A acumulação de cargos públicos é frequentemente tema de intensos debates jurídicos, especialmente quando envolve situações consolidadas ao longo de décadas sem qualquer contestação pela Administração Pública. Apesar de o art. 37, inciso XVI, da CF/88 vedar a acumulação remunerada de cargos públicos, salvo nas hipóteses expressamente previstas, o STF tem reconhecido que, em casos excepcionalíssimos, os princípios da segurança jurídica e da proteção à boa-fé do administrado devem prevalecer sobre a legalidade estrita.
O princípio da decadência administrativa, previsto no art. 54 da lei 9.784/99, estabelece que a Administração Pública possui o prazo de cinco anos para anular atos administrativos que gerem efeitos favoráveis ao administrado, salvo em situações de má-fé. Esse prazo reflete a necessidade de equilíbrio entre o poder-dever da administração de corrigir irregularidades e o direito dos administrados à estabilidade de suas relações jurídicas. A inércia administrativa por longos períodos é, assim, um fator decisivo para a consolidação de situações protegidas pela segurança jurídica.
O STF tem reiterado que, em contextos onde a Administração Pública permaneceu omissa por décadas, permitindo que o servidor atuasse de boa-fé, não é admissível revisar atos administrativos sem observar os impactos sociais e financeiros dessa decisão. No julgamento do Recurso Extraordinário 1380919 AgR, a Corte reconheceu a decadência administrativa para impedir a revisão de um caso de acumulação de cargos com mais de 30 anos de duração. Na decisão, destacou-se que a proteção à confiança legítima e a boa-fé do administrado são elementos indispensáveis para salvaguardar a estabilidade das relações jurídicas, mesmo diante de uma acumulação considerada irregular pela literalidade da norma constitucional.
Como destacou o ministro Alexandre de Moraes, "Esta SUPREMA CORTE admite, em situações excepcionalíssimas, a decadência administrativa na hipótese de acumulação indevida de cargos, quando verificadas a boa-fé do administrado e a inércia da Administração em anular atos favoráveis aos destinatários, por respeito aos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança"
(RE 1380919 AgR, DJe 16.09.2022). Esse entendimento demonstra que a legalidade não pode ser usada como instrumento para desestabilizar situações consolidadas pela confiança legítima.
Em um caso hipotético, imagine-se um servidor que, ao longo de quase quatro décadas, acumulou dois cargos públicos com horários compatíveis, sem qualquer oposição ou advertência da Administração Pública. A eventual revisão dessa situação após tanto tempo, além de ferir o prazo decadencial de cinco anos, comprometeria princípios basilares como a dignidade da pessoa humana e a proporcionalidade. Tal revisão, realizada de forma abrupta, poderia acarretar prejuízos financeiros e sociais irreparáveis, especialmente em situações envolvendo proventos de natureza alimentar.
Esses casos demandam do Poder Judiciário uma análise ponderada, que vá além da legalidade estrita para considerar o impacto humano e social das decisões administrativas tardias. A segurança jurídica emerge como pilar essencial para garantir que administrados em boa-fé não sejam penalizados pela omissão estatal. Ademais, o princípio da proporcionalidade exige que a atuação administrativa leve em conta a necessidade de preservar direitos fundamentais, como a subsistência e a dignidade dos servidores afetados.
As decisões do STF nesse contexto têm servido como norte para orientar tanto a Administração Pública quanto o Judiciário em casos semelhantes. Ao reconhecer a decadência administrativa em situações de longa duração, a Suprema Corte reforça que a atuação estatal deve estar pautada não apenas na legalidade, mas também na proteção de valores constitucionais como a confiança legítima e a dignidade da pessoa humana.
O entendimento do STF sobre a decadência administrativa e a acumulação de cargos públicos reafirma a necessidade de um equilíbrio dinâmico entre a eficiência administrativa e a proteção a direitos consolidados. Trata-se de uma evolução interpretativa que coloca os princípios constitucionais em posição central, garantindo que as decisões públicas sejam tomadas com justiça e sensibilidade às realidades concretas.