Migalhas de Peso

Nepotismo licitatório privatizado

Tanto na figura do nepotismo licitatório dirigente quanto no nepotismo licitatório privatizado há elevado potencial para a promiscuidade com o dinheiro público via tráfico de influência.

11/12/2024

Já nos manifestamos em duas oportunidades sobre as restrições à participação de parentes de servidores públicos em certames licitatórios.

Num destes textos de opinião, interpretamos pela aplicação da súmula vinculante 13, fazendo analogia do concurso para servidores com o procedimento licitatório. Ressaltamos, ainda, o fato de que no caso de dispensa a contratação é vedada, salvo a hipótese de um único licitante interessado. Neste caso, deve ser cabalmente demonstrado tal fato com a instauração de processo licitatório ainda que o valor seja reduzido ou esteja presente alguma hipótese de dispensa.

Havendo efetiva competitividade, parentes de servidores em geral podem participar, em consonância com a vedação da criação de “monopólios artificiais”, conforme destacado noutro texto de nossa autoria. Ponderamos que naquelas licitações que são “contratos com cláusulas uniformes” podem ter a contratação de parente dos servidores em geral. Como consequência lógica, contratos administrativos em que a manifestação de vontade das partes tenha relevância não podem ser firmados com empresas que tenham algum parente na administração contratante.

O tema da contratação de parente com acentuado grau de influência numa licitação (nepotismo licitatório dirigente), porém, deve ser objeto de análise mais detalhada, conforme, aliás, prometemos ao final do texto sobre o nepotismo licitatório. A análise, porém, só pode ser feita em conjunto com a figura do nepotismo privatizado, conforme detalharemos a seguir.

Pregão eletrônico

Data venia, discordamos daqueles que afirmam que o fato de não se ter conhecimento de quem é o licitante no pregão eletrônico senão ao final do certame seria o suficiente para garantir a lisura do procedimento.

Apenas para exemplificar, poderíamos mencionar algumas “dicas” que podem ser dadas pelo servidor: quebra do sigilo do orçamento sigiloso, histórico de valores obtidos em licitações anteriores, informação sobre prováveis empresas interessadas, conhecimento do provável entendimento do Tribunal de Contas e Tribunal de Justiça, condições do mercado local, opiniões do procurador responsável, peculiaridades do edital daquela administração, etc.

Qualquer dirigente licitatório (servidores da licitação e dirigentes da secretaria diretamente interessada) tem potencial para o favorecimento que quebraria, com imensa facilidade, a isonomia substancial do processo licitatório.

A mesma regra de participação de empresas que tenham parentes com algum servidor da administração contratante poderia ser aplicada aos dirigentes da licitação? Não, pois a quebra da isonomia é infinitamente mais acentuada na hipótese de pessoas com acentuado grau de conhecimento no dia a dia licitatório ou no contrato a ser firmado.

Interpretação sistemática com o “nepotismo privatizado”

Em nossa modesta opinião, a melhor interpretação para vedações ao nepotismo dirigente é a interpretação, conjunta, da regra que proíbe a “incrível coincidência” de parentes de dirigentes serem contratados por empresas vencedoras de certames licitatórios.

Assim:

“Art. 48(...)

(...)

Parágrafo único. Durante a vigência do contrato, é vedado ao contratado contratar cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, de dirigente do órgão ou entidade contratante ou de agente público que desempenhe função na licitação ou atue na fiscalização ou na gestão do contrato, devendo essa proibição constar expressamente do edital de licitação.”

A partir do “nepotismo privatizado” ou “nepotismo dissimulado por meio de empresa privada” conseguimos obter aqueles atores licitatórios que tem um grau mais acentuado de vedações: servidor público que desempenhe função na licitação ou atue na fiscalização ou gestão do contrato. Em síntese: servidores da licitação e servidores relevantes na secretaria que originou o contrato administrativo.

Para estes atores mencionados ocorrem dois tipos de vedação: vedação do nepotismo licitatório dirigente e vedação do nepotismo privatizado.

Isonomia, moralidade e publicidade

Como compatibilizar isonomia e moralidade nesta hipótese de servidores que tem potencial para verdadeiro “serviço de inteligência privada” em prol de determinados licitantes?

Tanto na figura do nepotismo licitatório dirigente quanto no nepotismo licitatório privatizado há elevado potencial para a promiscuidade com o dinheiro público via tráfico de influência.

O grau de conhecimento dos meandros licitatórios é tão elevado, nesta hipótese, que se assemelha ao papel de um juiz num processo em que haja um parente do magistrado atuando como ator processual.

A analogia nos parece perfeita: o parente de um magistrado está impedido de processar alguém? Óbvio que não. Nem mesmo o magistrado pode ter tal obstáculo de cidadania.

