a sociedade em nome coletivo, que admite arranjos mais flexíveis entre sócios, permitindo a conjugação de esforços financeiros e operacionais.
Embora a IN 88/22 reflita um esforço legítimo do DREI para modernizar o registro empresarial e ajustar a regulamentação às dinâmicas do mercado, sua aplicação no contexto das sociedades limitadas exige cautela. O conflito com o CC, que veda a integralização de capital social com serviços em sociedades empresárias, deve ser enfrentado com clareza interpretativa e, se necessário, com ajustes na redação da norma.
Enquanto o debate permanece em aberto, cabe aos operadores do Direito orientar seus clientes sobre as alternativas mais seguras e juridicamente compatíveis. A escolha do tipo societário adequado e a formalização precisa das obrigações dos sócios são essenciais para evitar litígios futuros e garantir a conformidade legal. A evolução dessa discussão, tanto no âmbito do DREI quanto na comunidade jurídica, certamente contribuirá para um maior alinhamento entre a prática empresarial e a legislação vigente.