O juiz pode, porém, julgar um caso envolvendo sua esposa, seu filho, sua mãe? Evidentemente que não.

Por tais motivos é que a única hipótese que garante competitividade e isonomia é o  impedimento dos atores licitatórios dirigentes acima referidos: servidores da licitação e servidores relevantes na secretaria que originou o contrato administrativo. O parentesco refere-se aos sócios e servidores da empresa licitante e dirigentes licitatórios.

A alegação do impedimento deve ser oportunizada aos licitantes de forma pública. Somente a publicidade pode “desinfetar a promiscuidade” potencialmente presente na licitação. Nesse diapasão já manifestou o ex-ministro do STF Carlos Ayres Brito:

“Nas coisas do poder, o melhor desinfetante ainda é a luz do sol”.

A peculiaridade é que no processo licitatório só se tem conhecimento inequívoco dos licitantes após a rodada de lances.

No processo judicial, a identificação da parte é prévia à própria propositura da ação. Desta forma, há uma dificuldade estrutural para a perfeita analogia com o certame licitatório que precisa ser sanada.

Necessário que haja ciência aos demais licitantes caso haja licitante vencedor que tenha membros da sociedade empresária com parentesco com membros da administração pública tal como ocorre num processo judicial. No caso do tema deste texto, deverá ser dada nova publicidade para que haja alegação de eventual impedimento e, se houver prejuízo, anulação de determinados atos.

Na fase de habilitação, além dos documentos corriqueiros, deverá haver a declaração de presença de parentesco e ciência dos demais licitantes para que, se for o caso, tomem medidas junto ao MP/TCE/Judiciário bem como o eventual pedido da anulação já mencionada.

Se houve parente dirigente com sócio da empresa vencedora que atuou na licitação ( ou parente de dirigente, contratado pela mesma empresa) poderá ser alegado o impedimento (e demonstração de prejuízo) pelos demais licitantes no prazo recursal.

Recomenda-se a inclusão nos documentos de declaração de inexistência de parentesco nos termos dos arts. 14, IV e 48, parágrafo único da lei Federal 14.133/21.

Ausência de dolo – improbidade

A principal finalidade de inclusão da “declaração de parentesco” (caso não seja possível a declaração negativa de parentesco) do ponto de vista interno da Administração Pública, é livrar seus servidores da configuração do dolo que configuraria improbidade ou até mesmo o dolo criminal.

Na medida em que providências concretas são feitas com a inclusão no edital de do “dever de cientificação de parentesco” por parte do licitante vencedor eventuais consequências jurídicas ficarão a cargo do licitante que, dolosamente, omitir tais informações.

O servidor tem o dever de dar-se por impedido espontaneamente caso tenha ciência das hipóteses mencionadas afastando-se de suas funções na licitação ainda na fase interna. No caso de declaração “positiva” da existência de parentesco o servidor também deverá ser ouvido para eventuais procedimentos disciplinares, se for o caso.  

É possível, também que o licitante vencedor abra mão do contrato sendo considerado desqualificado do certame por ausência de documentos suficientes, e, mais especificamente, declaração negativa de parentesco.

Conclusão

O nepotismo licitatório dirigente deve ser interpretado em conjunto com o nepotismo privatizado do art. 48, parágrafo único da lei Federal 14.133/21. Na fase de habilitação o licitante vencedor, caso não possa assinar a declaração negativa de parentesco deve indicar o nome e cargo do servidor com parentesco para viabilizar aos demais licitantes ciência e eventuais questionamentos junto ao MP/TCE/Judiciário e, se houver prejuízo, a anulação de determinados atos praticados por servidor impedido de atuar, sendo possível reconhecer-se a desqualificação na licitação pela própria empresa e/ou pela Administração Pública.

A hipótese de “nepotismo via terceirização” da empresa vencedora merece um texto específico, a ser publicado em breve.

Laércio José Loureiro dos Santos
Mestre em Direito pela PUCSP, Procurador Municipal e autor do Livro, "Inovações da Lei de Licitações e polêmicas licitatórias", 3ª Ed. Dialética, 2.024, versão em português e inglês.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Regulação do uso de IA no Judiciário: O que vem pela frente?

10/12/2024

Devido processo legal na execução trabalhista: Possíveis desdobramentos do Tema 1232 da repercussão geral do STF

9/12/2024

Cláusula break-up fee: Definição, natureza jurídica e sua aplicação nas operações societárias

9/12/2024

O que os advogados podem ganhar ao antecipar o valor de condenação do cliente?

10/12/2024

Insegurança jurídica pela relativização da coisa julgada

10/12/2024